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Por que devemos regular o Netflix?

Regras específicas para o vídeo sob demanda podem estimular ampliação de catálogos e aumentar oferta de conteúdo brasileiro, sem custo significativo.

Por João Brant*

A Agência Nacional do Cinema (Ancine) encerrou, há poucos dias, uma consulta sobre a regulação do serviço de vídeo sob demanda (VOD, do inglês video on demand). Em oito páginas, a Ancine sugere quais princípios deveriam pautar a organização deste serviço, que hoje reúne provedores como Netflix, NET Now, iTunes, Vivo Play, Claro Vídeo e Globo Play. Mas, afinal, por que regular um serviço que parece funcionar bem?

Há vários bons motivos para isso. O primeiro e mais imediato é que a falta de regulação tem levado à inibição no crescimento dos catálogos desses serviços. Explica-se. Todo o setor audiovisual está sujeito à cobrança de uma contribuição que alimenta o Fundo Setorial do Audiovisual – que, por sua vez, alimenta a produção independente no país. Como o VOD não é reconhecido como um serviço específico, sua cobrança cai numa categoria de ‘outros mercados’, que faz com que ele tenha de pagar R$ 3.000 por longa-metragem que tem em seu catálogo. Assim, quanto maior o catálogo, maior o pagamento, mesmo que os usuários não consumam efetivamente aqueles filmes.

A proposta que está na mesa é mudar isso. As empresas passariam a contribuir com um pequeno percentual de sua receita. Isso faria com que o aumento do catálogo fosse estimulado, e não inibido. Mas há outro motivo ainda mais relevante para se propor uma regulação para o VOD, especialmente se você concorda que a TV por assinatura ganhou com a implantação das cotas de produção nacional e independente, ocorrida nos últimos anos no Brasil.

A aprovação da lei 12.485/2011, que juntou os serviços de TV por assinatura e passou a tratá-los como serviço de acesso condicionado, inaugurou um novo momento para o audiovisual brasileiro. Novo porque, pela primeira vez, foi reservado espaço para a produção nacional e independente na televisão por assinatura. Ao mesmo tempo, se articulou um vigoroso sistema de fomento que arrecada recursos de diversos serviços, em especial das telecomunicações, e os transfere principalmente para a produção de obras independentes para o cinema e para a TV e para a construção de salas de exibição em todo o país.

Com isso, cresceu muito o número de obras brasileiras e independentes na TV por assinatura. Ganhou o público, que passou a ter mais diversidade na oferta, e ganhou o setor audiovisual, que entrou em efervescência, criou amplas oportunidades de trabalho e fez com que o valor adicionado pelo audiovisual à economia brasileira crescesse em proporções bem maiores que a média de outros setores.

O Fundo Setorial do Audiovisual tem ainda muito o que evoluir no sentido de garantir maior diversidade na distribuição dos recursos, apoio à produção de grupos historicamente marginalizados – inclusive por meio de ações afirmativas – e maior democratização do acesso. Mas não há dúvidas de que a lei aprovada em 2011 estabeleceu condições de elevar a produção audiovisual brasileira a um patamar superior qualitativa e quantitativamente.

Agora, a regulamentação do serviço de vídeo sob demanda é essencial para que os avanços obtidos pela lei 12.485 não se tornem história em pouco tempo.

Mercado em crescimento

O VOD cresce vertiginosamente no Brasil e no mundo, e se os princípios consagrados no Brasil para a TV por assinatura não passarem a valer também VOD, a tendência é voltarmos ao patamar anterior, porque a realidade de mercado já indica uma tendência de migração entre os serviços. De fato, já são dezenas de provedores com serviços voltados ao público brasileiro, que oferecem conteúdo adaptado ao português, disputam o mercado publicitário brasileiro e vendem obras e assinaturas no país. Embora convivam diferentes modelos de negócio (por assinatura, por transação de obras e por publicidade), todos eles disputam mercado com a TV por assinatura e entre si.

Essa regulação, então, deveria prever espaço e destaque para a produção brasileira, inclusive a produção independente, de forma a garantir que o VOD repita o sucesso da abertura de mercado realizada na TV por assinatura.

É isso que toda a Europa tem feito, buscando garantir espaço para a produção doméstica nos catálogos de VOD. Uma das vantagens do serviço, inclusive, é que a obrigação de carregamento de conteúdo brasileiro não diminui em nada a oferta de conteúdos estrangeiros. É só mais diversidade à disposição do público.

Outro aspecto fundamental é empoderar o produtor brasileiro na negociação de direitos. Hoje o produtor fica espremido entre exigências conflitantes na distribuição das obras para cinema e para vídeo sob demanda. Na briga entre gigantes, o produtor é a parte fraca, que não recebe sequer a informação de quantas vezes seu filme foi assistido em determinada plataforma.

O serviço corre risco de ficar mais caro? Muito pouco. Se estamos falando de uma tributação de 2% de ISS (já aprovada) e 4% de Condecine, por exemplo, são 6% a mais, mas deve-se descontar tudo que elas já pagam em Condecine no sistema atual.

Brigar contra a regulação por conta desse valor mínimo significa, portanto, defender que se preste um serviço lucrativo sem pagar impostos (o que não faz nenhum sentido) ou que o vídeo sob demanda, que é o serviço audiovisual que mais cresce, não contribua para fortalecer a produção brasileira e independente. A regulação, nos termos que vem sendo discutida, é boa para o público e para os produtores audiovisuais.

