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Eduardo Cunha entrega comunicação da Câmara para bancada evangélica

Por Mayrá Lima*

Considerado o inimigo n.º 1 um do Marco Civil da Internet na Câmara Federal, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), atual presidente da Casa legislativa, protagoniza agora outra medida polêmica na área da comunicação. De acordo com o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), é dada como certa a indicação do deputado Cleber Verde (PRB-MA) para gerir todo o sistema de comunicação da Câmara – composto por uma emissora de TV, uma de rádio, um jornal impresso, o site da Câmara e toda a estrutura de relações públicas da Casa.

Cleber Verde é membro da chamada bancada evangélica. Vem do Partido Republicano Brasileiro, que possui ligação com a Igreja Universal do Reino de Deus, e foi um dos apoiadores de Cunha, também integrante da bancada formada por parlamentares orientados por dogmas religiosos.

A nomeação de Verde faz parte de uma série de mudanças nas chefias da Câmara. A disputa de cargos pela bancada neste processo visa dificultar a aprovação de leis que contrariem os interesses dos evangélicos, como o projeto de criminalização da homofobia e os de descriminalização do aborto, ou que ampliem o conceito de família, com a inclusão em leis de direitos aos casais homossexuais.

É a primeira vez, desde que a Câmara dos Deputados instituiu um sistema próprio de comunicação, que ocorre este nível de ingerência política em sua estrutura, historicamente dirigida por profissionais de carreira – ainda que a indicação fosse feita pela Mesa Diretora.

Com a estrutura de chefia ocupada por servidores, mesmo que não garantida, conseguia-se uma espécie de equilíbrio entre as forças políticas ali presentes, já que os funcionários da Câmara não podem sofrer pressões político-partidárias na execução de suas funções.

Ao ser indagado pelo deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) sobre a medida, durante reunião do Colégio de Líderes na semana passada, Cunha justificou a entrega da Secretaria de Comunicação ao PRB de uma forma, no mínimo, inusitada. Segundo ele, “esta é a Câmara dos Deputados e não a Câmara dos Servidores”. Para o novo presidente, eleito com os votos de mais da metade da nova legislatura, “não faz sentido a TV Câmara, por exemplo, apresentar, aos domingos, programa sobre chorinho para concorrer com o Domingão do Faustão”.

Ainda que o cargo de Cleber Verde não interfira, diretamente, na tramitação de projetos de lei, seu papel será definidor na maneira de como a Câmara passará a divulgar e cobrir jornalisticamente debates que interessam politicamente à bancada evangélica.

O risco não pára por aí. Segundo Jean Wyllys, Cunha ainda pretende contratar uma pessoa de fora do quadro concursado da Casa para comandar a programação da TV Câmara. Este profissional, denunciou o deputado em uma rede social, seria um dos diretores da Rede Record, também ligada à Igreja Universal. Tal jornalista assumiria um cargo Comissionado de Natureza Especial, cuja faixa salarial chegaria a 16 mil reais.

É importante lembrar que a TV Câmara, ainda que com dificuldades de transmissão em sinal aberto, é uma das emissoras com maior audiência entre o conjunto das legislativas. Em março do ano passado, conseguiu ter mais pontos no Ibope que canais como Sony, ESPN, GNT e até mesmo a HBO.

Mesmo com a missão de divulgar, prestar contas e atribuir transparência aos atos legislativos dos deputados federais, o sistema de comunicação da Câmara dos Deputados conseguiu, nos últimos anos, imprimir uma lógica de prestação de serviços públicos e até mesmo educativos à sua programação geral e cobertura jornalística. Tanto que é no campo público que a TV Câmara se autodescreve quando buscamos informações sobre a TV.

Além do conteúdo essencialmente jornalístico, a emissora veicula um número importante de debates que não se vêem costumeiramente nos canais comerciais e uma programação cultural que prioriza a produção nacional, além de dispor de um acervo considerável de filmes documentais produzidos por seu corpo de funcionários. A diversidade e pluralidade de conteúdos e materiais que atendem a diversos públicos é justamente um dos principais diferenciais da comunicação da Câmara. E, o melhor, sem a vinculação à propaganda comercial que condicione sua produção.

