Arquivo da categoria: Análises

Tupinambás processam Rede Bandeirantes e exigem direito de resposta

Por Thaís Brito*

A notícia intitulada “Bandeirantes contra índios Tupinambás” poderia ser uma referência a algum acontecimento do século XVI, mas é o mais atual episódio no cenário de luta dos Tupinambás de Olivença, pela demarcação de seu território na região sul da Bahia.

Os Tupinambás estão processando a Rede Bandeirantes por incitar o ódio, promover a violência e a deslegitimação da luta dos indígenas em duas reportagens veiculadas, em rede nacional, nos dias 25 e 26 de fevereiro de 2014. O processo é de autoria da comunidade indígena da Serra do Padeiro, em nome de Rosival Ferreira de Jesus, o cacique Babau. Hoje Babau encontra-se preso em Brasília. O cacique foi impedido de encontrar o Papa Francisco no Vaticano, por conta de uma acusação sobre a morte de um agricultor na área indígena. Ao saber da acusação, Babau se entregou à Polícia Federal.

“Tiraram nós do nosso território e agora continuamos no mesmo impasse. Estão querendo nos matar. Querendo, não, estão nos matando. Quero que este parlamento ou nos mate de uma vez ou faça alguma coisa. Daqui eu vou sair pra prisão, daqui a pouco”, disse Babau ao chegar à Câmara Federal. Babau disse ainda que não irá fugir: “Não devo nada. Tupinambá não foge. Vamos até o fim”.

A matéria da Rede Bandeirantes, certamente, colabora para o clima de tensão e calúnias contra os Tupinambá. Os indígenas pedem liminarmente o direito de resposta da comunidade Tupinambá à Rede Bandeirantes pelas reportagens transmitidas no Jornal da Band. Nas reportagens, o povo indígena é acusado invadir fazendas, ameaçar e expulsar moradores, de práticas de roubo e extorsão. Os caciques Babau e Valdelice são os alvos das matérias, que criminalizam os Tupinambás de Olivença.

Retomada é o termo correto para o que ocorre hoje no território Tupinambá e em outras terras indígenas em processo de demarcação. “Retomamos de volta o que nos foi tomado”, é como conta Lorena Tupinambá, 29, mãe de cinco filhos, criados nas áreas de retomadas.

Todas essas retomadas de terra são feitas dentro dos limites do território que consta no relatório publicado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), delimitando a Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença em cerca de 47mil hectares. A primeira fase de demarcação teve início, em 2009, com a publicação do resumo do relatório de identificação e delimitação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. A conclusão do processo de demarcação depende da assinatura da portaria declaratória da TI pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Entretanto, a presença do Estado, atualmente, tem se limitado à ocupação do território indígena com 5000 homens do Exército Brasileiro e à determinação do “estado de exceção” na área.

O território Tupinambá tem registros históricos que remetem a 1680, quando missionários jesuítas criaram o aldeamento Nossa Senhora da Escada. A terra em processo de demarcação fica na região de Mata Atlântica do sul da Bahia, nas proximidades da cidade de Ilhéus, Una e Buararema e se estende da costa marítima da vila de Olivença até a Serra das Trempes e a Serra do Padeiro.

Rede Bandeirantes

Em 1926, foi criada a Reserva Caramuru-Paraguaçu no sul da Bahia, reunindo índios de diferentes etnias. Uma das famílias com histórico de mobilização contra índios, os Kruschewsky, lideraram, na década de 1930, um grupo de fazendeiros que se mobilizou para extinguir a Reserva Indígena Caramuru-Paraguaçu. Não por acaso, esse é, também, o sobrenome de uma das fontes da reportagem da Band. O secretário de turismo de Ilhéus, Alcides Kruschewsky, que aparece na reportagem como agente do poder público lamentando as retomadas indígenas, é também proprietário de área no interior da Terra Indígena.

Como reclama o indígena Case Angatu, “o problema é que o Jornal da Band, não assume junto ao público sua parcialidade, como fazemos em nossos espaços na rede social virtual. Um bom exemplo é este nosso perfil, que defende abertamente: a Demarcação Já do Território Tupinambá de Olivença por sermos indígenas e acreditarmos na ancestralidade do Povo que reivindica seus direitos originários.”