* João Brant é integrante do Intervozes. Foi Secretário-Executivo do Ministério da Cultura de 2015 a 2016.

Oi: governo empurra o problema com a barriga e caso segue sem solução

Proposta de alterações na legislação para salvar a companhia serve apenas aos acionistas e não resolve a prestação do serviço no país

Marina Pita* com colaboração de Gustavo Gindre**

A atual situação da Oi coloca o direito à comunicação de boa parte dos brasileiros em risco. A empresa, maior concessionária de telecomunicações do país em extensão territorial, não apenas abriu o maior pedido de recuperação judicial da história brasileira – R$ 65,4 bilhões em dívidas – com também corre o risco de sofrer intervenção estatal.

A concessionária é a única fornecedora de infraestrutura em cerca de 3 mil municípios brasileiros, a maior parte no Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

A situação é calamitosa, no entanto, não pode ser usada como álibi para livrar a Oi de suas obrigações, nem tampouco ser justificativa para jogar recursos públicos em uma empresa privada sem que existam garantias de resolução do problema de insegurança em que a atual situação da Oi coloca o Brasil.

Infelizmente é isto que está se desenhando para um futuro próximo.

Vale lembrar que a insegurança em que o país está hoje só ocorreu porque, em 2008, por conta dos interesses do momento, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), o Ministério das Comunicações e o Governo Federal, mudaram o Plano Geral de Outorgas (PGO), com a publicação do Decreto nº 6.654/2008, para permitir a compra da Brasil Telecom pela Oi.

Assim, a Oi tornou-se concessionária de telefonia fixa em 26 estados do país – exceto em São Paulo, onde operava a Telefônica, atualmente Vivo.

O antigo PGO (Decreto nº 2.534/1998) proibia a compra de uma empresa de telefonia fixa por outra que atuasse em região diferente, entre outros motivos, para impedir que, em caso de dificuldades, estas se estendessem a grandes regiões.

A “supertele”, como ficou conhecida a empresa após a fusão, tem obrigações de universalização da telefonia fixa nas áreas menos lucrativas do país, enquanto a Telefônica se concentra no Estado de São Paulo, mais lucrativo.

A Oi opera apenas no Brasil ao mesmo tempo em que concorre com empresas globais de telecomunicações, que sendo autorizadas a ofertar o serviço, não têm as mesmas obrigações de cobertura.

Essa situação, já da época da criação da “gigante”, era a receita da desgraça, que se concretizou rapidamente com a atividade dos acionistas La Fonte e Andrade Gutierrez. Seguidas vezes estes acionistas impuseram seus interesses à empresa, contra a vontade dos acionistas minoritários e com a anuência da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e da Anatel. Desta forma extraíram lucro para manter seus negócios encurtando a vida da concessionária.

Ao longo do tempo, a Oi não só acumulou dívidas para manter alto o nível de investimento no país como para pagar dividendos aos acionistas.

A isso, soma-se uma série de multas que a operadora recebeu da Anatel pelo não cumprimento das obrigações de universalização da telefonia fixa e outras, negociadas em substituição/troca das primeiras.

A Oi diz que deve à Anatel R$ 11 bilhões. A agência afirma que são R$ 20 bilhões. De qualquer forma, o montante é imenso. Para se ter uma ideia, projeções de custo para a universalização da internet no Brasil estimam que o valor estaria em R$ 50 bilhões – levando fibra óptica a todos os municípios.

Enquanto a Oi tenta aprovar um plano de recuperação judicial com seus credores – que seguem dizendo que a companhia não tem sido transparente neste processo e que o plano apresentado é de natureza ilegal e abusiva, com favorecimento inadequado de detentores do capital da empresa –, o governo prepara um plano de intervenção na concessionária, para evitar que a única solução seja a cassação da concessão de telefonia fixa da companhia por falta de capacidade de investimento.

Apesar de a intervenção, com a substituição dos administradores, ser a única saída para garantir o direito dos brasileiros e a manutenção do serviço no curto, médio e longo prazos, a proposta de medida provisória que, segundo a imprensa, já está estaria na Casa Civil, pode ser mais uma etapa da longa história de como a política nacional está a serviço de interesses privados, sem responder aos direitos e necessidades da população.

E os motivos para desconfiança de favorecimento a interesses econômicos privados crescem ainda mais diante das recentes denúncias feitas por Marcelo Odebrecht e outros executivos da construtora no âmbito da operação Lava Jato. O detalhamento de como são feitas as compras de medidas provisórias para beneficiar determinados setores só reforçam que é preciso ficar atento ao que ocorre também nas telecomunicações, ainda que o discurso político sobre a MP da Oi não seja o de favorecimento.

Não é o que mostrou a entrevista à revista “Isto É Dinheiro”, em 17 de março, intitulada “Há chance zero de barganha e de anistia para a Oi”. Nela o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações, Gilberto Kassab, já ventilava a ideia de troca de multas da Oi, por não comprimento com as obrigações de contratos, por investimentos, levando a interpretação contraditória da postura do Governo em relação à falência da Oi.

O que fica implícito nesta entrevista é que, mais uma vez, a Anatel faria uma anistia das empresas que não cumprem as obrigações previamente acordadas em contrato. E mais, o resultado destes investimentos seria de posse da empresa que segue endividada e com comprovada incapacidade de gerenciamento financeiro.