Ao contrário do que entende o deputado Eduardo Cunha, a régua para a medição da qualidade do sistema de comunicação da Câmara nunca pode ser a mesma de uma emissora privada, pois tem objetivos e compromissos de caráter público, construídos pelo próprio legislativo, incomparáveis com os canais comerciais. Caráter este que atende ao propósito de dar visibilidade à extensão do que acontece na sociedade, que é mais ampla e complexa que o lugar do pronto atendimento de seus representantes – no caso, o conjunto dos deputados.

Ao entregar todo sistema para um representante da bancada evangélica, Cunha não só atenta contra a laicidade da comunicação da Câmara como também ameaça a produção artística e cultural que tem na TV e na Rádio Câmara um potencial distribuidor que ameniza o cerco imposto pela mídia comercial à diversidade necessária a este setor.

* Mayrá Lima é jornalista, mestra em Ciências Sociais e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Privacidade na internet: chega de andarmos todos nus

Por Marina Cardoso*

A Prefeitura de São Paulo implementou o bilhete único mensal. Para usá-lo, o cidadão deve fazer um cadastro com seus dados pessoais e foto no site da empresa de transporte, e então receber um cartão pessoal e intransferível. Ao mesmo tempo, e silenciosamente, são instaladas câmeras nas catracas dos ônibus da cidade, de forma a garantir a identificação e controle dos passageiros. À primeira vista, este é um projeto de transporte público, mas suas implicações adentram outro campo: o do direito à privacidade.

Por ser um cartão pessoal, usado em trens, metrô e ônibus, o bilhete único pode mapear os hábitos dos cidadãos – o que pode ser um excelente instrumento para o planejamento do transporte público, desde que estruturados os sistemas adequados. Mas, ao mesmo tempo, pode se tornar o instrumento perfeito para a vigilância massiva. Com ele, é possível, por exemplo, desenhar quem encontra quem na cidade, onde e em quais horas do dia. E, no entanto, apesar desse potencial todo, após o cadastro para utilização do bilhete único mensal, não há no site da SPTrans qualquer menção à política de privacidade ou explicação e pedido de concordância do cidadão para uso de seus dados.

Não cabe aqui o debate sobre modelo de transporte. Mas este é um excelente exemplo de como, e rapidamente, as informações sobre os cidadãos/ãs e consumidores/as estarão estruturadas, em bancos de dados, de forma a permitir seu cruzamento por sistemas chamados de “big data” ou “business inteligence” (BI) com finalidades as mais diversas, sem que estejamos sob controle desse processo.

No entanto, precisamos ter em conta que as tecnologias não são necessariamente boas ou ruins quanto aos seus fins. O seu uso será definido pelos interesses predominantes na sociedade. Foi isso que aconteceu com qualquer tecnologia já desenvolvida pelo ser humano – seja o avião, que serve para transporte ou bombardeio, ou a explosão atômica, que gera energia ou destrói cidades.

Assim, neste momento, grandes companhias de tecnologia da informação (TI) contratam e pagam, muito bem, “evangelizadores” do big data para apregoar os benefícios de implantação dessa tecnologia. Cabe apontar que há, de fato, grande potencial para o uso de informações estruturadas para o bem, seja para identificar padrões de adoecimento, seja para o planejamento de políticas de transporte ou para a oferta de melhores serviços.

Por outro lado, entidades da sociedade civil começam a questionar se tal capacidade técnica servirá para reforçar a segregação e exclusão econômica e social nas quais é calcada nossa sociedade. Perderão os pobres e as minorias oprimidas?

Considerando a tendência de dados de saúde digitalizados e em rede (há diversos projetos públicos e privados nesse sentido), o que acontece se um empregador consegue ter acesso à ficha médica dos candidatos? Aqueles que têm doença crônica, serão tratados de forma igual em um processo de seleção?

Malkia Cyrill, do Center for Media Justice, importante figura no debate de comunicação e parte do movimento negro dos Estados Unidos – tradicionalmente alvo de vigilância e controle por parte das forças de Estado –, é categórica ao afirmar: “qualquer sistema deve ser avaliado não pela intenção do proponente, mas pelos resultados reais” que proporciona. Assim, não importa que a vigilância massiva, via acesso a dados pessoais, seja perpetrada em nome da segurança nacional. O fato é que ela viola o direito à privacidade de toda uma comunidade, e os resultados do ponto de vista da segurança são pífios.

