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Por que o governo deve apoiar a mídia alternativa

Em audiência pública na Comissão de Ciência & Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados, realizada em 12 de dezembro último, o presidente da Associação Brasileira de Empresas e Empreendedores da Comunicação (Altercom), Renato Rovai, defendeu que 30% das verbas publicitárias do governo federal sejam destinadas às pequenas empresas de mídia.

Dirigentes da Altercom também estiveram em audiência com a ministra da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom-PR), Helena Chagas, para tratar da questão da publicidade governamental.

Eles argumentam que o investimento publicitário em veículos de pequenas empresas aquece toda a cadeia produtiva do setor. Quem contrata a pequena empresa de assessoria de imprensa, a pequena agência publicitária, a pequena produtora de vídeo, são os veículos que não estão vinculados aos oligopólios de mídia.

Além disso, ao reivindicar que 30% das verbas publicitárias sejam dirigidas às pequenas empresas de mídia, a Altercom lembra que o tratamento diferenciado já existe para outras atividades, inclusive está previsto na própria lei de licitações (Lei nº 8.666/1993).

Dois exemplos:

1.Na compra de alimentos para a merenda escolar, desde a Lei nº 11.947/2009, no mínimo 30% do valor destinado por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar, do Fundo de Desenvolvimento da Educação, do Ministério da Educação, gestor dessa política, deve ser utilizado na aquisição “de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas”.

2. No Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), destinado ao desenvolvimento da atividade audiovisual, criado pela Lei nº 11.437/2006 e regulamentado pelo Decreto nº 6.299/2007, a distribuição de recursos prevê cota de participação para as regiões onde o setor é mais frágil. Do total de recursos do FSA, 30% precisam ser destinados ao Norte, Nordeste e Centro Oeste. Vale dizer, não se podem destinar todos os recursos apenas aos estados que já estão mais bem estruturados (ver aqui, acesso em 11/1/2013).

A regionalização das verbas oficiais

A reivindicação da Altercom é consequência da aparente alteração do comportamento da Secom-PR em relação à chamada mídia alternativa.

A regionalização constitui diretriz de comunicação da Secom-PR, instituída pelo Decreto n° 4.799/2003 e reiterada pelo Decreto n° 6.555/ 2008, conforme seu art. 2°, X:

“Art. 2º – No desenvolvimento e na execução das ações de comunicação previstas neste Decreto, serão observadas as seguintes diretrizes, de acordo com as características da ação:

“X – Valorização de estratégias de comunicação regionalizada.”

Dentre outros, a regionalização tem como objetivos “diversificar e desconcentrar os investimentos em mídia”.

De fato, seguindo essa orientação a Secom-PRtem ampliado continuamente o número de veículos e de municípios aptos a serem incluídos nos seus planos de mídia. Os quadros abaixo mostram essa evolução.

(Fonte: Núcleo de Mídia da Secom, acesso em 11/1/2013)

Trata-se certamente de uma importante reorientação histórica na alocação dos recursos publicitários oficiais, de vez que o número de municípios potencialmente cobertos pulou de 182, em 2003, para 3.450, em 2011, e o número de veículos de comunicação que podem ser programados subiu de 499 para 8.519, no mesmo período.

Duas observações, todavia, precisam ser feitas.

Primeiro, há de se lembrar que “estar cadastrado” não é a mesma coisa que “ser programado”. Em apresentação que fez na Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf), São Paulo, em 16 de julho de 2009, o ex-secretário executivo da Secom-PR Ottoni Fernandes Júnior, recentemente falecido, citou como exemplo de regionalização campanha publicitária em que chegaram a ser programados 1.220 jornais e 2.593 emissoras de rádio – 64% e 92%, respectivamente, dos veículos cadastrados.

Segundo e, mais importante, levantamento realizado pelo jornal Folha de S.Paulo, a partir de dados da própria Secom-PR, publicado em setembro de 2012, revela que nos primeiros 18 meses de governo Dilma Rousseff (entre janeiro de 2011 e julho de 2012), apesar da distribuição dos investimentos de mídia ter sido feita para mais de 3.000 veículos, 70% do total dos recursos foram destinados a apenas dez grupos empresariais (ver “Globo concentra verba publicitária federal”, CartaCapital, 13/9/2012, acesso em 12/1/2013).

Vale dizer, o aumento no número de veículos programados não corresponde, pelo menos neste período, a uma real descentralização dos recursos. Ao contrário, os investimentos oficiais fortalecem e consolidam os oligopólios do setor em afronta direta ao parágrafo 5º do artigo 220 da Constituição Federal de 1988, que reza:

“Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de oligopólio ou monopólio”.

Democracia em jogo

A mídia alternativa, por óbvio, não tem condições de competir com a grande mídia se aplicados apenas os chamados “critérios técnicos” de audiência e CPM (custo por mil). A prevalecerem esses critérios, ela estará sufocada financeiramente, no curto prazo.

Trata-se, na verdade, da observância (ou não) dos princípios liberais da pluralidadee da diversidadeimplícitos na Constituição por intermédio do direito universal à liberdade de expressão, condição para a existência de uma opinião pública republicana e democrática.

Se cumpridos esses princípios (muitos ainda não regulamentados), o critério de investimentos publicitários por parte da Secom-PR deve ser “a máxima dispersão da propriedade” (Edwin Baker), isto é, a garantia de que mais vozes sejam ouvidas e participem ativamente do espaço público.

Como diz a Altercom, há justiça em tratar os desiguais de forma desigual e há de se aplicar, nas comunicações, práticas que já vêm sendo adotadas com sucesso em outros setores. Considerada a centralidade social e política da mídia, todavia, o que está em jogo é a própria democracia na qual vivemos.