Além disso – e mesmo que ninguém diga abertamente – o plano atual de mudanças da Lei Geral de Telecomunicações LGT (Lei nº 9.472/1997) que, entre outras coisas, pretende acabar com o regime público e com as obrigações dele decorrentes, e garantir que os bens reversíveis das concessionárias não precisaram retornar à União em 2025, também é uma movimentação para tentar salvar a Oi.

Mas, mesmo que esta proposta absurda de alteração da LGT seja levada adiante, os problemas da Oi persistiriam. A companhia ainda teria o monopólio em cerca de 3 mil municípios brasileiros de baixa lucratividade, uma dívida gigantesca (ainda que abatida à parcela devida à Anatel), a concorrência com gigantes internacionais do setor e uma estrutura defasada pela baixa capacidade de investimento dos últimos anos, que exigiria vultosos recursos para ser atualizada. Nenhuma das propostas do governo fornece respostas a esses problemas.

Uma proposta de construção de infraestrutura em troca das multas da Anatel só poderia ser levantada se, na equação, a Telebras fosse incluída. A infraestrutura construída pela Oi com estes recursos seria obrigatoriamente compartilhada com a estatal brasileira que, por sua vez, entregaria a capacidade de rede aos operadores de serviços de telecomunicações regionais.

Agora, como fazer com que as demais companhias autorizadas que atuam no país avancem no sentido de incorporar em suas atividades os 3 mil municípios onde a Oi atua sozinha? Qualquer ação neste sentido é hoje impensável. Na verdade, o direcionamento da Anatel tem sido no sentido contrário.

Na proposta para o novo Plano Geral de Metas de Competição (PGMC) apresentada pela Anatel e em consulta pública, a agência só irá atuar nas cidades onde identificar a real necessidade de estímulo à competição, deixando de atuar exatamente nas cidades onde não há estímulo econômico para qualquer operador se apresentar e, por isso, quem lá estiver não será incomodado.

Mesmo que o governo opte por editar uma medida provisória para intervenção de fato na concessionária de serviço público e não fique utilizando esta “carta na manga” apenas como pressão sobre a Oi para que avance nas negociações com credores, o imbróglio que a situação da Oi representa para as telecomunicações do país e para os cidadãos brasileiros não se resolve facilmente.

Mais do que estes remendos de política pública, falta ao país uma agenda para a universalização da banda larga, considerando as tecnologias convergentes que podem emular e substituir a telefonia fixa.

*Marina Pita é jornalista e membro do Conselho Diretor do Intervoze; **Gustavo Gindre é É jornalista formado pela UFF, pós-graduado em Teoria e Práxis do Meio Ambiente (ISER), mestre em Comunicação (UFRJ) e doutorando em História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia (UFRJ).

BBB 2017 e Globo: atuação exemplar ou reposicionamento da emissora?

A expulsão de um agressor do reality show mostra o novo padrão Globo para lidar com casos de machismo

Por Bia Barbosa, Iara Moura e Mônica Mourão*

Ontem, depois de ampla mobilização do movimento feminista nas redes sociais e da atuação da Delegacia da Mulher do Rio de Janeiro, a Rede Globo decidiu expulsar da edição 17 do Big Brother Brasil o participante Marcos Harter. A conclusão da emissora, após consulta a especialistas – como explicou o apresentador Tiago Leifert – foi a de que a participante Emilly Araújo foi vítima de agressão física na madrugada deste domingo, após uma das festas do programa.
Diante do ocorrido, a Rede Mulher e Mídia – articulação que reúne dezenas de organizações da sociedade civil, movimentos sociais e ativistas de todo o País – emitiu nota para manifestar sua indignação e repúdio diante da postura da Rede Globo. Este artigo é baseado na nota da Rede, da qual o Intervozes faz parte, e também numa análise sobre o recente posicionamento da Globo em relação a outros casos de machismo.

Ao contrário do que a produção do programa tenta fazer o público acreditar, a emissora não agiu imediatamente para garantir a integridade de Emilly, muito menos para combater a violência dentro da “casa do BBB”. Quem acompanhou o programa viu, mesmo com as edições do conteúdo registrado, que a estudante, de 20 anos, foi vítima de inúmeras e diversas formas de violência, caracterizadas pela lei Maria da Penha.

A lei, em vigor desde 2006 no País, estabelece como tipos de violência contra a mulher a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral. E determina, em seu artigo 8o, inciso III, “o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar”.

Ao longo desta edição do BBB, as cenas exibidas pela Rede Globo na TV aberta já vinham mostrando a repetição e o agravamento de uma postura agressiva e machista por parte de Marcos, marcada por gritos, ameaças e violência psicológica, atitudes que caracterizam claramente um relacionamento abusivo, enquadrados como crime na legislação vigente.

As agressões não se limitaram a Emilly, parceira de Marcos no programa. O médico agrediu verbalmente outras participantes e cenas também mostraram situações de violência contra a mulher envolvendo outros integrantes da casa.

Tais episódios seriam motivos mais do que suficientes para que a emissora agisse e impedisse que a violência se naturalizasse naquele ambiente de confinamento. Mas não. Em vez de cumprir com a finalidade educativa de uma concessão pública de televisão, conforme dispõe a Constituição Federal, a Rede Globo, em busca de manter a audiência do programa e supostamente entreter os telespectadores com as brigas do casal, optou por aproveitar do sensacionalismo e das posturas inquestionavelmente abusadoras e agressivas do participante.

Mesmo alegando que alertava o casal sobre as agressões mútuas, a emissora permitiu que Emilly seguisse submetida a toda sorte de constrangimento, decorrente da exposição pública de sua imagem e da convivência com seu agressor.

