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Liberdade de expressão: questão de vida ou morte

Por Thiago Firbida e Júlia Lima*

A existência da internet, de jornais de oposição e das cada vez mais frequentes manifestações de rua mostram que o direito à liberdade de expressão no Brasil passou a ser mais respeitado hoje se comparado a décadas atrás, quando da vigência da ditadura civil-militar e sua censura prévia. No entanto, para que este direito seja realmente efetivado no país há ainda um longo e sinuoso caminho a ser percorrido.

Seria isso o que diria, se estivesse viva, Fátima Benites, ex-membro do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Bela Vista, no Mato Grosso do Sul. Por anos, Fátima se empenhou em denunciar e combater atividades ilegais extrativistas na região, até ser morta por um pistoleiro no dia 21 de março de 2013.

O mesmo fim trágico teve o pescador Luiz Telles João Penetra, de Magé, no Rio de Janeiro, e ex-membro da Associação de Homens e Mulheres do Mar (Ahomar). Notório ativista da pesca artesanal, Luiz se destacou pelas denúncias que fazia dos impactos ambientais, na Baía da Guanabara, causados pelo complexo petroquímico existente no local. No dia 23 de junho de 2012, ele e seu colega de associação, Almir Nogueira de Amorim, foram encontrados mortos com os pés e mãos amarrados, poucos dias depois de terem participado da Cúpula dos Povos, realizada paralelamente à Rio+20.

Já Ângelo Rigon, morador da paranaense Maringá, teve mais sorte. Ele escapou com vida de um atentado que alvejou sua casa com cinco tiros, no dia 11 de agosto de 2013. Blogueiro bastante reconhecido na cidade, Ângelo fez diversas denúncias, por meio de seu blog, sobre irregularidades envolvendo a gestão pública e o empresariado locais.

Os três casos citados são apenas a ponta do iceberg de violações contra a liberdade de expressão que jornalistas, blogueiros, radialistas, ambientalistas, lideranças comunitárias e ativistas de direitos humanos enfrentam diuturnamente, no Brasil, quando se incumbem da tarefa de fiscalizar o poder e denunciar injustiças. Essas violações variam de gravidade: são ameaças de morte, sequestros, agressões físicas, verbais, tentativas de assassinato e, nos casos mais extremos, homicídios.

Foi com a intenção de sistematizar esses casos e fornecer ferramentas para inibir-los que a Artigo 19 lançou no último fim de semana o portal Violações à Liberdade de Expressão.

Quem acessá-lo encontrará uma vasta gama de conteúdo relacionado às violações cometidas contra a liberdade de expressão de defensores de direitos humanos (ambientalistas, sindicalistas, entre outros) e comunicadores (jornalistas, blogueiros, fotógrafos, radialistas, entre outros).

O portal traz notícias, análises, gráficos e até um mapa com a localização geográfica de defensores e comunicadores, bem como detalhes de cada caso de violação registrado pelo monitoramento da Artigo 19. O objetivo, com isso, é o de gerar o máximo de informações possível e possibilitar uma melhor compreensão do fenômeno no país.

Já na perspectiva da prevenção e da autoproteção, estão disponibilizados guias, vídeos e dicas sobre como agir em diferentes contextos que possam gerar vulnerabilidade – de cobertura política, passando por processos judiciais a protestos de ruas, entre vários outros.

O portal também aponta legislações e mecanismos oficiais, a nível nacional e internacional, que determinam como o Estado deve agir para proteger o exercício da liberdade de expressão. Afinal de contas, é dever do Estado não só proteger os direitos humanos, mas também não violá-los ele próprio, além de punir aqueles que violam.

Outro recurso para o qual o usuário poderá usufruir é um fórum, estabelecido dentro de uma conexão segura, que visa a servir de espaço para a constituição de uma rede entre vítimas de violações e organizações da sociedade civil que atuam na área. A premissa é a de que a articulação entre esses atores pode contribuir para a autoproteção.

Para nós, da Artigo 19, o terreno fértil para as violações à liberdade de expressão que hoje é o Brasil só poderá ser enfrentado por meio de políticas públicas que ajam nas frentes de prevenção e do combate à impunidade. Por sua vez, para que essas políticas sejam eficazes, é necessário que se preencha três requisitos.