A Rede Bandeirantes faz jus a sua marca e não apenas faz uma reportagem parcial e claramente contrária aos indígenas, mas aos princípios fundamentais da ética jornalística e do respeito aos direitos humanos. A postura da emissora é recorrente. O Ministério Público Federal na Bahia propôs, em 2012, um ação civil pública* contra a Band Bahia por veicular conteúdos violadores da dignidade humana.

Na reportagem “Pessoas são coagidas a fazer cadastro na FUNAI”, a Band, além de descontextualizar a questão indígena, não ouve um índio sequer. Também não cita, como lembram as antropólogas Daniela Fernandes e Patricia Navarro, o assassinato de três indígenas do povo Tupinambá em uma emboscada, no interior da TI. As vítimas – Aurino Santos Calazans (31 anos), Agenor Monteiro de Souza (30 anos) e Ademilson Vieira dos Santos (36) – foram atacadas a tiros e golpes de facão por quatro homens, que se aproximaram em duas motocicletas. A esposa de Aurino também estava no local, mas conseguiu escapar. Ela descreveu um ataque brutal. Um dos indígenas foi encontrado quase decepado, apresentando sinais de tortura (foi chicoteado) e muitos ferimentos provocados por facão.

No texto da ação dos Tupinambás contra a emissora, os indígenas pedem uma posição da judiciário e exigem direito de resposta: “Após todos esses anos, ao arrepio da história, o mesmo povo, que vem lutando para não ser dizimado, sofre perseguição midiática, sendo taxado de terrorista, criminoso, assassino e estuprador, como se nota das reportagens aqui questionadas. O judiciário não pode quedar-se inerte ante esse atentado aos direitos dos povos indígenas, muito menos ante as falsas informações injuriosas, caluniosas e de má fé do canal de televisão réu, numa tentativa de jogar a sociedade contra aqueles que foram acossados, perseguidos e mortos em função da gana de não-indígenas pela terra naquela região, historicamente habitada pelo Povo Tupinambá”

Não é por acaso que a relação entre a propriedade de terra e a propriedade dos meios de comunicação caminham de mãos dadas no Brasil. Assim como as capitanias hereditárias, as concessões de televisão foram distribuídas de forma arbitrária e hereditária. A atualidade da matéria revela o atraso na abordagem da questão indígena no país e a permanência da relação intrínseca entre a concentração de terras e a concentração dos meios de comunicação.

* Thaís Brito é integrante do Intervozes, representante da sociedade civil no Conselho de Comunicação Social da Bahia e doutoranda em Antropologia Social na UFBA.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

O dia da aprovação do Marco Civil da Internet

Por Bia Barbosa e Jonas Valente*

Na manhã dessa terça-feira (22/04), os corredores do Senado ficaram movimentados. Era a corrida contra o tempo para aprovar em três comissões o texto do Marco Civil da Internet, de modo que ele pudesse ir a Plenário ainda na tarde do mesmo dia.

Na Comissão de Ciência e Tecnologia, o texto passou com duas emendas de redação que traziam ajustes pontuais. Na Comissão de Constituição e Justiça, o relator, Vital do Rêgo (PMBD-PB), acatou outras duas emendas. Uma delas mudava o Artigo 15 definindo que apenas delegados de polícia e o Ministério Público – e não mais “autoridades judiciárias e administrativas”, como estava na redação original – poderiam requisitar as informações de acesso do usuário que, pelo projeto, deveriam ser guardadas por até seis meses. Não havia acordo do texto com o Ministério da Justiça e a alteração, mesmo anunciada como de redação, mexia no mérito do projeto e poderia abrir um flanco para questionamentos futuros da lei no Poder Judiciário.

Na Comissão de Meio Ambiente, o senador Luiz Henrique (PMDB-SC) desistiu de apresentar relatório em protesto por aquilo que classificou como “atropelo”. E a reunião para apreciar a matéria foi cancelada. Mas isso não atrapalhou o processo, uma vez que o prazo para a manifestação das comissões já havia se encerrado e a inexistência do parecer da CMA não prejudicava a tramitação.

Enquanto isso, organizações da sociedade civil integrantes da Articulação Marco Civil Já, entre elas o Intervozes, percorriam as comissões e os gabinetes para defender a aprovação do MCI naquele dia. Frente aos questionamentos de alguns senadores sobre a pressa, representantes das organizações reafirmavam que o Marco Civil era um projeto da sociedade e que o texto expressava um acordo construído a duras penas. A mudança do texto geraria o retorno para a Câmara, o que poderia enterrar o projeto ou fazê-lo suscetível novamente ao lobby do empresariado das telecomunicações. O deputado Alessandro Molon (PT-RJ), relator do texto na Câmara, que já se encontrava em São Paulo para os eventos sobre internet que ocorrem esta semana na cidade, pegou às pressas um avião para Brasília.