Marcos Harter não foi punido pela violência psicológica a que submeteu dia após dia sua colega de programa: só foi expulso do BBB depois que uma lesão física foi comprovada. Ou seja, além de transmitir uma ideia de permissividade diante de agressões, este triste episódio faz crer que, para o Grupo Globo, a violência contra a mulher é tão somente circunscrita à violência física.

Necessário lembrar que não é a primeira vez que assistimos a casos de violência contra a mulher no Big Brother Brasil. Na edição veiculada em 2012, a Rede Mulher e Mídia chegou a enviar representação ao Ministério Público Federal pedindo a responsabilização da Rede Globo diante de um caso de violência sexual.

Na ocasião, uma das participantes foi vítima de estupro presumido quando, embriagada e dormindo, teve sua dignidade violada por outro participante. Infelizmente, cinco anos depois, fica explícito que as condições a que os e as participantes do Big Brother Brasil são submetidas e as “regras do jogo” definidas pela Rede Globo estão longe de respeitar os princípios constitucionais previstos para o serviço de radiodifusão no país.

A agressão a que foi submetida Emilly diz respeito não só a ela, nem às demais participantes confinadas nessa edição do reality. Trata-se de mais uma agressão a todas nós, que assistimos, doloridas, à principal emissora de TV do Brasil explorar comercialmente uma situação que, cotidianamente, oprime, violenta e mata milhares de mulheres.

Numa sociedade em que uma mulher é agredida a cada cinco minutos, aproveitar-se de uma situação de violência para acumular índices de audiência até o ponto em que uma agressão física chega a ser praticada de fato é, para nós, mais que omissão; é cumplicidade.

Sendo assim, a Rede Mulher e Mídia, uma vez mais, solicitou que o Ministério Público Federal analise o caso em questão e, além das providências que a Delegacia da Mulher do Rio de Janeiro já está tomando, envolvendo Emilly e Marcos, avalie a responsabilidade da Rede Globo em silenciar durante semanas sobre a violência praticada diante de suas câmeras.
Globo feminista ou reposicionamento de marca?

O novo episódio de machismo no BBB acontece menos de duas semanas depois de a Globo ter sido palco de outro caso de violência contra a mulher. Dessa vez, nos bastidores, praticado e sofrido por funcionários da empresa: na coluna de 31 de março da Folha de S. Paulo chamada #AgoraÉQueSãoElas, a figurinista Su Tonani denunciou ter sido vítima de assédio sexual praticado pelo galã José Mayer.

A resposta da empresa foi a suspensão do ator de qualquer produção dos estúdios por tempo indeterminado, e o caso não foi abafado. Funcionárias da emissora vestidas com camisetas com os dizeres “Mexeu com uma, mexeu com todas” foram ouvidas em programas do canal. Carlos Henrique Schroder, diretor-geral da Globo, enviou comunicado interno reforçando o posicionamento de não abafar esse tipo de violência.

A nota justificava a suspensão de Mayer para “não dar visibilidade a uma das partes envolvidas numa questão que é visceralmente contra tudo que a Globo acredita”; afirmava conhecer e apoiar a campanha “Mexeu com uma, mexeu com todas”; reforçava que o “respeito à diversidade, ao ser humano” fazem parte do Código de Ética e de Conduta do Grupo; e, por fim, num importante post scriptum, deixava claro que esse posicionamento deveria ser compartilhado: “Sinta-se à vontade de mandar estas respostas para suas equipes”. Além da comunicação interna, o caso virou notícia no Jornal Nacional e em outros telejornais da emissora, com divulgação de nota pública da Globo e de mea culpa escrito por José Mayer.

Em fevereiro deste ano, um caso diferente, por não ter acontecido nos estúdios da emissora, já dava sinais do novo posicionamento da Globo. O cantor Victor, da dupla Victor e Leo, um dos jurados do programa The Voice Kids, pediu afastamento para se dedicar ao tratamento da acusação de violência doméstica registrada numa delegacia de Belo Horizonte por sua esposa dias antes. O apresentador André Marques, no início do programa seguinte, anunciou o pedido de saída do cantor e afirmou que “a Globo repudia toda e qualquer forma de violência e acredita que essa acusação precisa ser apurada com rigor, garantindo direito de defesa na busca da verdade”.

Também deixou claro que não haveria nenhuma espécie de silenciamento para proteger o cantor: “O jornalismo da Globo vai acompanhar esse caso para que você saiba tudo que está acontecendo”. André Marques justificou ainda a veiculação de programas com a presença de Victor, por já estarem gravados, para não atrapalhar a competição das crianças. Cenas em que ele aparecia, entretanto, foram cortadas.

Entre críticas pela insuficiência das atitudes tomadas pela Globo (por que Mayer foi apenas suspenso, não demitido? Por que a demora em atuar no caso do BBB?) e celebrações a vitórias da pauta feminista, cabe-nos refletir sobre a relação entre o posicionamento dos telespectadores e as posições tomadas pela emissora. No caso do BBB, assim como no de Mayer, fica evidente o papel que a mobilização do movimento feminista, pelas redes sociais, desempenhou para os desfechos conquistados.

Nesta segunda-feira, durante todo o dia, a hashtag #GloboApoiaViolencia esteve entre os temas mais comentados do Twitter. Nesta terça, #EuViviUmRelacionamentoAbusivo é a bola da vez. A própria coluna #AgoraÉQueSãoElas nasceu como um movimento de ocupação da mídia por mulheres em 2015. A saída de Victor do The Voice Kids certamente não teria ocorrido se o debate feminista não tivesse ocupado espaço na arena pública como fez no último período – algo de que a própria Globo já havia se apropriado na nova temporada do seu Amor & Sexo.