O primeiro deles é reconhecer que as violações contra a liberdade de expressão de comunicadores e defensores de direitos humanos possuem natureza própria e não são meros reflexos do contexto maior da violência no país, como ainda querem crer certos setores.

O segundo requisito é a identificação dos elementos comuns que se inserem no contexto em que ocorrem essas violações, de forma que sirvam de norte para os esforços em atacá-las.

Por fim, deve-se ainda obter das autoridades um compromisso público e efetivo em investigar e responsabilizar os perpetradores por trás das violações, de modo a combater seriamente a cultura de impunidade que serve de base para que elas se perpetuem indefinidamente.

A luta pela liberdade de expressão no Brasil e no mundo precisa avançar. Entender quais são as ameaças e quem estão por trás delas, nos diferentes cenários em que elas podem acontecer, pode ser um importante passo para o devido reconhecimento e enfrentamento que essa questão realmente necessita. O portal “Violações à Liberdade de Expressão” busca contribuir para isso.

* Thiago Firbida e Júlia Lima são os oficiais do Programa de Proteção da Liberdade de Expressão, da ARTIGO 19

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Reportagem preconceituosa e anti-indígena concorre a Prêmio Esso

Por Luana Luizy*

Após publicar série de reportagens discriminatórias contra os Guarani da Terra Indígena Morro dos Cavalos (SC), a reportagem “Terra Contestada”, do jornal Diário Catarinense, pertencente ao grupo Rede Brasil de Comunicação (RBS), filial da Rede Globo no estado, foi indicada a concorrer ao 59.° Prêmio Esso de Jornalismo, considerado o principal da área no Brasil. O anúncio dos vencedores será nesta quarta-feira (12).

Em um especial dividido em cinco partes, os jornalistas afirmam que os indígenas Guarani são responsáveis pelo atraso nas obras de duplicação da BR-101 – rodovia que corta o território – e alegam que a não duplicação da BR gera atrasos e impactos na economia.

A abordagem é criticada pelos indígenas, que oficiaram o Ministério Público Federal para que fosse garantido direito de resposta. Até o momento, contudo, o MPF não se manifestou. “Não somos contra a duplicação, mas queremos entender como isso vai acontecer, pois a terra indígena é nossa casa”, apontou durante visita a Brasília, a cacique de Morro dos Cavalos, Eunice Guarani.

Com argumentos criticados por entidades indigenistas, os jornalistas constroem um discurso preconceituoso e discriminatório ao apontarem que a luta pela demarcação do território Guarani é conduzida por “agentes externos”, desconsiderando, assim, o protagonismo das populações tradicionais na luta pelo reconhecimento de sua terra.

Estes, inclusive, nem sequer foram ouvidos, embora na comunidade vivam caciques, anciões e professores. A reportagem usa como fonte o antropólogo Edward Luz, banido da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), principal instituição científica do País na área. Também relata a versão do Guarani Milton Moreira, que não mora no território. Os argumentos apresentados por ele também são desmentidos pelos moradores da região.

O desserviço ao jornalismo e à população também é visível quando se desconsideram os verdadeiros interesses econômicos de especuladores interessados na Terra Indígena Morro dos Cavalos, território que ainda hoje aguarda pela homologação pela presidência da República.

Não é de hoje que a campanha anti-indígena vem sendo colocada em prática pelo jornal contra o povo Guarani. O jornal criminaliza a luta indígena quando culpa os indígenas por mortes ocorridas na BR-101. Além disso, publica inverdades também ao afirmar que os Guarani não habitam tradicionalmente o Morro dos Cavalos e que o Tribunal de Contas da União (TCU) teria manifestado que a área não é tradicional. Não obstante, a ocupação da TI Morro dos Cavalos está amplamente demonstrada no procedimento administrativo de demarcação por meio de documentos históricos, mapas, livros e pela ampla memória oral.

A exclusão da visão dos indígenas e organizações indigenistas de reportagens que trazem apenas as visões dos grupos que se opõem aos direitos dos povos originários configura-se como um desrespeito ao direito à comunicação e informação. Estes deveriam ser pilares da democracia, mas tornam-se instrumentos de violações a partir do momento em que as empresas jornalísticas adotam uma postura parcial, desinformam e confundem o leitor que não tem familiaridade com o assunto e que acaba formando a sua opinião por meio das informações que chegam até ele, especialmente pelos meios de comunicação.