No plenário, a base governista fez uma disputa regimental com o PSDB e o DEM, únicas bancadas resistentes à votação da proposta. Senadores governistas tentaram um acordo com tucanos e democratas, mas havia resistência. Apesar de concordar com o mérito no geral, os dois partidos argumentavam que a pressa para garantir a aprovação a tempo de sancionar o Marco no evento NetMundial colocava o Senado a serviço do Executivo. O senador Lindbergh Farias (PT-RJ) rebateu a tese, afirmando que a agenda apertada tinha como objetivo apresentar o projeto como modelo e pautar a agenda internacional na linha de afirmação dos direitos dos usuários.

Sem acordo, coube ao governo exercer sua maioria. Quando a aprovação já estava consolidada, senadores de diversos partidos subiram à tribuna para ratificar o caráter histórico daquele momento e como o Brasil se tornava referência mundial ao aprovar uma das mais avançadas legislações para a área da Internet. Ativistas que acompanhavam a discussão na Tribuna de Honra conseguiram, com o apoio do senador Eduardo Suplicy (PT-SP), entrar no plenário. A sessão foi suspensa para que os representantes das organizações pudessem estirar a mesma faixa que marcou a sessão de aprovação na Câmara. A presença e a contribuição da sociedade foram reconhecidas como elemento fundamental dessa conquista da população brasileira.

Em São Paulo, a votação do Marco Civil no Senado foi acompanhada por um telão montado no Arena NetMundial, evento paralelo ao NetMundial, organizado pela Secretaria Geral da Presidência da República e pelo Comitê Gestor da Internet. No momento do anúncio, mais de 100 participantes vibraram com a aprovação da lei. Os últimos meses de intensa mobilização da sociedade civil, nas redes, nas ruas e no Congresso Nacional, foram retratados em vídeos, fotos e memes.
#Veta15Dilma

Ao mesmo tempo em que a articulação dos cidadãos em torno da defesa do Marco Civil foi destacada como fundamental para sua aprovação, todos lembraram que a luta continuaria com o pedido de veto da Presidenta Dilma ao artigo 15 do texto. Polêmico desde que foi incluído no relatório ainda em tramitação na Câmara, por força do lobby da Polícia Federal e de parte do Ministério Público, o artigo obriga todas as empresas a guardarem os dados de aplicação dos usuários por seis meses, para futuras investigações. Mesmo que o acesso a esses dados só possa se dar mediante decisão judicial, o texto viola a privacidade do cidadão e o princípio da presunção de inocência, ao tratar todos os internautas, indiscriminadamente, como supostos criminosos. Vale lembrar que esta brecha para a violação da privacidade tem impactos significativos no exercício da liberdade de expressão na rede. Afinal, se sei que meus dados de navegação serão guardados por seis meses por terceiros, provavelmente agirei de forma diferente da que agiria.

Negociado com seis partidos políticos para garantir a aprovação do texto na Câmara – e depois no Senado – o artigo acabou se transformando na principal insatisfação da sociedade civil, que tanto celebrou a aprovação do Marco Civil. Uma campanha contra a vigilância presente no texto foi então lançada logo após a aprovação da lei no Parlamento. E se prorrogou até a cerimônia de abertura do Net Mundial na manhã desta quinta feira.

Em um encontro privado com a Presidenta Dilma, representantes da Articulação Marco Civil Já reforçaram o pedido de veto, protocolado oficialmente em seu gabinete antes mesmo da aprovação no Congresso. A Presidenta lembrou do acordo firmado na Câmara e, minutos depois, subiu ao palco do NetMundial e sancionou o Marco Civil sem alterações. Diante dela e de uma plateia de mais de 700 participantes, de cerca de 80 países, ativistas brasileiros abriram uma faixa pedindo o veto ao artigo 15. Do outro lado do auditório, ativistas franceses, indianos, ingleses e africanos lembraram que “todos somos vítimas da vigilância” na rede.