Neste jogo de consensos e dissensos, a Globo se viu obrigada, não apenas por uma questão mercadológica, mas também para se manter em sintonia com os desejos de uma parcela de seu público, a mudar seu padrão de silenciamento. O jogo, entretanto, está longe de ser ganho. Há muito pouco tempo, o apresentador Faustão fez uma clara apologia à violência contra a mulher em seu programa dominical. O pedido de direito de resposta feito à Globo pela Rede Mulher e Mídia foi solenemente ignorado.

Tais mudanças, como já dissemos neste blog, também estão longe de alterar estruturalmente o conteúdo que ela veicula. Enquanto abre espaço para falar da violência contra a mulher e de temas como transexualidade, a Globo segue silenciando as manifestações contra a Reforma da Previdência e defendendo a proposta de retirada de direitos pela gestão Temer – que terá impactos sobretudo sobre as mulheres. Ou seja, a incorporação das pautas feministas tem limites bem delineados ali. E não se pode fechar os olhos para isso.

Porém, num país com altos índices de violência contra a mulher, numa esfera pública que ainda legitima as ações de agressores – basta o pavoroso exercício de ler os comentários das notícias sobre o tema -, o reposicionamento da Globo pode representar avanços. O que é inegável é que eles só vieram como resposta a uma luta diária de nós, mulheres.
*Bia Barbosa, Iara Moura e Mônica Mourão são jornalistas, feministas e integrantes do Conselho Diretor do Coletivo Intervozes. 

Crônica de uma morte anunciada: cobertura da guerra às favelas no Rio

Falta de aprofundamento, mito da exceção e tom policial marcam matérias sobre o tema nos jornais cariocas

Por Camila Nobrega e Iara Moura*

Até o dia 30 de março de 2017, Maria Eduarda Alves Ferreira era só mais uma aluna de uma escola municipal no Rio de Janeiro. Naquele dia, ela foi atingida por quatro tiros enquanto fazia aula de Educação Física, na quadra da Escola Municipal Jornalista Daniel Piza. Da noite para o dia, a menina de 13 anos tornou-se assunto principal dos jornais da cidade e do país.

A partir daí, as selfies sorridentes ao lado das amigas dividiam espaço com as imagens da mãe desconsolada, carregando as medalhas da filha penduradas no peito, do corpo já inerte estendido na quadra da escola, do caixão atropelando a vida.

Agora, todos sabiam que a menina sonhava em ser atleta de basquete. Sabiam também o exato percurso que tinha feito até a escola e as últimas palavras que disse à mãe. Nas páginas de jornais, Maria Eduarda ganhou uma biografia no momento em que perdeu a vida. A história parecera começar pelo fim, como na prosa de García Marquez, em Crônica de uma Morte Anunciada.

E, ao contrário do que contam a maior parte das reportagens, a história é exatamente isso, uma tragédia mais do que anunciada, no mínimo alardeada pelos dados, pelas circunstâncias. Por outro lado, absolutamente silenciada.

Como a maioria de seus colegas de escola, Maria Eduarda convivia com a intensa violência cotidiana no bairro onde morava, Acari. O local concentra 20% das mortes decorrentes de ações policiais registradas apenas nos meses de janeiro e fevereiro deste ano. Isso quer dizer que houve cerca de 36 mortes na área, sob cobertura do 41o Batalhão de Polícia Militar, em apenas dois meses.

No total, foram 182 mortes decorrentes de operações policiais no Estado do Rio de Janeiro, segundo dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP). Todas sem nome estampado em jornal, a esmagadora maioria sem direito à investigação ou até mesmo a uma mínima perícia, identificadas com um mesmo “sobrenome” nos boletins de ocorrência – “autos de resistência”, expressão que, desde a ditadura militar, é usada pela Polícia Militar para justificar morte em legítima defesa de policiais, sem necessidade de mais explicações. Todas traduzidas em, no máximo, estatísticas frias que mantêm a cidade funcionando alienada. Todas só mais um Silva.

No entanto, a história de Maria Eduarda percorreu um outro caminho. No jornal “O Globo” de 31 de março, a interrupção violenta da saga de Eduarda foi reportada como uma “tragédia com desdobramento aterrorizante”. Mesmo assim, ainda que contando detalhes sobre o caso, a reportagem segue, logo referindo-se à reação das moradoras e dos moradores: “A Avenida Brasil foi tomada por um protesto violento.”

Muitos manifestantes eram da Fazenda Botafogo, vizinha à escola, onde Maria Eduarda morava. O trânsito foi interrompido nas duas pistas. Grupos ateavam fogo a caçambas de lixo ao longo da via, uma das principais da cidade, assustando motoristas”, destaca um trecho, sem qualquer menção a um contexto cotidiano enfrentando por esses e essas moradoras.

Em uma só frase, o protesto em função da morte da jovem se torna problema. Problema de trânsito, problema que invade a vida de quem estava passando e só queria chegar em casa. Em uma frase, mais uma forma de individualização e desconexão, em uma sucessão absurda de narrativa dos fatos.

Depois das reações nas redes sociais e da comoção que o caso trouxe, no dia 1º de abril, o enquadramento e o espaço destinado ao tema mudaram. A notícia que antes ocupava uma página deu espaço a uma de quatro páginas, com fotos e infográficos destacando o número de mortes resultantes de operações policiais nas favelas e comunidades empobrecidas da cidade.