Assumir a comunicação como direito humano significa reconhecer o direito de todas as pessoas de ter voz e de se expressar, princípio ético que a reportagem viola ao não escutar os indígenas da TI Morro dos Cavalos. E para evitar que uma violação seja consagrada como exemplo de bom jornalismo, entidades que pedem a homologação da terra gritam “Esso não! Sou contra premiarem reportagens anti-indígenas!” e convidam todos e todas a se manifestarem, enviando e-mail para rp.consultoria@rpconsult.com.br.

*Luana Luizy é jornalista do Conselho Indigenista Missionário.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Democratização da comunicação: muito além do debate eleitoral

Por Eduardo Amorim*

O debate pós-eleitoral incorpora um tema novo, antes discutido aprofundadamente apenas em grupos restritos. A agenda da democratização da comunicação não é nova. É fundamental para a política, economia, cultura e a vida nas cidades brasileiras.

O grito ouvido durante o discurso de posse da presidente Dilma Rousseff: “O povo não é bobo. Abaixo a Rede Globo!”. A fala da candidata Luciana Genro no início do debate final do primeiro turno. O questionamento à cobertura no caso da Escola Base. E tudo que ocorreu após a criticada edição do debate entre Collor e Lula em 1989 são apenas as exceções que comprovam a regra. O tema é mais uma vítima do silenciamento promovido pelas principais empresas de comunicação do Brasil.

Por isso, passadas as eleições, é hora de fazermos uma reflexão que vá além das disputas partidárias para entender onde podemos chegar, ou para que caminhos essa discussão pode nos levar, diante do contexto de um Congresso Nacional com forte representação conservadora e uma quarta gestão petista no Palácio do Planalto. Para iniciar, uma provocação: você se lembra de um tema que sofreu censura na sua cidade em 2014? A verdade é que o silenciamento acontece diariamente, apesar da maioria não ficar sabendo. Na crítica cultural, no jornalismo esportivo, na economia, nas páginas de política e também em relação aos direitos urbanos.

No Recife, cito de cara o fato de um estudante da UFPE ter sido atingido com um golpe de estrovenga na cabeça por um funcionário público durante uma operação de higienização da cidade antes da Copa do Mundo.Um absurdo filmado, fotografado, mas que não mereceu nenhuma linha nos jornais pernambucanos. Por sinal, nem os mais criticados programas policiais da TV se referiram à violência. E pouco se ouviu falar até mesmo do movimento em que o jovem estava envolvido nas rádios pernambucanos, apesar do #OcupeEstelita ter sido talvez o mais forte movimento de resistência urbana durante o período do Mundial 2014 no Brasil.

A recente chacina em Belém é um exemplo que merece bastante atenção. A situação, para um jornalista com experiência em redações, parece ser um absurdo que mereceria estar naqueles históricos plantões de horas ao vivo na televisão, nas manchetes de jornais de todo o Brasil, ocupando espaço privilegiado nos portais e também nos debates de rádio. Ao contrário, se vê uma pequena cobertura, quase que pedindo desculpa por divulgar uma violência extrema, que aparentemente foi articulada via redes sociais para se vingar pela morte de um policial. O fato do número de mortes ainda não ter sido confirmado (terão sido nove ou mais vítimas?) só reforça a importância de uma cobertura corajosa.

Após o resultado eleitoral, o auditório que assistia à fala de posse da presidente Dilma Rousseff era formado basicamente por partidários da candidata vitoriosa, jornalistas e integrantes de movimentos sociais e partidos associados ao PT. Revoltados com as denúncias sem provas feitas pela revista Veja, às vésperas das eleições mais disputadas da nossa recente democracia, e a repercussão que deu a principal emissora de TV do Brasil, especialmente no sábado à noite, milhões ouviram o grito contra a Globo.

Mas, sinceramente voltarmos a falar como se fosse só a família Marinho o problema é reduzir demais um debate complexo. Como também é muito pouco pensar nessa questão apenas a partir do exemplo das eleições. Temos que ter noção de que os interesses financeiros por trás dos grupos de comunicação influenciam em todos os momentos, da vida esportiva à cultura de uma cidade, passando também pelo campo e os pequenos municípios, onde muitas vezes o domínio dos poucos veículos é ainda mais grosseiro.