Não seria essa uma razão suficiente para o governo federal apoiar a mídia alternativa?

Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, pesquisador visitante no Departamento de Ciência Política da UFMG (2012-2013), professor de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros livros

Portaria cria Canal da Cidadania: serão duas emissoras comunitárias por município em sinal aberto

Após muita expectativa das entidades que participam das emissoras comunitárias no Brasil, finalmente saiu a regulamentação do Canal da Cidadania, uma emissora em sinal aberto, que poderá ser captada por todas as TVs com o processo de digitalização. O Ministério das Comunicações publicou no dia 18 de dezembro a portaria nº 489/12, regulamentando o Canal da Cidadania, previsto no decreto que criou o Sistema Brasileiro de TV Digital (5820/2006).

Como o sinal digital ocupa menos espaço no espectro eletromagnético, será possível a veiculação de pelo menos quatro faixas de programação no referido canal. Ou mesmo cinco: “A Secretaria de Serviços de Comunicação Eletrônica poderá, a qualquer tempo, determinar a inclusão de uma quinta faixa destinada à programação de órgãos e entidades vinculados a União…”(Artigo 4.2.3). Serão duas faixas com programação produzida por associações comunitárias, uma para o Estado e uma para o Município. O Distrito Federal terá três faixas comunitárias.

Reivindicação antiga

A responsabilidade sobre a programação do canal da cidadania vem sendo reivindicada há muito pelas emissoras comunitárias do país, regularizadas pela Lei do Cabo (8.977/95). Há anos que estes canais reivindicam espaço no sinal aberto. Após o decreto da TV Digital, representantes do Ministério da Comunicações garantiram que pelo menos uma parte da programação seria realizada pelas atuais emissoras comunitárias. A surpresa fica por conta de ser, não uma, mas duas faixas de caráter comunitário por cidade. Pela portaria 489, quem vai programá-las são “associações comunitárias”, que serão escolhidas pelo Ministério das Comunicações, após a publicação de avisos de habilitação.

As atuais emissoras do cabo, organizadas em associações municipais, terão 60 dias – após o aviso de habilitação – para enviar uma série de documentos, incluindo “prova de quitação eleitoral de todos os dirigentes das entidades”, muitas certidões negativas e manifestações oficiais de apoio de associações comunitárias e instituições de ensino superior”. Quem não cumprir este prazo estará inabilitado.

E nem mesmo estará garantida a “outorga” a esta emissora, mesmo que cumpra toda a burocracia, pois a portaria afirma que, no caso de mais de duas associações reivindicarem a autorização, o Ministério irá propor um acordo entre as partes e, no caso destas não aceitarem, será usado um critério de pontuação definido da seguinte forma: “um ponto por manifestação de apoio de associações comunitárias, entidades associativas e instituições de ensino superior instituídas há mais de 2 anos no município, totalizando, no máximo, 20 pontos” e 10 pontos para as associações comunitárias que ocupam o cabo. Ou seja, ainda que toda a extensa documentação esteja em dia, o Minicom é quem dá a palavra final sobre quem vai gerir o canal em cada cidade. A portaria prevê ainda que no caso de empate de pontos a decisão será por sorteio. E exige que as associações sejam “autônomas, não se subordinando administrativa, financeira ou editorialmente a nenhuma outra entidade”.

A portaria determina que o estatuto social da associação comunitária que reivindicar a programação desta faixa deve “assegurar, em seu estatuto social, o ingresso gratuito , como associado, de todo e qualquer cidadão domiciliado no município, bem como de outras entidades associativas ou comunitárias sem fins lucrativos nele sediados”. Levando em conta que as atuais emissoras comunitárias são constituídas por entidades, no mínimo será necessário realizar alterações estatutárias para garantir a possibilidade de disputa.

A portaria é confusa ao afirmar que “as autorizações para operação do Canal da Cidadania terão prazo de duração indeterminado(5.1)”, o que tornariam as concessões definitivas, e depois, no 5.1.1 que “o Minicom promoverá a cada 15 anos um novo processo seletivo para definir as entidades responsáveis por programar as faixas…”. A portaria deixa claro que as autorizações não serão dadas diretamente às associações, pois o canal é da União.

Sustentação financeira

Em relação à sustentação financeira do canal, estão previstas dotações orçamentárias específicas apenas para os canais programados pelo poder público. Para as emissoras comunitárias se propõem doações de pessoas físicas e jurídicas, apoio cultural, publicidade institucional e acordos e convênios com entidades públicas ou privadas. É vetada qualquer tipo de publicidade comercial.

No caso dos canais que serão geridos pelo Estado e Município é exigida a “constituição” de um Conselho de Comunicação. Mas sem nenhuma referência ao perfil do conselho, ou mesmo sua real existência política, que poderá até ser criado em vários municípios ou estados apenas para cumprir a exigência da portaria. Ou mesmo ser um conselho formado apenas por representantes do poder executivo e/ou legislativo.

Para cada canal explorado por associação comunitárias se exige a criação de um respectivo conselho local, com representação de “diversos segmentos do Poder Público e da comunidade local” e a instituição de um Ouvidor, eleito por este conselho, que também deverá garantir “as condições necessárias ao desempenho das atividades do Ouvidor”. É no mínimo estranha a exigência de representantes dos poderes públicos em uma emissora comunitária. Serão, portanto, dois conselhos locais e um conselho de comunicação em cada cidade interessada em ocupar o espaço eletromagnético com o sinal digital.

Ao contrário do que acontece com as concessões comerciais, as associações poderão ter “revogação da outorga”(5.1) se receberem três multas em um biênio e, nesse caso, o Ministério das Comunicações “selecionará nova associação para programação das faixas”. As multas podem ser aplicadas no caso da emissora descumprir qualquer item da referida portaria.