A cobertura, antes marcada por impessoalidade e por uma estrutura cara às páginas policiais com ênfase na ideia de “confronto” e nos desdobramentos das “operações” com apreensão de armamentos e drogas, modificou-se. Ali detalhes sobre a vida da menina ganharam sentido, com imagens, informações, humanidade.

Por um lado, pode-se celebrar que o caso foi amplamente divulgado. Por outro, trouxe um risco imenso de refazer um ciclo interminável, imerso à falta de aprofundamento sobre o que significa a política de Segurança Pública no Rio de Janeiro. Uma rápida análise da cobertura dos principais jornais mostra que o caso de Maria Eduarda foi alçado a um patamar de excepcionalidade. Pinçado no meio da realidade diária dos moradores de Acari e das favelas da cidade, que tem enfrentado o agravamento da violência nas operações policiais, especialmente no último mês, o quadro dramático ganhou o perigoso e falso contorno de exceção.

No Extra, também do Grupo Globo, a cobertura do caso foi para a editoria que recebe os assuntos relacionados à Segurança Pública: “Polícia”. A jovem de Acari se tornou capa do jornal, sob a manchete: “Maria Eduarda, a nova vítima da Velha Guerra”. No dia seguinte, mais uma capa seguiu acompanhando o caso, sob o título de “Qual mãe vai chorar hoje?”. Em determinado trecho da matéria, a mãe de Maria Eduarda diz: “A gente morava, sim, em comunidade, mas ela sempre foi tratada com muito carinho”.

A frase não é desligada de contexto. Em um cenário em que 182 mortes ocorrem em dois meses como consequência de operações policiais e as notícias se empilham de forma burocrática nos jornais, como se meros e frios boletins de ocorrência fossem, ela sabe como a morte de sua filha poderia ter ido seguido o mesmo caminho, caso não fosse a impossibilidade de atentar para as características da morte da menina.

Ela, como todas as mães moradoras de favelas, sabe que suas filhas e filhos são normalmente julgados e condenados pela opinião pública, sem chance de defesa ou de apuração do crime.

No mesmo dia da morte de Maria Eduarda, o mesmo jornal Extra circulava com uma única pequena matéria que fazia referência às mortes que estavam ocorrendo em favelas do Rio. A situação já era gritante e estava sendo denunciada há semanas por movimentos de favelas. Mas o chamado colunão, no jargão jornalístico, dizia apenas: “Um confronto entre policiais militares e traficantes, no Morro da Formiga, na Tijuca, assustou moradores e motoristas na Rua Conde de Bonfim, que teve o trânsito interrompido.

De acordo com a UPP da comunidade, homens armados atacaram a base da unidade e montaram barricadas. Um homem morreu baleado. Revoltados com a morte do homem, que seria mototaxista, pessoas foram para a Rua Conde de Bonfim e fizeram um protesto, impedindo a passagem dos veículos”. Mais uma vez, estava ali um homem morto anônimo, nenhum estranhamento sobre a escalada de violência nas favelas, a revolta dos moradores qualificada como exagerada, a preocupação com o trânsito, a divisão de duas cidades em uma.

O mesmo sentido, em curtas frases, repete-se em diversos textos, reportando mortes na Providência, na favela da Maré, entre outras. Com vocabulário de guerra completamente naturalizado, os jornais cariocas falam em “confronto”, dão número de balas, de mortos e usam jargões policiais.

Aliás, são eles também as principais fontes nas matérias, que não vão muito além disso. “Segundo a UPP”, “o comandante”, “números da Polícia Militar”, “no front” são expressões que se repetem diariamente, na maioria dos casos sem complemento de outras vozes.

Precisou que uma morte ocorresse dentro de uma escola, que fossem quatro balas “perdidas” acertando uma só jovem, em horário de aula, com várias testemunhas, dezenas de crianças desesperadas e fotos de turmas inteiras abaixadas dentro de sala de aula, além da necessidade de o Estado responder, pois a jovem estava, naquele momento, sob sua própria responsabilidade.

Precisou tudo isso junto para que não atirassem primeiro uma pedra sobre o caso e para que a explicação “auto de resistência” não fosse o bastante. Foram necessárias todas essas condições para que a opinião pública não repetisse o mesmo feito de sempre e julgasse a menina como culpada pela própria morte, como acontece na maioria dos casos.

E só assim as palavras que todos os dias são naturalizadas nas reportagens causaram estranhamento dessa vez. “Dano colateral dos mais absurdos”, disse o porta-voz da Polícia Militar, major Ivan Blaz, sobre a morte de Maria Eduarda. Disse, simplesmente seguindo o rumo ao qual está acostumado. É assim que a polícia fala sobre as mortes em favelas. Não é exceção, essa é a regra.

Depois disso, a mídia seguiu. O jornal O Dia também acompanhou de perto o caso de Maria Eduarda, com pelo menos quatro matérias detalhadas. A Folha de S. Paulo trouxe uma reportagem que relata o histórico de violência em Acari, mostrando, entre outros, o dado de 89 tiroteios registrados em Acari em um ano, segundo o site colaborativo Fogo Cruzado.