Para aqueles que estão começando a olhar para esse jogo agora, é preciso deixar claro que a eleição é apenas um exemplo de como os grupos empresariais que controlam os grandes veículos de comunicação no Brasil pautam a nossa sociedade de acordo com o interesse deles. E para vencer a batalha para conseguir a democratização do setor, é preciso unir forças que representam diversas matizes sociais.

É preciso entender que o principal atingido pela manipulação da mídia não é o Governo Federal, ou qualquer outro gestor público, mas sim a população em geral. Refém de veículos de comunicação que têm nos anúncios sua principal fonte de renda, essas populações veem suas demandas muitas vezes silenciadas.

Por isso, a pauta da democratização da comunicação é das ruas. Muito antes de qualquer resultado eleitoral, é dos movimentos que fizeram recentemente a Semana pela Democratização da Comunicação e que lutam para construir o FNDC. Mas é também dos ativistas da internet e das rádios comunitárias, é dos artistas e comunicadores que ainda buscam espaço para desenvolverem seus trabalhos, mas é preciso que toda a sociedade assuma a importância desse tema.

Os questionamentos surgidos durante as eleições –  e que foram pauta também do ‘I Encontro dos Atingidos – Quem perde com os megaeventos e megaempreendimentos?’ – são uma importante oportunidade para reunir pessoas que acreditam na necessidade de lutar pelo direito à comunicação. Toda a movimentação relacionada à demanda pela reforma política também deve casar a democratização da comunicação.

É preciso ter foco e, ao mesmo tempo sonhar, pois podemos ter na comunicação uma ferramenta essencial para fazer um país mais justo.

*Eduardo Amorim é integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Coronéis eletrônicos continuam no Congresso

Por Bia Barbosa*

Passado o segundo turno das eleições presidenciais, volta à tona a discussão sobre a nova composição do Congresso Nacional e sobre como Dilma governará diante do crescimento de bancadas conservadoras. Nada foi dito até agora, entretanto, sobre um segmento parlamentar que tem tido enorme sucesso na defesa de seus interesses: os radiodifusores.

Não é novidade no Brasil o controle de meios de comunicação de massa por políticos – fenômeno conhecido por “coronelismo eletrônico”, em referência aos velhos oligarcas que controlavam o voto a partir do domínio da terra. Nas últimas décadas, também o domínio do ar – por onde trafegam as ondas do rádio e da televisão – passou a ser determinante para que políticos se perpetuem no poder.

Os casos clássicos já se tornaram folclore: a família Sarney, no Maranhão; a família Magalhães, na Bahia; Collor, em Alagoas; Barbalho, no Pará; e por aí vai. O que é pouco difundido, por questões óbvias, é que a prática do coronelismo eletrônico é disseminada em todo o país e adotada pela grande maioria dos partidos.

Dos atuais 40 deputados e senadores que controlam diretamente emissoras de radiodifusão, somente 7 tentaram e não conseguiram se reeleger neste pleito. Os que garantiram mais um mandato estão em partidos como PSB, PV, PRB, PDT, PSD, DEM e PR, representando estados como SC, SP, RJ, GO, PE, PI e RO. Ou seja, os coronéis da mídia tem várias colorações partidárias e muitos sotaques.

Alguns alçaram vôos mais altos que o Parlamento nacional. O deputado Renan Filho (PMDB) foi eleito em primeiro turno para o governo de Alagoas. Em sua declaração de bens apresentada à Justiça Eleitoral e também nos dados da Anatel, Renan Filho aparece como sócio do Sistema Costa Dourada de Radiodifusão, que possui três rádios no interior do estado.

Já o atual presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, também do PMDB, disputou – mas perdeu no segundo turno – o governo do Rio Grande do Norte, tendo na bagagem pelo menos quatro emissoras de rádio e a outorga da TV Cabugi, que leva o sinal da Globo aos potiguares.

Por fim, sem que este aspecto tenha sido destacado em seu currículo, concorreu ao posto mais alto do Executivo um conhecido radiodifusor de Minas Gerais: Aecio Neves, que, ao lado de sua mãe e sua irmã, é acionista da rádio Arco-Íris, retransmissora da Jovem Pan em Belo Horizonte. Outros parentes de Aecio, que agora voltou ao Senado, também controla emissoras no interior do estado.