O Ministério das Comunicações não garante que todos os municípios terão espaço imediato para o Canal da Cidadania. Em entrevista a um site especializado em comunicação, Octávio Pierante, diretor do Departamento de Acompanhamento e Avaliação de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério, afirma que "na maior parte, já existem canais tecnicamente viabilizados, mas em algumas cidades (cerca de 900) o espectro é congestionado, e é possível que a viabilização dos canais só venha com a digitalização completa das emissoras".

O que fica claro é que a sociedade precisa se organizar o mais rápido possível para ocupar este importante espaço de comunicação na TV aberta, não permitindo que grupos ligados às elites locais se apropriem deste canal. É hora de pressionar os parlamentares estaduais e municipais para a instituição de conselhos de comunicação democráticos e de organizar associações da sociedade civil amplamente representativas.

Pela primeira vez a sociedade civil pode ter acesso direto a canais de TV aberta, reivindicação feita há décadas pelos lutadores pela democratização da comunicação. Para garantir que seja um canal realmente democrático e plural é importante que os movimentos sociais participem deste processo. Só a sociedade organizada pode garantir que estes canais sejam a expressão das comunidades e dos que não tem voz nos canais comerciais.
 

Conselho de Comunicação da Bahia completa primeiro ano

Neste dia 10 de janeiro o Conselho de Comunicação da Bahia completa um ano de posse. O sentimento ainda é de frustração aos que dedicaram tantos anos para sua efetivação.  A situação é delicada. Para terminar o primeiro mandato cumprindo sua principal atribuição apontada pela Lei –  a elaboração do Plano Estadual – o Conselho já deveria ter planejamento traçado e um diagnóstico nas “mãos”.

Na última reunião colegiada, no fim de novembro, foi apontado pela maioria dos presentes que o órgão sofre de um problema “vertebral”: não tem metodologia e estrutura adequada, em especial no funcionamento das comissões. Problema alertado por este blogueiro dois meses depois da posse. Até mesmo as duas coisas que foram efetivamente encaminhadas e aprovadas pelo Conselho padeceram de qualidade no processo.

O primeiro encaminhamento foi o regimento interno. Apesar do governo demorar dois meses para convocar a primeira reunião após a posse, a proposta de regimento chegou com cerca de 48 horas de antecedência.  Ainda assim optou-se em aprová-lo em menos de três horas, tempo recorde, e cheio de lacunas que foram perceptíveis ao longo do tempo.

O segundo foi o orçamento para os anos de 2012 e 2013. Um comissão ficou responsável pelo tema, fez uma primeira reunião proveitosa, e depois parou. Resultado, o tempo ia expirar, e a comissão aprovou sem antes passar por todo o colegiado do Conselho.

No geral, várias reuniões das comissões foram desmarcadas pelo governo nas vésperas, ou até mesmo no mesmo dia. Sem as comissões, não tem Conselho, porque as reuniões colegiadas acontecem de forma ordinária a cada três meses, e contam com mais de 20 presentes.

Tal situação foi potencializada no período eleitoral. Tudo ficou parado por quase quatro meses por causa da centralização nas decisões da Secom, bem como o fato da principal agência de publicidade licitada pelo governo, a Leiaute, estar na campanha do candidato à prefeito de Salvador Nelson Pelegrino.

Depois do pleito a Secom voltou a sinalizar que pretende dedicar-se ao funcionamento do Conselho e da implementação de políticas públicas apontadas desde Conferência Estadual de 2008. Bem ou mal, a derrota eleitoral resultou em críticas a estrutura de comunicação que circunda o governo, que agora precisa se movimentar.

Desde então foi realizada uma reunião do colegiado, e outra de uma Comissão, sob nobre responsabilidade de desenvolver uma metodologia permanente e um processo de elaboração do Plano Estadual. A primeira reunião a Comissão foi proveitosa, mas parou por aí.

Nos últimos meses a Secom também foi incrementada com a transferência de Sueide Kintê do Irdeb para a assessoria de políticas públicas, responsável por secretariar o Conselho e implementar as políticas. Sueide tem trajetória no movimento social, ao mesclar luta antirracista, feminista e comunicação. Além disso, no Irdeb passou pela redação, e assessorou a diretoria de rádio e depois a geral.

Qualquer sorte, a primeira gestão não terminou, e ainda há – pouco – tempo em dar respostas efetivas à sociedade.  Mesmo sem o Plano, é importante que o Conselho avalie as verbas publicitárias, que na Bahia se quer tem transparência em conformidade com a Lei  – ao contrário do Distrito Federal, Brasília, Ceará e até mesmo no Governo Federal, aqui ainda não se sabe quanto dos recursos é destinado diretamente aos veículos de comunicação.

Enfim, nem tudo está perdido. Mas está bem perto disto. Esta lentidão, amenizada com pequenas doses de esperança, está esgotando. E o prejuízo pode ser bem grandinho em 2014 ao continuar a subestimar os instrumentos de participação, e principalmente a necessidade de reformulações reais na política de comunicação na terra símbolo do “coronelismo midiático”.

Pedro Caribé é membro do Intervozes e um dos representantes da sociedade civil no Conselho Estadual de Comunicação da Bahia

Comunicação 2012, um balanço: não foi fácil, e nunca será

Não há como ignorar certa monotonia nos balanços de fim de ano do setor de comunicações. Sem muito esforço, um observador atento constatará que:

1.Os atores e interesses que interferem, de facto, na disputa pela formulação das políticas públicas são poucos: governo, empresários de mídia (inclusive operadores de telefonia e fabricantes de equipamento eletroeletrônico) e parlamentares.