Todas essas problematizações devem ser feitas neste momento pelos brasileiros. Aqui, no país do homem cordial, como definiu Sergio Buarque de Hollanda, nunca se aprovou uma lei de proteção de dados pessoais. Estamos vulneráveis tal como deve se sentir uma pessoa nua, a caminhar pelas ruas de uma grande cidade.

Ainda não temos proteção suficiente, por exemplo, se uma empresa ou a Receita Federal compartilhar nossos dados ou se o governo deixar vazar o perfil socioeconômico dos beneficiários do Bolsa Família. Os dados, de alguma forma bizarra, poderão parar em CDs, vendidos em cantos escondidos da Santa Efigênia, em São Paulo.

O aumento da digitalização, dos negócios a partir de dados pessoais e das nuvens web combinado com a ausência de proteção formam o cenário do terror. Sem qualquer regulação, as chances de uso tenebroso das novas tecnologias aumentam vertiginosamente. A balança pesa para o lado errado.

Projeto de lei em consulta pública

A boa notícia é que o governo federal, em especial o Ministério da Justiça, compreendeu que, no atual cenário, é urgente avançar na garantia à privacidade. Depois de cerca de cinco anos de desenvolvimento interno, um anteprojeto de lei de proteção de dados pessoais foi finalmente colocado em consulta pública na web, seguindo o excelente exemplo da construção do Marco Civil da Internet, aprovado no ano passado.

O anteprojeto prevê que as pessoas sejam informadas de forma clara e ostensiva, no momento mesmo da coleta, sobre como seus dados serão utilizados e processados. Será exigido consentimento por escrito para a coleta. Os dados não poderão ser utilizados para outros fins e a negativa de coleta de dados não pode impedir o acesso a produto ou serviço, ao menos que eles sejam essenciais para sua efetivação. Ou seja, o projeto de lei dá poder ao cidadão para controlar seus dados pessoais. Será proibido ainda formar bancos de dados que possam levar à discriminação de usuários, algo fundamental.

Além disso, o anteprojeto prevê que os órgãos públicos ficam proibidos de transferir dados pessoais para entidades privadas, exceto em casos de execução terceirizada ou mediante concessão e permissão de atividade pública que o exija, e exclusivamente para fim específico e determinado. Trata-se de uma proposta importante, especialmente depois da bizarra tentativa de acordo do Tribunal Superior Eleitoral com a Serasa, em 2013, que previa repasse de dados cadastrais de 141 milhões de eleitores brasileiros para a empresa. Em troca, a Serasa forneceria mil certificados digitais ao TSE.

O anteprojeto ainda prevê a regulação, fiscalização e acompanhamento dos dados pessoais por órgão específico, de forma a defender os interesses dos cidadãos e consumidores. E, ainda, cuidados a serem tomados por quem manipula bancos de dados e sanções no caso de desrespeito às normas.

A proposta do Ministério da Justiça, inspirada no modelo europeu de lei de proteção de dados, é um avanço gigantesco para a garantia de direitos no Brasil. No entanto, alguns pontos ainda precisam ser bem debatidos e, nesse sentido, vale à pena a atenção em relação a dois termos utilizados: metadados e dados anonimizados. O uso de termos pseudotécnicos tem sido um artifício para flexibilizar as regras de coleta, uso e compartilhamento de dados pessoais por empresas e governos e, assim, pesar a balança novamente para o lado errado.

O metadado é aquele que traz informações sobre uma comunicação, mas sem revelar seu conteúdo e, por isso, defendem alguns, são dados menos sensíveis ou críticos. Ora, muitas vezes saber para quem se ligou, a que horas e para quem se ligou na sequência pode ser incrivelmente revelador. Digamos que uma pessoa faça ligações para um serviço de atendimento a suicidas e fique na linha por um longo período; ou então que uma pessoa ligue para um serviço de auxílio a indivíduos soropositivos. Caso qualquer uma dessas informações venha a público, pode haver graves implicações na vida pessoal, profissional e até nos serviços que pode contratar. Será que essa pessoa conseguirá contratar um financiamento bancário nos próximos dois anos?