Marco Civil aprovado e sancionado, os próximos passos desta jornada ainda são muitos. Falta, por exemplo, regulamentar a nova lei em pelo menos dois aspectos: as exceções à neutralidade de rede e o próprio artigo 15. As organizações da sociedade civil esperam, com isso, limitar a coleta massiva de dados dos usuários para um número mais restrito de empresas. Um caminho seria aplicar a guarda obrigatória de dados somente a empresas que sejam responsáveis por páginas ou serviços que, num dado período, tenham sido alvo de um grande número de denúncias de atividade suspeita ou ilegal. A continuação do debate sobre regulação da internet também se dará na reforma da lei de direitos autorais e na lei de proteção a dados pessoais. Nenhuma das duas teve sua tramitação iniciada no Parlamento.

No âmbito internacional, o Marco Civil da Internet deve ainda impulsionar, em diferentes países, legislações baseadas nos seus três pilares, todos destacados pela Presidenta Dilma em seu discurso no NetMundial, logo após a sanção do texto: neutralidade de rede, liberdade de expressão e privacidade.

Fica claro, assim, que o processo de construção e aprovação do Marco Civil, que durou ao todo mais de sete anos, não termina agora. Entre disputas e aprovação no Senado, campanha relâmpago pelo veto de um artigo e sanção do texto na abertura do NetMundial, ele agora entra pra história como uma lei modelo para a regulação da internet em todo o mundo. Mas novos desafios estão colocados sobre a mesa. Novos mais surgirão. A síntese que fica desta conquista, no entanto, ao menos para a sociedade civil, é a de que se organizar para garantir seus direitos pode, sim, fazer toda a diferença.

* Bia Barbosa e Jonas Valente são jornalistas e integrantes do Conselho Diretor do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Sílvio Santos quer família no controle de TV por assinatura

Por Bruno Marinoni*

A família Abravanel (do apresentador Sílvio Santos) quer estender o padrão de concentração na radiodifusão brasileira para o setor de TV por assinatura. O grupo que controla o SBT quer entrar também no novo serviço de TV paga regulamentado em 2011, migrando sua TV a cabo Alphaville (que opera no interior paulista) para o novo modelo de exploração do setor.

A iniciativa de Sílvio Santos leva consigo, na mesma empreitada, os familiares do proprietário de uma outra emissora afiliada ao SBT: João Alves Queiroz Filho, dono da TV Serra Dourada de Goiânia (GO), é sócio no mercado da TV Alphaville e, assim como Sílvio, quer suas filhas no mercado de TV paga.

A experiência com a concentração da mídia no Brasil levou, por uma demanda da sociedade, alguns legisladores a desenvolverem mecanismos na legislação recente que cria obstáculos para esse fenômeno em novos setores. Nesse sentido, a Lei do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), que desde 2011 regulamenta o funcionamento do mercado de TV por assinatura, separa em camadas o serviço (produção, programação, empacotamento, distribuição) e define certos limites à participação simultânea de entidades nesses diferentes níveis. A limitação, assim, impede que empresas de radiodifusão controlem o serviço de telecomunicação e vice-versa. Pelo menos seria assim em tese.

Os concessionários de TV e rádio, ao longo da história, sempre deram um jeito de burlar as leis antimonopolistas no Brasil. A legislação de radiodifusão expressa a preocupação da sociedade com a concentração do poder midiático na mão de poucos indivíduos, em detrimento da garantia da liberdade de expressão, pluralidade e diversidade. Nesse sentido, o artigo 220 da Constituição expressa claramente que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. O entendimento, porém, é mais antigo.

Mesmo os militares, que promoveram a consolidação do modelo que se tem até hoje de indústria cultural, hipertrofiado em sua dimensão comercial e oligopolista, se preocuparam com os níveis da concentração de concessões e propriedade. O Decreto-Lei 236 de 28 de fevereiro de 1967 estabelece os limites de outorgas de radiodifusão que cada entidade pode usufruir.

Para burlar as restrições à concentração, os donos da mídia desenvolveram um sistema no qual se distribui a propriedade das empresas de mídia e as concessões entre membros da família, articulados com outras famílias por meio do sistema de “afiliadas” a redes de televisão. Assim, o mercado nacional ficou restrito a não mais do que cinco redes de TV, fenômeno que é reproduzido nos mercados locais, e que concentram outros veículos (rádio, imprensa, portais de internet etc.).

Alguns desses radiodifusores possuem também negócios no mercado de TV por assinatura, mas com a criação da lei 12.485 (SeAC) encontraram limites para a extensão do seu controle no setor. Agora, ameaçam estender a mesma lógica da “concentração familista” utilizada na radiodifusão para burlar as limitações no mercado de “serviço de acesso condicionado”.