Há que se mencionar ainda o Judiciárioque, por meio de sua mais alta corte, o Supremo Tribunal Federal (STF), tem interpretado a Constituição de 1988 de maneira a legitimar uma inusitada hierarquia de direitos em que prevalece a liberdade da imprensa sobre a liberdade de expressão e os direitos de defesa e proteção do cidadão (acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – nº 130, de 2009). Aguarda decisão, por exemplo, a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 2404 na qual os empresários de radiodifusão, usando a sigla do PTB e representados pelo ex-ministro Eros Grau, pedem a impugnação do artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente – vale dizer, questionam a política pública definida pelas portarias 1220/2006 e 1000/2007 do Ministério da Justiça que estabeleceram as normas para Classificação Indicativa de programas de rádio e televisão.

Não me esqueci da chamada “sociedade civil organizada” – movimentos sociais, partidos, sindicatos, ONGs, entidades civis, dentre outros. Todavia, como sua interferência continua apenas periférica no jogo político real, prefiro tratá-la como um não-ator.

2.Alguns atores ocupam posições superpostas, por exemplo: ministro das Comunicações e/ou parlamentar (poder concedente) é, simultaneamente, empresário de mídia (concessionário de radiodifusão); e,

3.As principais regras e normas legais são mantidas ou se reproduzem, ao longo do tempo, mesmo quando há – como tem havido – um processo de radicais mudanças tecnológicas.

Essa realidade pode ser verificada, em seus eixos principais, pelo menos desde a articulação que levou à derrubada dos 52 vetos do então presidente João Goulart ao Código Brasileiro de Telecomunicações – CBT (Lei 4.117/1962) e que deu origem à criação da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), 50 anos atrás. Depois disso, no que se refere às concessões do serviço de radiodifusão, mais ou menos a cada dez anos as regras se consolidam: primeiro na Lei 5.785/1972; depois no Decreto 88.066/1983 e na Constituição de 1988 e, mais recentemente, no Decreto 7670/2012.

O resultado é que, ano após ano, permanece praticamente inalterada a supremacia de determinados grupos e de seus interesses na condução da politica pública de comunicações.

Creio que as políticas de radiodifusão no Brasil constituem um exemplo daquilo que, em Ciência Política, os institucionalistas históricos chamam de “dependência de trajetória” (path dependency), isto é, “uma vez iniciada uma determinada política, os custos para revertê-la são aumentados. (…) As barreiras de certos arranjos institucionais obstruirão uma reversão fácil da escolha inicial” (Levi).

O eventual leitor(a) poderá constatar esta “dependência de trajetória” nos balanços que tenho publicado neste Observatório desde 2004 (ver “Adeus às ilusões“, “Balanço de muitos recuos e alguns avanços“, “Notas de um balanço pouco animador“, “Balanço provisório de um semestre inusitado“, “Mais recuos do que avanços“ “Algumas novidades e poucos progressos“, “O que se pode esperar para 2009? (1)“, “O que se pode esperar para 2009? (final)“, “Por que a mídia não se autoavalia?“ e “Os avanços de 2011“).

2011 versus 2012

No fim de 2011, escolhi fazer um breve “balanço seletivo” registrando fatos que poderiam ser considerados como avanços no sentido da democratização da comunicação (ver “Os avanços de 2011“). Um ano depois, muito do que se esperava que acontecesse no curto prazo, de fato, não se concretizou. Exemplos:

(a)o marco civil da internet não foi votado pelo Congresso Nacional;

(b)o esperado crescimento e fortalecimento dos movimentos em prol da criação dos conselhos estaduais de comunicação social em vários estados da Federação não ocorreu: o movimento prossegue em Brasília; o conselho da Bahia foi instalado, mas funciona precariamente; e o projeto no Rio Grande do Sul ainda não foi encaminhado à Assembleia Legislativa; e,

(c)a Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito a Comunicação com Participação Popular (Frentecom), que havia sido criada em abril e da qual se esperava um papel relevante no encaminhamento de questões relativas às comunicações na Câmara dos Deputados, apesar do esforço de vários de seus integrantes tem sido ignorada pela direção da Casa.

Por outro lado, 2012 poderá ser lembrado por alguns acontecimentos protagonizados direta ou indiretamente pela grande mídia, no Brasil e no exterior.

Inglaterra e Argentina

O primeiro registro há de ser para Inquérito Leveson (The Leveson Inquiry) cujo relatório final foi apresentado em novembro. Nele está uma descrição/diagnóstico de práticas “jornalísticas” que, infelizmente, não ocorrem apenas na Inglaterra. Há também um conjunto de propostas de ações institucionais para evitar o desvirtuamento completo da liberdade da imprensa, inclusive a criação de uma instância reguladora autônoma, tanto em relação ao governo quanto aos empresários de mídia. Independente dos resultados concretos, o relatório Leveson deveria ser lido e discutido entre nós (ver, neste Observatório, “Um documento com lugar na história“, “Areopagítica, 368 anos depois“ e “O vespeiro do controle externo“).

O segundo registro é a batalha judicial que ocorre na Argentina entre o governo e o Grupo Clarín. Um projeto que surgiu de amplo debate nos mais diferentes segmentos da sociedade foi submetido ao Congresso Nacional – onde tramitou, recebeu emendas, foi aprovado e transformado em lei. Mesmo tendo essa origem, a Ley de Medios de 2009 vem enfrentando, por parte de um dos principais oligopólios de mídia da América Latina e de seus aliados, inclusive no Brasil, uma resistência feroz, como se constituísse uma ameaça – e não uma garantia – à liberdade de expressão. Como afirmou recentemente o relator especial da ONU para liberdade de expressão, a Ley de Medios argentina deveria ser estudada como um exemplo de regulação democrática, protetora da liberdade de expressão plural e diversa.

