Por Natasha Cruz e Bia Barbosa*
Como este blog reportou, em janeiro deste ano, a TV Cidade, emissora afiliada da Rede Record no Ceará, veiculou, por cerca de 20 minutos, no programa policial Cidade 190, cenas do estupro de uma menina de 9 anos. A repórter iniciou a matéria identificando a rua e o número da casa da vítima, exibindo as cenas do estupro (captadas por uma câmera dos pais da criança) repetidas vezes ao longo da matéria, enquanto entrevistava a família. As imagens permitiam identificar com facilidade a vítima e o agressor, pois foi possível ver os rostos, corpos e toda a cena de violência, estando apenas a imagem dos genitais embaçadas. O vídeo do caso teve grande repercussão nas redes sociais e no site oficial da emissora, chegando a ter 30 mil visualizações até às 17h do dia 08 de janeiro.
O caso, extremamente abusivo e violador de direitos infantojuvenis, gerou indignação na sociedade cearense contra a emissora, por ter explorado, em todos os sentidos, a imagem da vítima em busca de audiência. Uma nota pública exigindo a responsabilização da TV Cidade foi assinada por mais de 80 entidades e um ato público aconteceu na porta da empresa. Diversas organizações da sociedade civil, entre elas o Intervozes e o Cedeca-CE, também enviaram representação ao Ministério das Comunicações (Minicom), cobrando ações efetivas para que o órgão cumprisse “de forma célere e eficaz com seu dever de fiscalizar o respeito às normas em vigor para a radiodifusão e impeça que novas violações de direitos humanos sigam sendo praticadas impunemente pela TV Cidade no Ceará”.
O Departamento de Acompanhamento e Avaliação de Serviços de Comunicação Eletrônica do Minicom acatou a representação e, na última semana, comunicou o resultado do Processo de Apuração de Infração instaurado: multa no valor de R$23.029,34 para a TV Cidade. Na avaliação do Ministério, o vídeo transmitido viola o regulamento dos serviços de radiodifusão, que proíbe as concessionárias de “transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico”.
Em sua defesa, a TV Cidade alegou que havia adulterado a imagem para não permitir “em nenhuma hipótese, a identificação da menor” e que “a direção de jornalismo da emissora não pretendia divulgar a referida matéria”, porém o fez a pedido do pai da criança, que acreditava que “tornando o assunto de domínio público conseguiria a prisão do infrator e sua punição”. O Ministério das Comunicações, no entanto, considerou que as alegações da emissora não procediam, visto que a identificação da criança foi possível e que houve uma superexposição da sua intimidade, expondo a menina e sua família a uma situação de vulnerabilidade psíquica e moral.
Como a TV Cidade já possuía antecedentes infracionais, o Ministério decidiu aplicar a multa. O canal poderá recorrer, mas o caso já se torna emblemático. O valor da penalidade atribuído pelo Ministério é o mais alto já aplicado a uma TV por violações de direitos humanos em sua programação. Até agora, a maior multa para conteúdos deste tipo tinha sido aplicada, em 2013, à Rádio e Televisão Bandeirantes da Bahia: R$ 12.794,08, por exibir na emissora local e também em cadeia nacional uma entrevista com um jovem suspeito de estupro. Ao longo de mais de oito minutos, o suspeito foi ridicularizado e humilhado pela repórter Mirella Cunha, num caso que também ganhou repercussão nacional. A TV Bandeirantes recorreu da sanção aplicada pelo Ministério e, por conta disso, o processo administrativo não se tornou público.
Pela regulação em vigor, a fixação do valor da multa considera a gravidade da falta, a existência de advertências e processos de apuração de infração instaurados contra a prestadora de serviço, a reincidência e os antecedentes da entidade. Atualmente, no entanto, as multas no Brasil têm como teto o valor de R$ 76.155,21, que está longe de ser dissuasivo para os canais. Para se ter uma ideia, 30 segundos de inserção publicitária podem gerar R$ 15 mil para uma emissora. Assim, menos de 3 minutos de anúncio são suficientes para pagar o valor máximo de multa que qualquer programa pode receber. Assim, na prática, a sanção acaba favorecendo a perpetuação das infrações.
Para se ter uma ideia de quão limitada é a perspectiva de responsabilização das rádios e TVs brasileiras por violações de direitos humanos como esta, praticada pela TV Cidade, na França, multas por infrações deste tipo podem chegar a 3% da renda de uma operadora, indo a 5% em casos de reincidência. Em 1992, o órgão regulador francês (o Conselho Superior do Audiovisual) chegou a multar a TF1, principal TV privada francesa, em cerca de 4,5 milhões de euros por não respeitar as cotas de conteúdo nacional previstas às emissoras. A sanção marcou a história do canal e provocou uma reestruturação de toda a emissora para que este tipo de problema não se repetisse, funcionando inclusive como uma medida pedagógica.
No Reino Unido, as multas têm teto de 250 mil libras ou 5% da receita do canal (o que for maior). A diretriz geral do Ofcom, o órgão regulador britânico, é a de que, considerada a seriedade da infração, o valor de qualquer multa deve ser proporcional e “suficiente para garantir que a mesma funcionará como um incentivo eficiente ao cumprimento das regras”.
Aqui, ao contrário de França e Reino Unido, além do valor das penalidades ser insuficiente para levar as emissoras a deixarem de violar direitos em busca de audiência, há uma prática do Ministério das Comunicações de diminuir a punição prevista. São inúmeros os casos em que a avaliação inicial de uma sanção apontava para a aplicação de multas ao canal e, posteriormente, a emissora terminou sendo apenas advertida.
Certamente não será a multa de R$ 23 mil que fará a TV Cidade mudar sua linha editorial e passar a respeitar os direitos humanos nos chamados programas policialescos. Por isso, o Ministério Público Federal no Ceará também atuou no caso e garantiu, em março, a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Grupo Cidade de Comunicação. O TAC estabelece que o programa policial da TV Cidade que infringir os termos acordados exibirá um quadro com a retratação das imagens e das declarações ofensivas, esclarecendo a população acerca da abordagem ofensiva. Em caso de descumprimento dos compromissos acordados, o radiodifusor terá que pagar uma multa no valor de R$ 70 mil sobre cada programa veiculado.
A iniciativa do MPF é fundamental, mas, de toda forma, fica a questão: sendo o Ministério das Comunicações o órgão responsável pelo acompanhamento dos conteúdos difundidos pelas concessionárias do serviço de radiodifusão, não há mais nada que possa ser feito em casos assombrosos como este?
* Natasha Cruz e Bia Barbosa são jornalistas e integrantes do Intervozes.
Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.