O grupo de Sílvio Santos possui 49% das ações da operadora de cabo Alphaville. Uma das filhas do empresário, Renata Abravanel, possui 6% dessa operadora. E a Herbeys Holding, controlada por João Alves Queiroz Filho e suas filhas, detém outros 28,5%. O SBT pretende transferir a totalidade da sua participação para a outra filha de Silvio Santos, Patrícia Abravanel. Alves Queiroz propõe não votar nos casos de interesse da operadora de telecomunicações, mas as três filhas manteriam o seu poder de voto, já que elas não têm participação direta na emissora de TV goiana.

A Anatel analisa o caso. O primeiro relator do processo, o conselheiro Jarbas Valente, votou a favor das intenções familistas. A decisão final ainda não foi tomada, mas corremos o risco de ver a prorrogação do “problema de família” que é a comunicação brasileira.

*Bruno Marinoni é doutor em Sociologia pela UFPE e repórter do Observatório do Direito à Comunicação.

**Com informações do portal Telesíntese.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Conar: Conselho de ética?

Por Tamara Gonçalves*

Recentemente o Conar (Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária) lançou uma campanha pública com dois vídeos: “palhaço” e “feijoada”. As propagandas utilizam reclamações esdrúxulas e simplórias com o objetivo de desqualificar a análise da população em geral, ou de alguns segmentos específicos, sobre determinados temas para, em seguida, apresentar o Conar como o único órgão com competência para analisar possíveis abusos nas peças publicitárias.

Além de antidemocrática – na medida em que desrespeita a opinião do outro – a campanha difunde uma informação errada: o Conar não é a única instância que pode tomar medidas em relação à publicidade. Na verdade, as ações que podem ser tomadas pelo Conselho, em geral, podem ser consideradas insuficientes se comparadas com aquelas determinadas pelos órgãos de defesa do consumidor.

Isso porque, antes de mais nada, a publicidade é regulada por lei. O Código de Defesa do Consumidor traz balizas bastante claras sobre esta atividade comercial: não pode ser enganosa, não pode ser abusiva, deve ser facilmente identificada pelo consumidor como publicidade. A regulação da publicidade pelo Código permite a todo o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor – Ministério Público, PROCONs, Defensorias Públicas etc. – agir em caso de abusos, podendo inclusive impor sanções como multa e determinação de veiculação de contrapropaganda.

O Conar, por outro lado, é uma organização da sociedade civil e, portanto, com capacidade de atuação bastante limitada e até mesmo insuficiente: somente pode agir enquanto a publicidade ainda estiver no ar, recomendando a suspensão da veiculação do comercial ou sua alteração. Embora as recomendações do Conar sejam, em regra, seguidas, não se pode esquecer que são apenas recomendações, sem qualquer outra força sancionatória.

Por outro lado, há que se desconfiar de um Conselho de ética que se incomoda com o recebimento de reclamações da sociedade – seria então um Conselho que só atua mesmo em conflitos entre empresas? Parece que sim. Um órgão democrático e que leva a sério a sociedade e a cidadania, deveria respeitar as denúncias dos cidadãos, processando-as com agilidade e eficiência, principalmente em tempos de mídias sociais como os nossos. Uma imagem negativa de uma empresa, difundida por meio de publicidade preconceituosa, pode se espalhar com facilidade na rede, convocando os consumidores a agir: protestar, reclamar (junto à marca e nas redes sociais), deixar de comprar o produto, dentre outras.

No mesmo sentido, quem é que de fato compõe o Conar? Representantes de empresas e agências de publicidade. Será que apenas estas pessoas devem estar habilitadas a julgar o que é certo e o que não é, o que é abusivo e o que não é? Não precisamos do Conar para isso, temos nossas próprias cabeças!

Será que o Conar tem uma representação social satisfatória? Será que contempla em seu quadro a diversidade da população brasileira? Acho que não. A campanha disseminada pelo Conselho zomba da capacidade da população de julgar por si mesma, ignorando que o Brasil já não é mais o mesmo.

Boa parcela da sociedade já não tolera mais determinados preconceitos e discriminações. Reforçar preconceitos de gênero, étnico-raciais, geracionais, de classe-social, ou quaisquer outros para promover a venda de produtos e serviços não é apenas antiético; é também ilegal, contrariando o Código de Defesa do Consumidor. Nesse sentido, que bom que a sociedade tem levantado sua voz para dizer que não aceita mais (ou tolera cada vez menos), campanhas publicitárias machistas, racistas, sexistas, preconceituosas de qualquer natureza.