Discurso único

No Brasil, o ano de 2012 foi dominado pelo discurso único da grande mídia – antes, durante e depois das eleições municipais – em torno do julgamento da Ação Penal nº 470 e da CPI do Cachoeira. O macarthismo praticado no tratamento de vozes discordantes confirma ad nauseamo papel da grande mídia de julgar, condenar e/ou omitir, seletiva e publicamente, ignorando o princípio da presunção de inocência e/ou a ausência de provas.

A defesa corporativa e intransigente de jornalistas envolvidos em práticas suspeitas, a transformação do julgamento no STF em espetáculo, o massacre seletivo a determinados políticos e partidos e a mitificação (ou a execração) pública de juízes, reafirmam o papel político/partidário que a grande mídia tem desempenhado em momentos decisivos de nossa história, a rigor, desde o início do século 19.

Numa época em que os impressos atravessam uma crise de variadas dimensões; jornais e revistas tradicionais são fechados (Jornal da Tarde eNewsweek, por exemplo) e “práticas jornalísticas” são questionadas (exemplo: o Inquérito Leveson, na Inglaterra), não deixa de surpreender a intolerância arrogante dos pronunciamentos na reunião anual da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol), ocorrida em outrubro, em São Paulo, e manifestações e documentos provenientes dos institutos Millenium e Palavra Aberta (think tankse lobistas do empresariado), como se os donos da imprensa se constituíssem no inquestionável padrão ético de referencia para a liberdade e a democracia.

Inércia governamental

O ano de 2012 ficará também marcado pela inquietante inércia do governo federal em relação ao setor de comunicações. Salvo o decreto que regulamentou a Lei de Acesso à Informação (Decreto 7.724, de 16/05/2012) e a norma do Ministério das Comunicações que regulamenta o Canal da Cidadania (previsto no Decreto 5820/2006 para a transmissão de programações das comunidades locais, e para a divulgação de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos poderes públicos federal, estadual e municipal), não há praticamente nada.

Onde estão as propostas (mais de seiscentas) aprovadas na 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) e encaminhadas ao governo federal em dezembro de 2009?

Onde está o projeto de marco regulatório elaborado no fim do governo Lula e encaminhado pelo ministro Franklin Martins ao ministro Paulo Bernardo, em janeiro de 2011?

Por outro lado, uma leitura equivocada das normas legais de distribuição de recursos publicitários pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom-PR) vem sufocando financeiramente a chamada mídia alternativa e consolidando ainda mais a concentração de grupos oligopolísticos. A mídia alternativa, por óbvio, não tem condições de competir com a grande mídia se aplicados apenas os chamados “critérios técnicos” de audiência e CPM (custo por mil).

Se fossem cumpridos os princípios constitucionais (muitos ainda não regulamentados), o critério de distribuição de recursos deveria ser “a máxima dispersão da propriedade” (Edwin Baker), isto é, a garantia de que mais vozes fossem ouvidas no espaço público promovendo a diversidade e a pluralidade – vale dizer, mais liberdade de expressão.

E o Parlamento?

Além da não votação do marco civil da internet, impedida pelos poderosos interesses das empresas de telecom em relação à neutralidade da rede, há de se mencionar a reinstalação, em julho, do Conselho de Comunicação Social (CCS), depois de quase seis anos de inatividade ilícita. A mesa diretora do Congresso Nacional, presidida por José Sarney, cuja família é historicamente vinculada a concessões de radiodifusão, ignorou a Frentecom e articulou a nova composição do CCS fazendo que nele prevaleçam interesses oligárquico-empresariais e religiosos.

Os não-atores

Por fim, os não-atores. O destaque é o lançamento pelo renovado coletivo do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) dacampanha nacional “Para expressar a liberdade – Uma nova lei para um novo tempo”(em abril) e seus vários eventos regionais e locais, incluindo a vinda ao Brasil de Frank La Rue, o relator especial pela liberdade de expressão da ONU (em dezembro). Apesar do boicote sistemático da grande mídia, a atenção que a campanha tem recebido na mídia alternativa constrói um embrionário espaço público onde circulam informações que não estão disponíveis nas fontes dominantes.

Registre-se ainda que partidos políticos – sobretudo a partir do julgamento da Ação Penal nº 470 – finalmente parecem se dar conta da importância fundamental das comunicações no jogo político. Salvo raras exceções, todavia, não se tem até agora resultados concretos na atuação partidária no Congresso Nacional, nem na proposta de projetos e/ou ações junto à sociedade.

Não será fácil

O mundo não acabou, como muitos acreditavam. Os índices de desemprego nunca foram tão baixos e o salário médio tão elevado. A ascensão social fez as classes A e B crescerem 54% na última década e, nos próximos três anos, outras oito milhões de pessoas serão a elas incorporadas. O Corinthians, patrocinado pela Caixa Econômica Federal, é campeão mundial de futebol. O nível de satisfação do brasileiro nunca esteve tão elevado (de acordo com pesquisas do Data Popular, IBGE e Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República).

A novela Avenida Brasil dominou as telas de TV ao longo de seis meses com audiências médias de 50% (Ibope). A grande mídia – sustentada em boa parte por verbas oficiais (70% dos recursos distribuídos nos primeiros 19 meses do atual governo foram destinados a apenas 10 grupos privados, de acordo com a Secom-PR) – celebra a condenação dos “corruptos” na Ação Penal nº 470; se apresenta como defensora da ética pública e das liberdades – sobretudo da liberdade de expressão –; e prossegue na sua obsessão seletiva de mobilizar a “opinião pública” contra determinados políticos e partidos.