Nenhum desses políticos reconhece praticar ilegalidades. Apesar de o artigo 54 da Constituição proibir que deputados e senadores firmem contrato com concessionárias de serviço público, deputados federais e senadores – assim como vereadores, prefeitos, deputados estaduais e governadores – continuam controlando canais de rádio e TV.

O Ministério das Comunicações, responsável por fiscalizar o serviço, alega estar de mãos atadas. Apesar de se declarar contra a posse de emissoras por políticos, o Ministro Paulo Bernardo disse que é preciso aprovar uma nova regulação do setor para proibir a prática.

Não é esta a compreensão do Ministério Público Federal e de amplos setores da sociedade que denunciam o uso político deste espaço público e a contaminação de processos eleitorais por emissoras de parlamentares. Tramita há três anos no Supremo Tribunal Federal uma ação movida pelo PSOL, a partir de iniciativa do Intervozes, que pede justamente o cancelamento dessas outorgas e a exigência de que radiodifusores eleitos, antes de tomar posse, se desfaçam do controle acionário dessas empresas. Trata-se de uma medida republicana, fundamental não só para garantir eleições livres, mas para que os meios de comunicação deixem de ser usados para fins privados no Brasil.

* Bia Barbosa é jornalista, mestre em políticas públicas e integrante da coordenação do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

A sociedade civil em ação contra o coronelismo eletrônico

Por Daniel Fonsêca*

Hoje (17) é o Dia Internacional pela Democratização da Comunicação. Além de comemorar a data, entidades promovem, ao longo desta semana, uma série de atividades com o objetivo de ampliar o debate e a coleta de assinaturas em apoio ao chamado Projeto de Lei da Mídia Democrática. O projeto propõe uma nova regulação do sistema de comunicação do país, a partir de medidas como o estímulo à concorrência e a proibição da outorga de concessões para políticos com mandato eletivo.

Nestas atividades, a denúncia contra políticos que são concessionários (ou que a família possui a concessão) de meios de comunicação ganhou as ruas de várias capitais do Brasil. Colagens de cartazes apontaram para este problema nunca enfrentado com rigor pelo Poder Público, ainda que a Constituição de 1988 proíba a vinculação de deputados e senadores com concessões públicas.

É importante, no entanto, trazer o debate sobre o chamado Coronelismo Eletrônico. Com a reconfiguração e o fortalecimento do movimento de comunicação no começo dos anos 2000, várias entidades, coletivos e redes também passaram a incidir neste tema.  As entidades demonstravam não apenas interesse nos debates, mas pretendiam também intervir objetivamente na questão para forçar uma tomada de posição do Ministério Público e do Poder Judiciário, judicializando casos específicos.

Foi o que fez o Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (ProJor), que, em 2005, protocolou uma representação à Procuradoria Geral da República em audiência ocorrida em Brasília em outubro do mesmo ano. À época, a direção do Instituto Projor, responsável pelo Observatório da Imprensa, era composta pelos jornalistas Alberto Dines, José Carlos Marão, Luiz Egypto e Mauro Malin. A fim de procurar o Ministério Público, o Projor financiou uma pesquisa, desenvolvida por Venício Artur de Lima, do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da UnB, a partir dos dados do cadastro de concessionários do Ministério das Comunicações. O relatório do estudo foi anexado à representação. Ela se baseou em pesquisa coordenada pelo professor Os dados restringiram-se aos deputados, poupando momentaneamente os senadores.

De acordo com a entidade, a investigação “reuniu indícios de que deputados e senadores são concessionários de rádio e televisão”, confrontando a Constituição, e que, “mais grave ainda”, parte desses parlamentares participava das reuniões da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados e da Comissão de Educação do Senado Federal. Essas comissões tratam exatamente das renovações e das homologações das concessões de rádio e televisão. A pesquisa identificou que, em 2005, na Câmara dos Deputados, pelo menos 51 dos 513 deputados são concessionários diretos de rádio e de televisão. O Projor acompanhou a tramitação de 762 processos de outorgas e renovações de emissoras comerciais de radiodifusão que entraram na pauta de votação. Um caso chamou a atenção: “os deputados Corauci Sobrinho (PFL-SP) e Nelson Proença (PPS-RS), respectivamente presidente e membro titular da CCTCI, participaram e votaram favoravelmente nas reuniões em que foram aprovadas as renovações de suas concessões de rádio, respectivamente a Rádio Renascença OM, de Ribeirão Preto (SP), e as Emissoras Reunidas OM, de Alegrete (RS)”.