A situação, porém, faz pensar o papel dos meios de comunicação na situação, muito além de apenas reportar os fatos. A mídia é também parte da construção do Rio de Janeiro, essa cidade que convive com uma violência que atinge moradores e moradoras de favelas mais do que qualquer outra, negros e negras mais do que brancos e brancas. A comunicação é parte ativa nessa compreensão das pessoas sobre o lugar onde vivem. E, afinal, o que está sendo construído pela mídia tradicional que se encontra disponível?

Uma nota da ONG Justiça Global enviada à Organização das Nações Unidas chama atenção para o silenciamento da violência institucional contra a população jovem e negra, moradora de favelas e periferias. O documento, enviado à Relatoria de Execuções Extrajudiciais Sumárias e Arbitrárias da ONU, relaciona as 182 mortes causadas por agentes do Estado e chama atenção para o falho papel da Justiça brasileira, uma vez que grande parte dos casos são simplesmente arquivados.

Segundo afirmou a pesquisadora da Justiça Global na área de Violência Institucional, Monique Cruz, em entrevista à EBC, “a denúncia internacional é uma forma de dar mais visibilidade internamente, porque, quando acessamos um organismo internacional, estamos chamando também atenção da imprensa brasileira para um outro ponto de vista”. Ela se referia à política de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro.

Em complemento para este artigo do Intervozes, Monique Cruz ressaltou ainda que, da forma como a política de repressão do Estado nas favelas é pensada, ela só tem o que a Polícia tem definido como “danos colaterais” que, na verdade, são mortes que nunca são investigadas, fruto de um enfrentamento ineficaz à anunciada guerra às drogas e que só está gerando mais violência na cidade. Nessa “guerra”, policiais são algozes e também vítimas de uma engrenagem da morte.

Porém, em número bem menor: para cada policial assassinado no Rio em 2016, 23 outras pessoas morreram, o que derruba a tese de que as mortes de moradores sempre ocorrem em confrontos. Os dados são de levantamento feito pelo Uol com base em números do ISP.

Em meio a essa situação e despossuídos de espaço nos meios privados para informar-se e expressar-se sobre a realidade de suas comunidades, moradores/as de favelas há muito têm se organizado para produzir eles próprios comunicação e fazer reverberar denúncias da violência com a qual convivem diariamente.

Nesse caso, o direito à comunicação está diretamente ligado ao direito à vida. Em grupos de mensagens instantâneas ou em páginas em redes sociais, moradores de favelas e comunidades invadidas por forças policiais trocam informações vitais sobre que ruas evitar em caso de confronto ou troca de tiros. A produção e troca de informações, no entanto, não é encarada como direito dessa população. Ameaças anônimas e criação de perfis fakes que buscam expor e criminalizar quem faz comunicação popular é a regra geral nas favelas.

Segundo a ONG internacional Repórteres sem Fronteiras, o Brasil é o segundo país com mais comunicadores assassinados na América Latina. Foram 22 mortes registradas desde 2012. O cenário configura uma grave violação do direito à comunicação, que causa consequências para a sociedade de uma forma geral. Violação esta que dificulta a abordagem do assunto até mesmo dentro dos grandes veículos e ainda mais em veículos de comunicação alternativa, popular ou comunitária, sem a proteção que deveriam ter.

É o silêncio forçado, o toque de recolher da comunicação, que leva a cidade do Rio de Janeiro a pensar que um número como o e 1275 vítimas fatais da intervenção policial entre 2010 e 2013, a maioria sem qualquer tipo de investigação, mesmo em casos de mortes de crianças e até idosos, confunda-se com exceção.

É o silêncio que as favelas procuram combater, com ações como a criação do aplicativo Nós por Nós, que recebeu mais de 300 denúncias de violações de direitos cometidas por policiais em apenas um ano. Maria Eduarda não foi apenas uma tragédia, ela se tornou uma brecha de anúncio do caminho que a cidade está tomando.

*Camila Nobrega e Iara Moura são jornalistas e integram o Coletivo Intervozes. Colaborou Gizele Martins, jornalista e comunicadora popular da Maré.

Revisão da Lei de Telecomunicações não levará fibra óptica ao Brasil

Com as novas redes de fibra óptica protegidas por feriado regulatório, não há garantia de que os R$ 100 bi doados às teles serem investidos em banda larga

Por Marina Pita*

A palavra feriado soa como música aos ouvidos do trabalhador. Se não evoca aquele dia de folga mais do que merecido, funciona – especialmente para os autônomos, precarizados e terceirizados – como dia pra tirar o atraso de algumas (muitas) tarefas.

Mas “feriado” também pode significar um assalto à mão armada dos recursos públicos. É o que vai acontecer se o PLC 79/2016, que contém a proposta de alteração da Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472/1997), for sancionado por Michel Temer.

O termo “feriado regulatório” tem sido usado pelos técnicos de diferentes áreas para identificar a suspensão de determinada regra ao longo de um período.Seria o mesmo que dispensa temporária da obrigatoriedade de uma norma.

No caso do setor de telecomunicações, este feriado foi estabelecido pela Resolução nº 600, editada pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), em 2012.

Tal resolução criou o Plano Geral de Metas de Competição (PGMC), estabelecendo obrigação de acesso e fornecimento de recursos de rede, além da oferta de produtos de atacado no caso de áreas onde não há competição adequada entre os fornecedores de serviços de telecomunicações.

Em outras palavras, em localidades onde uma empresa tem tanto poder de mercado que não há livre-concorrência, essa empresa tem obrigação de liberar o acesso à sua rede para as concorrentes (20% da capacidade).