As médias de aprovação tanto do governo como da presidente Dilma Rousseff batem recordes após recordes: 62% e 78%, respectivamente, de acordo com a última pesquisa CNI/Ibope (dezembro).

Diante desses fatos, sejamos razoáveis.

Como fazer que uma população majoritariamente feliz se dê conta de que seu direito fundamental à liberdade de expressão está sendo exercido apenas por uns poucos oligopólios que defendem os seus (deles) interesses como se fossem o interesse publico?

Mais ainda: como esperar que um governo em lua-de-mel com a “opinião pública” corra o risco de enfrentar o enorme poder simbólico de oligopólios de mídia, capaz de destruir reputações públicas construídas ao longo de uma vida inteira em apenas alguns segundos?

Em 2013 não será fácil – como, aliás, nunca foi.

A ver.

Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, pesquisador visitante no Departamento de Ciência Política da UFMG (2012-2013), professor de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros livros.

Neutralidade da rede: o que interessa hoje

No dia 8 de novembro de 2012, em um fórum aberto sobre neutralidade da rede no Fórum de Governança da Internet (IGF) em Baku, Azerbaijão, tive a oportunidade de ouvir Luigi Giambardella. Ele é presidente do conselho executivo da ETNO — a associação européia de operadoras de telecomunicações. Giambardella defendeu os argumentos da associação em defesa de mais lucros para as operadoras através de medidas regulatórias. Foi quase explícito em dizer, como já disse no Brasil o presidente da Oi/Portugal Telecom, que as operadoras têm inveja da maneira em que provedores de conteúdo e de aplicações fazem dinheiro — e ainda mais, utilizando conexões à Internet através de contratos com essas operadoras.

Lembremos que o presidente da Oi/Portugal Telecom (também membro da ETNO) revelou seu desejo de que a manipulação do tráfego que já praticam seja de algum modo legalizada. Foi infelizmente acompanhado pelo nosso ministro das Comunicações, que insiste em que a neutralidade da rede é um mito “romântico” que deveria ser abandonado.

Em comum, as transnacionais da telecomunicação que operam no Brasil (quase todas européias e portanto membros da ETNO) lamentam os métodos inovadores  de fazer negócios por parte dos provedores de aplicações e conteúdo, combinados com tecnologias como telefonia via Internet (“voz sobre IP”) e querem agarrar um naco dessa torta de lucros com a ajuda dos governos, dos agentes reguladores locais e da própria UIT (União Internacional das Telecomunicações). Giambardella tentou convencer-nos que “todos ganharão” se houver um acordo internacional que autorize as operadoras a praticar o critério de “quem envia paga” (“sender pays”). Segundo a ETNO, isso hoje não ocorre — uma bobagem tão grande que levou um dos painelistas, o Dr Milton Mueller, da Universidade de Syracuse, a recomendar que o presidente da ETNO não repetisse essa besteira para não desmoralizar a organização.

Como funciona a hoje o negócio de venda de conexão? Um provedor de aplicações ou conteúdo (digamos, Facebook, Twitter, Google, UOL) contrata uma ou mais operadoras para fornecer capacidade de trânsito de dados com a Internet — é a chamada “compra de capacidade de trânsito”. Os contratos especificam uma velocidade de trânsito de, digamos, alguns gigabits ou mesmo terabits por segundo. Esses contratos são pagos regiamente pelos provedores, e obviamente incluem o tráfego sainte (o que o Google, por exemplo, envia de seus servidores aos usuários) e entrante (o que os usuários enviam aos servidores do Google, por exemplo, emails para o Gmail e vídeos para o Youtube). Provedores de acesso ou de conteúdo menores, que utilizam menos capacidade, sofrem em geral com propostas leoninas e arbitrárias por parte das operadoras nessa compra de capacidade, e acabam “subcomprando” banda de cima e “sobrevendendo” essa banda a seus usuários. Hoje esta pirâmide afeta sobretudo os pequenos provedores de acesso locais, ou mesmo os projetos de redes comunitárias ou municipais. Como as operadoras cobram preços arbitrariamente absurdos por essa conexão, os provedores locais de acesso têm que limitar a qualidade de seu serviço para tentar sobreviver, e arriscam vender mais conexões do que permitiria a banda contratada com a Internet.

Do lado do usuário, já sabemos a história da qual somos todos vítimas: os contratos de “banda larga” na ponta são extorsivos, não garantem a velocidade contratada, e ainda estamos sujeitos à bisbilhotagem de nosso tráfego por parte das operadoras. Conclusão óbvia: tanto os provedores de conteúdo e aplicações como os usuários na ponta já pagam às operadoras pelo tráfego Internet. E ninguém, nem o poderoso Google, pode fazer o milagre de usar mais banda do que a contratada com uma operadora.

Na verdade a venda de capacidade é um negócio muito lucrativo para as operadoras, em um mercado não regulado. Tudo que elas têm a fazer é manter os enlaces ativos e ir ampliando a capacidade de suas espinhas dorsais conforme as previsões de demanda. Mas para as operadoras um produto chamado “capacidade de trânsito” é o único conhecido em qualquer mercado que não é para ser usado conforme vendido– um provedor compra capacidade mas não pode usá-la completamente. Se usá-la, terá que pagar um adicional. Quanto a mais? A ETNO quer que isso seja deixado a critério das próprias operadoras e quer que essa prática arbitrária seja autorizada pelos governos. Claro, pensam os nutridos empresários da ETNO, se posso extrair mais dinheiro de uma mesma infraestrutura, por que investir para ampliá-la?