A análise revelou que, neste caso, além da Constituição e do CBT, foram descumpridos o § 6º do artigo 180 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados e o artigo 306 do Regimento Interno do Senado Federal. Ambos preveem que, “tratando-se de causa própria ou de assunto em que tenha interesse individual, deverá o deputado dar-se por impedido e fazer comunicação nesse sentido à Mesa, sendo seu voto considerado em branco, para efeito de quorum” (apud Projor, 2005, p. 05). Tomando como referência as atas das reuniões da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), foi acompanhada a tramitação de 639 processos em 2003 e 123 em 2004, num total de 762 processos. De 2003, 181 foram transformados em Decretos Legislativos, sendo 118 renovações e 63 outorgas. Em 2004, apenas duas outorgas se transformaram em decretos. Nos dois períodos o total foi de 183.

Prática comum no relacionamento entre o governo federal e o Congresso Nacional há décadas, a concessão pública de emissoras de rádio e TV a parlamentares fere o Artigo 54[1] da Constituição. Os pedidos de outorga ou renovação podem ser vetados pelo Congresso Nacional, desde que respaldados por dois quintos de seus membros, em votação nominal.  Além de ações penal e civil, os envolvidos podem ser punidos com a perda do mandato. Na Ação Civil Pública, Ministério Público Federal requereu a nulidade de concessões de rádio e televisão, pois as considerou “viciadas” em razão de ofensa ao princípio da impessoalidade, uma vez que “os próprios sócios de tais empresas, na condição de parlamentares, participaram das referidas votações”. Para o MPF, a renovação dessas outorgas violou o § 3º do Artigo 33 da Lei nº 4.117/62, segundo o qual “os prazos de concessão e autorização serão de 10 (dez) anos para o serviço de radiodifusão sonora e de 15 (quinze) anos para o de televisão, podendo ser renovado por períodos sucessivos e iguais se os concessionários houverem cumprido todas as obrigações e contratuais, mantido a mesma idoneidade técnica, financeira e moral, e atendido o interesse público”.

Em julho de 2007, o Ministério Público Federal no Distrito Federal (MPF/DF) propôs ações civis públicas para anular a renovação e/ou concessão de outorga de cinco empresas de rádio e TV de deputados federais. Para o MPF, houve favorecimento pessoal nas concessões, uma vez que os parlamentares, mesmo sendo sócios das empresas concessionárias, participaram das votações em que foram analisados e deferidos os pedidos de outorga e de renovação dessas concessões.

O MPF analisou todas as atas da CCTCI de janeiro de 2003 a dezembro de 2005 e constatou que vários parlamentares utilizaram a função exercida na comissão para beneficiar, direta ou indiretamente, interesses pessoais relativos à renovações ou a outorgas de serviços de radiodifusão. Foram denunciados os deputados Nelson Proença (PPS-RS) e os ex-deputados Corauci Sobrinho (ex-PFL, atual DEM-SP), João Batista (PP-SP), João Mendes de Jesus (sem partido) e Wanderval Santos (ex-PL, atual PR-SP). Eles eram sócios, cotistas ou diretores de empresas concessionárias do serviço de radiodifusão à época em que essas mesmas empresas tiveram os pedidos de renovação e/ou concessão aprovados na comissão. Os casos analisados deram origem aos seguintes processos junto ao Tribunal Regional Federal – 1ª Região (TRF-1):

1. Alagoas Rádio e Televisão (Maceió-AL); João Mendes (sem partido); sócio-diretor – Processo 2007.34.00.026698-1

2. Emissoras Reunidas (Caxias do Sul-RS); Nelson Proença (PPS-RS); sócio – Processo 2007.34.00.026697-8

3. Rádio Continental FM (Campinas-SP); Wanderval Santos (PL/SP); sócio – Processo 2007.34.00.026700-0

4. Rádio Renascença (Ribeirão Preto-SP); Corauci Sobrinho (PFL/SP); sócio – Processo 2007.34.00.026702-7

5. Sociedade Rádio Atalaia de Londrina (Londrina-PR); João Batista (PP/SP); sócio – Processo 2007.34.00.026699-5 (MPF…, 25 jul. 2007)

Os procuradores da República argumentaram que os atos de concessão violaram “os princípios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade”. Foram propostas cinco ações civis públicas contra a União e contra as empresas de radiodifusão beneficiadas pelas votações dos deputados. O MPF pediu, na ação, medida liminar suspendendo imediatamente as concessões e, no mérito, requereu a anulação definitiva das outorgas. De acordo com os procuradores, além disso, caberia também a condenação das empresas ao pagamento de multa por dano moral coletivo, e os deputados poderiam ainda ser processados por improbidade administrativa.