Imagine que uma única empresa controla o acesso ao único poço de água de uma cidade. O que o PGMC faz é obrigar que a empresa controladora do poço garanta acesso a ele a todas as outras empresas que vendem água engarrafada, cobrando um aluguel por isso. Assim, as demais empresas também poderão vender garrafas d’água.

Tomando a alegoria do poço para explicar o funcionamento no caso das redes, as novas redes de fibra ótica (construídas a partir de 2012) são os poços, enquanto a infraestrutura da última milha, que chega até a casa das pessoas, são as garrafas d’água.

Acontece que, a pedido das empresas de telecomunicações, no PGMC, as novas redes de acesso de fibra óptica (o poço) não precisam ser compartilhadas durante nove anos porque estão protegidas pelo feriado regulatório.

O argumento das empresas para suspender a obrigatoriedade de compartilhamento é garantir o retorno do investimento já realizado.

Mas o resultado é que essas redes, tão necessárias para a ampliação do acesso à Internet no Brasil, ficarão protegidas até 2021 – o que significa quase uma década de atraso.

Por que isso importa?

O Projeto de Lei 79/2016, em tramitação no Senado e que ficou conhecido por entregar R$ 100 bilhões em infraestrutura pública para as empresas de telecomunicações, faz isso exatamente propondo que as operadoras, em troca, invistam valor equivalente no setor.

Segundo o discurso das empresas, seria essa a forma de garantir justamente a ampliação da oferta de banda larga no país, via a construção de novas redes de fibra óptica.

O PL das Teles, entretanto, não explicita como esse investimento deverá ocorrer. Fala apenas – de forma genérica – que a definição deverá ser do Poder Executivo e da Anatel, “priorizando áreas sem competição adequada e considerando a redução das desigualdades”.

Assim, além de estarmos a mercê de um governo ilegítimo e de uma agência reguladora que há muito tempo prioriza os interesses das operadoras em vez dos usuários, o resultado da combinação entre o PLC 79 e o feriado regulatório previsto na resolução da Anatel é a de que esses investimentos, que serão na prática financiados com recursos da União, serão feitos em infraestrutura que sequer será compartilhada para gerar uma ampliação da oferta.

Quando uma empresa investe em fibra óptica com o dinheiro dela, pode até ser compreensível o estabelecimento de um feriado regulatório para proteger o investimento. Mas, neste caso, o dinheiro a ser aplicado em novas redes de acesso de fibra óptica será da própria União.

E, se a regra do feriado regulatório para novas redes se mantiver, a estrutura da Internet no Brasil se manterá como está, ou seja, excludente.

Vale lembrar ainda que a construção de infraestrutura de fibra óptica requer abertura de vias (ruas avenidas, estradas, rodovias), instalação de postes e de cabeamentos.

Se uma empresa que oferta este serviço na ponta (última milha) não tem acesso a esta infraestrutura, de duas uma: ou não oferecerá o serviço, o que acarretará em falta de competitividade no mercado e prejuízos ao cidadão, ou terá que edificar sua própria infraestrutura, o que significa desperdício de recursos públicos, impacto ambiental, transtornos para os usuários das vias e mais poluição visual.

Divergências no setor

A questão do compartilhamento da infraestrutura de telecomunicações construída com recursos púbicos não é um problema só aos olhos das organizações da sociedade civil que atuam na defesa dos direitos dos usuários.

O vice-presidente da TIM, Mário Girassole, também já questionou o modelo, em seminário do setor, em meados de fevereiro.

“Isso não pode ser. Essa infraestrutura em áreas menos favorecidas, implantada com recursos que seriam da União, precisa de um regime de compartilhamento regulado que não preveja feriado regulatório para que a transição se torne neutra do ponto de vista competitivo”, disse ele, conforme informação publicada no site Convergência Digital.

Também houve reclamação por parte da Associação Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações (Abrint), que representa pequenos e médios empresários que operam no mercado de distribuição de acesso a vários locais ignorados pelas grandes operadoras.

Aumento da concentração 

Considerando que há uma aposta dos analistas na “consolidação do setor de telecomunicações” – expressão usada para dizer que haverá fusões e aquisições e, portanto, concentração de mercado –, estruturar uma política para investimento em banda larga que garanta a competitividade é mais do que nunca fundamental.

Se somarmos a isso o fato de que, há anos, especula-se que a TIM deve ser vendida e que a Oi está falida, esta política se torna ainda mais relevante.

De acordo com o relatório da Associação para o Progresso das Comunicações (APC) “Ending Digital Exclusion: Why the Acess Divide Persists and How to Close It”, de abril de 2016, o valor do compartilhamento de infraestrutura é subdimensionado e deve ser uma das premissas de países que pretendem acabar com a exclusão digital:

“Países em desenvolvimento podem poupar bilhões e aumentar a velocidade do acesso universal à banda larga por meio de compartilhamento de infraestrutura.”

Assim, é fundamental estabelecer que a infraestrutura de telecomunicações usada para banda larga não será protegida por feriado regulatório. É o básico. E nem isto consta no PLC 79/2016.

Não há desculpas para gastarmos tão mal um recurso que é do povo brasileiro.

Banda larga é cada vez mais um meio para a garantia de direitos; não deve ser meramente tratada como um negócio para poucos, onde os conchavos são feitos a portas fechadas e sem debate com os demais setores interessados.

É por essas e outras que o PLC 79 não pode ser aprovado como está no Senado Federal. Que os senadores percebam rapidamente o tamanho do crime que estão cometendo.

*Marina Pita é jornalista e compõe o Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social