Hoje a gama de serviços Internet pode ser dividida em dois tipos básicos: os que requerem que uma sequência contínua de datagramas (um “stream”) seja entregue a seu destino em tempo real ou sem interrupções (“streaming” de áudio e vídeo, serviços interativos como voz sobre IP); e os que não requerem entrega em tempo real ou em “streams” (email, páginas Web, “chats”, “tweets” etc). Todos esses serviços correspondem a protocolos Internet perfeitamente definidos e o tratamento dos mesmos já está preconfigurado nos roteadores e chaveadores modernos da Internet. Por exemplo, ninguém precisa fazer nada para que uma rede corretamente configurada reconheça um “stream” voIP e trate-o de acordo, a menos que um dispositivo cause uma interferência deliberada para degradá-lo ou mesmo bloqueá-lo.

Mas as operadoras querem interferir e cobrar do usuário final a eliminação da interferência — já ouviram falar de chantagem? Elas não gostam desse nome, preferem chamar de “venda de qualidade de serviço” (a chamada “QoS”, do inglês “quality of service”). Em outras palavras, a ideia é degradar o tráfego de sua conexão e extrair mais dinheiro de você (o provedor de aplicações ou conteúdo, o pequeno provedor de acesso, e sobretudo o usuário final) para retirar a interferência.

O ponto é que elas já estão fazendo isso — a ETNO simplesmente quer legalizar essa extorsão através de acordos sacramentados no âmbito da UIT. Isso significa jogar pela janela a neutralidade da rede na camada de enlace da Internet.

O que é essa “camada de enlace”? A Internet é constituida de várias camadas de serviços, desde o enlace (a conexão que permite que uma máquina chegue à rede através de algum provedor de conexão), a camada de rede, passando pela camada de transporte até a camada de aplicações e conteúdo.[1] Nenhuma dessas camadas deveria estar nas regulações da UIT. As propostas da ETNO concentram-se na camada de enlace — é o serviço que nos entregam nos contratos de “banda larga”, e nos contratos de capacidade com os provedores.

Não cabe à operadora interferir no que passa por esses “tubos” contratados. Se a capacidade contratada é plenamente usada, isso é responsabilidade de quem contrata e a obrigação da operadora é simplesmente honrar o contrato. Ao contrário do que tenta impor a ETNO, o provedor de aplicações ou conteúdo que envia dados já pagou por isso à operadora, em contrato por capacidade ou, no caso da ponta, em contratos de “banda larga” pagos pelo usuário final.

Por que esta é a única forma adequada de contratar interconexão entre os diversos serviços Internet? Porque as sessões simultâneas de conexão para troca de datagramas podem passar em qualquer momento dado por vários circuitos distintos de diferentes operadoras, seguindo por vários outros circuitos de distintos fornecedores de conexão — a “nuvem” da Internet não funciona na base da conexão ponto a ponto, ao contrário da telefonia fixa. Se nesses diversos circuitos a fornecedora respectiva aplica um critério distinto de cobrança de tráfego, como contabilizar tudo isso e que resultado terá na conta do usuário final?

Quando era executivo da agora falida empresa de telecomunicações MCI, Vint Cerf lembrava que a decisão de cobrar por tempo as chamadas telefônicas interurbanas talvez tivesse sido um erro porque envolvia uma enorme operação na contabilização e emissão de boletos. E este era um caso simples de conexões dedicadas ponto a ponto para transmissão de voz ou fax.

Ademais, para impor o que podemos chamar de “pedágio arbitrário de bits” as operadoras têm que assumir o controle do tráfego da camada de enlace da Internet, inclusive do roteamento dos mesmos pelos diversos circuitos — violando com isso a neutralidade da rede na camada de enlace. É o que propõem as operadoras (representadas pela ETNO) na conferência mundial de telecomunicações internacionais – CMTI-12 (WCIT-12) — ao aproveitar o processo de reformulação dos Regulamentos Internacionais de Telecomunicação (os ITRs, atualizados este ano pela UIT), objeto central dessa conferência, para inserir a camada de enlace da Internet como parte dos serviços de telecomunicações. [2]

E para isso as operadoras são contra qualquer proposta de legislação ou política que assegurem a neutralidade da rede na camada de enlace, tal como proposta originalmente no Marco Civil. Esta neutralidade, se efetivada por garantias regulatórias, impede que fornecedoras de serviços de enlace de dados interfiram de qualquer modo no conteúdo do tráfego. Mas elas querem toda liberdade para arbitrariamente priorizar tráfego e monetizar o próprio conteúdo do mesmo. Em outras palavras, liberdade absoluta para assumir o controle do transporte e roteamento dos dados e para precificar esse transporte também de modo arbitrário — em resumo, para pedagiar os bits arbitrariamente.

Um cenário novo de controle sobre a camada de enlace veio à tona este ano, durante a WTSA-12 (World Telecommunications Standardization Assembly), evento que define a logística de padronização de telecomunicações da UIT e realizado em paralelo com a CMTI-12. As operadoras conseguiram que a divisão de padrões da UIT (conhecida como ITU-T) aprovasse um padrão extremamente detalhado de bisbilhotagem para a camada de enlace da Internet. Conhecido como “Deep Packet Inspection” (DPI, ou “inspeção profunda de datagramas”), este procedimento já é adotado rotineiramente pelas operadoras para controle, censura e eventual monetização do perfil de navegação dos usuários. Lembremos do caso AT&T denunciado pela Electronic Frontier Foundation (EFF) em 2006, de espionagem maciça de dados dos usuários a serviço da NSA. Nesse mesmo período surgiam denúncias de bloqueio do tráfego do Skype na rede da Brasil Telecom. Coincidentemente, a BR Telecom utilizava o mesmo software que a AT&T usava para a bisbilhotagem de datagramas.