Dos cinco processos, pelo menos um resultou em julgamento em primeira instância. Em acórdão publicado em 29 de outubro de 2013, a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região – seguindo o relator, o juiz Marcio Barbosa Maia – manteve, por unanimidade, a decisão da juíza federal Ivani Silva da Luz. Em julho de 2010, ela havia determinado a anulação da sessão da Câmara dos Deputados na qual havia sido renovada a concessão da rádio Atalaia, de Londrina (PR), vinculada ao então deputado federal João Batista pelo PP de São Paulo. O acórdão se baseou no entendimento de que a participação do parlamentar na sessão como sócio da rádio violou os princípios da moralidade e da impessoalidade. De acordo com a juíza, que proferiu a sentença inicial, “o fato de parlamentar sócio da requerida haver participado da votação que renovou a concessão macula os princípios da moralidade e da impessoalidade. Isso porque o parlamentar tinha interesse direto na renovação, de modo que é induvidoso que seu voto não se pautou pelo interesse público, senão em seu próprio benefício. […] A conduta em tese endossa na sociedade a convicção de os parlamentares podem praticar atos administrativos em seu favor, e, em última instância, que a máquina administrativa não é do povo, senão que se destina a satisfazer quem está no poder” (TRF-1ª REGIÃO, 29 out. 2013).

A decisão, inédita no país, abriu o precedente para o questionamento de outras outorgas ou renovações de concessões em sessões que tiveram a participação direta de sócios, cotistas ou dirigentes de empresas de radiodifusão concessionárias. No entanto, além de caberem recursos, a decisão do TRF ataca somente um dos vícios presentes no sistema de outorgas de radiodifusão e não chega a julgar o mérito principal, que é o fato de políticos com mandatos serem concessionários de radiodifusão, contrariando o Artigo 54 da Constituição.

Na apelação apresentada ao Tribunal, a rádio Atalaia sequer respondeu ao questionamento sobre o fato de um parlamentar ser sócio da emissora, argumentando que “o parlamentar que participou da sessão é acionista não-administrador [sic] da Radio Atalaia”. Alegou ainda que a participação do deputado João Batista na sessão não comprometeria o julgamento da comissão que aprovou a renovação da concessão. No recurso, a ré afirmou que foram “apresentados documentos e comprovada a regularidade da emissora quanto às questões fiscais, sindicais e trabalhistas”, advogou que o “processo homologatório apresenta critérios objetivos” e afirmou “que foram atendidos os requisitos previstos na legislação”. A interpretação do TRF coíbe a atuação dos parlamentares em benefício próprio para acessar e manter concessões públicas de radiodifusão.

Este é mais um caso que pode ser inserido no conjunto de interferências (diretas ou indiretas) que o Poder Judiciário tem produzido nos rumos do direito à comunicação, fazendo das cortes um espaço de decisão política e mesmo de “legislativo” na área, considerando as jurisprudências que acabam regulamentando dispositivos legais, como expõe o professor da UnB Venício Lima. São exemplos de judicializações de conflitos essencialmente políticos o fim da exigência de diploma de nível superior para jornalista, em 2009; a ação de inconstitucionalidade contra o Decreto da TV Digital, declarada improcedente em 2010; o julgamento pela inconstitucionalidade total da Lei de Imprensa (5.290/67) – e a consequente derrubada da regulamentação do direito de resposta, prevista no Capítulo IV dessa legislação – e, mais recentemente, o questionamento da vinculação horária da classificação indicativa junto ao Supremo Tribunal Federal (STF).

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[1] Segundo o Artigo 54 da Constituição Federal, senadores e deputados federais não podem, de acordo com o Inciso I, item “a”, desde a expedição do diploma, “firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes”; e, de acordo com o Inciso II, Item “a”, desde a posse, “ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada”.

* Daniel Fonsêca é jornalista, integrante do Conselho Diretor do Intervozes e doutorando em Comunicação na ECO/UFRJ.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.