Nesse sentido, seria bom o Conar deixar de lado essa postura arrogante e antidemocrática, compreendendo de uma vez por todas que os cidadãos são capazes de fazer julgamentos e tomar decisões de consumo cada vez mais informadas. Afinal, respeito é bom e todo mundo gosta!

*Tamara Gonçalves é advogada especialista em defesa do consumidor.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Conanda: a sociedade civil em defesa da criança

Por Renato Godoy*

A resolução 163 do Conanda, publicada no Diário Oficial no último dia 4, considera como abusiva toda a comunicação mercadológica voltada à criança. O texto completo, disponível aqui, diz que “a prática do direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica à criança com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço” é abusiva e, portanto, ilegal segundo o Código de Defesa do Consumidor.

O Conselho, vinculado à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, é um órgão colegiado (com representantes do governo e da sociedade civil) de caráter deliberativo, que atua como instância máxima de formulação, deliberação e controle das políticas públicas para a infância e a adolescência na esfera federal.

A aprovação do texto, portanto, é uma vitória histórica da sociedade civil e um avanço significativo para a proteção integral da infância. Com a declaração da abusividade do direcionamento de publicidade às crianças, é posta em xeque uma prática mercadológica que coloca a criança no centro de uma estratégia de criação de desejos. Essa aposta do mercado exacerba a noção da criança como consumidora, com forte poder de influência nas compras realizadas pelos pais e responsáveis. Segundo pesquisa do Interscience (2003), as crianças participam do processo decisório de 80% das compras da casa.

No entanto, a ideia da criança como consumidora e promotora de vendas tende a confrontar importante conquista da sociedade brasileira: a noção da criança como um sujeito de direitos, previstos no artigo 227 da Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Desde sua fundação em 2006, o Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana defende o entendimento de que os diplomas jurídicos brasileiros já dão o embasamento suficiente para interpretar o direcionamento de qualquer comunicação mercadológica às crianças como abusiva. Entendemos que o direcionamento de comunicação mercadológica à criança é uma forma de tirar proveito de um indivíduo em desenvolvimento físico, social e psíquico que, portanto, ainda não atingiu a plenitude de seu senso crítico para compreender o caráter persuasivo da mensagem publicitária. A recente resolução do Conanda vai ao encontro desse entendimento.

O mercado publicitário, editorial e radiodifusor, no entanto, ignorou a resolução do órgão e continua incorrendo nesse direcionamento ilegal às crianças. Em uma nota assinada pelas nove maiores entidades do setor, as associações se colocam como defensoras do Estado Democrático de Direito, favoráveis à competência exclusiva do Legislativo para tratar de normas para a publicidade e tentam deslegitimar a atuação do Conselho Nacional.

Porém, a resolução do Conanda não contraria essa prerrogativa do Legislativo expressa na nota dos representantes do mercado. A 163 não cria uma nova lei sobre a prática de publicidade, mas normatiza, nos limites de sua atribuição, outras práticas abusivas também contempladas no artigo 37, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor – formulado e aprovado pelo Legislativo –, que considera ilegal a publicidade que se vale da deficiência de julgamento e experiência da criança. Portanto, a competência do legislador não está sendo ignorada ou desrespeitada, ao contrário, está sendo enfatizada pela resolução do Conselho.

A nota das associações também parece desconhecer que o poder decisório concedido aos Conselhos Nacionais é parte indissociável do Estado Democrático de Direito, forjado na Constituição de 1988, fortemente influenciada pelos desejos de participação e de liberdades democráticas. Os Conselhos Nacionais apontam para uma nova relação entre Estado e sociedade civil. Nessas instâncias, as demandas das organizações devem ter tanto peso quanto às dos representantes do governo. Assim, a sociedade civil organizada não se presta ao papel de mera avalista de políticas pré-definidas.

Mas para que os Conselhos Nacionais se consolidem como esse mecanismo transformador e promotor da inclusão da sociedade nos rumos do país, suas resoluções precisam ser respeitadas. A vigência da Resolução 163 do Conanda será, portanto, um passo importante para a sociedade civil se firmar como uma das protagonistas na condução das políticas públicas e na efetivação da noção da criança como prioridade absoluta.

* Renato Godoy é jornalista, sociólogo e pesquisador do Instituto Alana.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.