Em julho de 2012 o cientista-chefe da APNIC, Geoff Huston, denunciou a Telstra (principal operadora de telecomunicações da Austrália) exatamente por isso: praticar DPI sobre o tráfego de dados de seus usuários, catalogar os perfis de navegação e repassar esse cadastro a uma empresa canadense especializada em mineração de dados e monetização de perfis, a Netsweeper.[3] Essa escandalosa violação de privacidade (que pode até colocar em risco a segurança pessoal de milhares de usuários) foi reconhecida pela Telstra, que afirma não ter feito nada ilegal — o que indica que continuará a violar a privacidade de seus usuários e adotar outras formas arbitrárias de controle sobre os dados trafegados por sua rede.

Essa violação escancarada de direitos agora foi sacramentada pela ITU-T, com o padrão de DPI conhecido como Y.2770. [4] Foi elaborado e aprovado em segredo, sob a coordenação de um representante da China. A última versão do documento (a versão final ainda não foi publicada pela UIT e só está disponível para seus membros) mostra em detalhe como manipular dados de todos os sistemas “peer-to-peer”, qualquer tipo de cópia de arquivo (FTP, por exemplo), como manipular tráfego contínuo (“stream”) de áudio ou vídeo (voIP incluido obviamente), enfim, uma “receita de bolo” para padronizar a violação de direitos e facilitar o trabalho de bisbilhotagem das operadoras e das desenvolvedoras de software de controle. Tenho dito que seria como o Ministério da Justiça definir padrões detalhados para a forma de esfaquear uma pessoa, mesmo que isso seja um crime.

O padrão Y.2770 interessa não somente às operadoras, como também às agências reguladoras que controlam ou querem controlar a camada de enlace. É nesta camada que ocorrem rotineiramente as mais graves violações à neutralidade da rede, e o padrão pretende “colocar ordem na casa” para que essas violações sigam determinados métodos comuns a todas. Não é por acaso que o governo chinês estava presente como coordenador na elaboração do padrão. Não é por acaso que os serviços da Netsweeper são vendidos a países como Yemen, Qatar e os Emirados Árabes Unidos.

Neste cenário sombrio para a liberdade e a proteção de direitos dos usuários na Internet, o que fará a Anatel? O conselheiro Marcelo Bechara propôs que a Anatel assuma unilateralmente a supervisão do controle da camada de enlace (a suposta “regulação da neutralidade da rede”), mesmo antes da aprovação do Marco Civil — como é sabido, a neutralidade na camada de enlace é o ponto de divergência fundamental entre as operadoras (defendidas pelo Ministério das Comunicações) e os proponentes da versão submetida ao Congresso em meados deste ano.

O novo tratado dos ITRs determina repetidamente em seus artigos que todos os procedimentos devem obedecer rigorosamente os padrões definidos pela ITU-T. Isso ajuda muito a entender por que a Europa, em que vários países já aprovaram ou estão em processo de aprovação da neutralidade da rede como lei, não assinou o tratado. E tampouco o Chile, que foi o primeiro país do planeta a estabelecer a garantia de neutralidade da rede em lei.

Como o Brasil assinou o tratado, isso significa sacramentar a aplicação do padrão Y.2770 no Brasil, dando às transnacionais de telecomunicações que operam no país a liberdade absoluta, sacramentada por padrão internacional (!) para arbitrariamente interferir nos nossos conteúdos e nossos perfis de navegação? Ou que a Anatel vai ignorar o padrão da UIT e criar o seu próprio? Ou simplesmente garantir o direito à privacidade e a neutralidade na camada de enlace, como desejamos todos e todas que participamos da exaustiva elaboração pluralista do Marco Civil?

Consultado recentemente, um representante do MiniCom declarou desconhecer a existência do padrão. É preocupante, já que os padrões da ITU-T são parte integrante dos requerimentos dos ITRs. E ainda mais em um caso que representa uma quebra radical com os valores fundamentais da Internet em função de interesses promovidos pelo grupo de operadoras transnacionais que controlam o mercado brasileiro de telecomunicações. A Anatel não apresentou até agora nenhum comentário sobre sua eventual participação na elaboração desse padrão.

Finalmente é óbvio que esses movimentos de controle e violação de direitos impactam na economia da Internet, com a resultante transferência de custos adicionais aos usuários finais. Impacta também na Internet que conhecemos porque os ITRs impactam diretamente na neutralidade dos enlaces da Internet. Os mesmos que garantem que no Brasil tenhamos os preços mais altos do mundo em telefonia celular poderão definir o que cobrar e como cobrar para entregar um “pacote de dados” de uma “nuvem” a outra. Com o padrão Y.2770, estes mesmos empresários terão liberdade ainda maior (e sacramentada em regulamento) para violar os direitos básicos dos usuários.

Volto a repetir, como disse em minha fala na cerimônia de abertura em Baku: deixem a Internet florescer livremente em benefício de todos que vivem em suas extremidades, que são todas e todos nós.

Carlos Alberto Afonso é conselheiro representando o terceiro setor no Comitê Gestor da Internet do Brasil.


[1] Para quem quiser ir fundo, ver http://pt.wikipedia.org/wiki/TCP/IP

[2] O documento oficial, disponível para assinantes e membros da UIT, está em anexo a este texto, abaixo.

[3] http://www.potaroo.net/ispcol/2012-07/allyourpackets.html. Ver também http://bit.ly/LQtYR4

[4] Versão de julho de 2012 em anexo, abaixo. A versão final só está disponível para assinantes e membros em http://www.itu.int/rec/T-REC-Y.2770-201211-P/en

(*) Publicado também em http://terceirosetorcgi.blog.br/?p=144