Outra armadilha contra a qual devemos nos precaver é o da “anonimização de dados”. Atualmente, é quase impossível coletar dados que não dêem uma indicação quase precisa de quem é o cidadão/cidadã. As pesquisas apontam que a partir de dois ou três dados e mais algumas buscas na Internet uma pessoa ou dado deixa de ser anônimo.

Estamos no caminho certo e será uma grande vitória dos defensores dos direitos humanos e dos direitos dos consumidores se uma lei de proteção de dados pessoais, tal como a proposta pelo Ministério da Justiça, for aprovada. Não deixemos que algumas palavrinhas nos levem ao erro.

* Marina Cardoso é jornalista e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

No carnaval, mídia promove violência contra as mulheres

*Por Mabel Dias

Em pleno carnaval, onde se registra um aumento nos casos de violência, a cerveja Skol resolveu lançar uma campanha publicitária que trata as mulheres – mais uma vez – sem opinião própria e à mercê dos homens. A campanha trazia frases como “Esqueci o não em casa”, “Topo antes de saber a pergunta”, entre outras, espalhadas em outdoors na cidade de São Paulo.

As frases chamaram a atenção da publicitária Pri Ferrari e da jornalista Mila Alves, que, com um olhar crítico e atento, observaram o incentivo à perda de controle, em um período onde já se registra um alto índice de estupros. Elas decidiram então fazer intervenções nos materiais, acrescentando outras palavras aos outdoors para reforçar o respeito às mulheres e o não à violência.

A reação e intervenção de grupos feministas conseguiu constranger a referida marca de cerveja, que se viu obrigada a retirar a campanha das ruas paulistas. Foi uma vitória das mulheres, ainda que o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) não tenha sequer se manifestado a respeito.

A máxima no imaginário popular e machista é que, quando uma mulher diz “não”, ela está querendo dizer “sim”. Isso é usado como justificativa para os crimes de violência, entre eles o de estupro, que acontecem com mais intensidade no carnaval.

Outra violência frequente no período são os beijos forçados nos blocos. Mesmo assim, a afiliada da Rede Globo na Bahia lançou uma enquete em um de seus telejornais perguntando se o beijo forçado deveria ser proibido ou não. Não é possível aceitar este tipo de posicionamento vindo de um veículo que forma opinião.

A enquete também chegou às redes sociais e repercutiu negativamente. A deputada federal Jandira Feghali (PC do B-RJ), por exemplo, afirmou que “este é o tipo clássico de jornalismo que só ajuda a agravar mais o machismo da sociedade e a visão da mulher como posse do homem”.

Sobre a intervenção na campanha da Skol, Pri Ferrari postou a ação em seu perfil no Facebook, que teve mais de 20 mil curtidas e quase 8.000 compartilhamentos. A iniciativa chegou até a Ambev, responsável pela fabricação da cerveja. O diretor da empresa ligou para a publicitária informando que iria montar uma força tarefa para retirar todas as peças publicitárias de circulação.

Porém, os estereótipos construídos pelas propagandas de cervejas não têm só na Skol seu exemplo. Já é incontável a quantidade de ações de grupos feministas contra o machismo nas peças publicitárias. A marca Itaipava, desde o mês de janeiro, traz explicitamente a mulher como mercadoria em sua propaganda. As cenas são as clássicas do machismo: uma mulher que pouco fala, dona de um bar, vestida com roupas minúsculas, servindo cerveja aos homens e que tem o nome de “Verão”, em uma alusão à estação do ano.

No texto “A cerveja e o assassinato do feminino”, a doutora em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), Berenice Bento, afirma que “nesses comerciais não há metáforas. A mulher não é “como se fosse a cerveja”: é a cerveja. Está ali para ser consumida silenciosamente, passivamente, sem esboçar reação, pelo homem. Tão dispensável que pode, inclusive, ser substituída por uma boneca de plástico, para o júbilo de jovens rapazes que estão ansiosos pela aventura do verão”.

Berenice Bento considera que, mesmo com a luta do movimento feminista, que pauta a violência contra as mulheres como uma das piores mazelas, a estrutura hierarquizada das relações entre os gêneros ainda é muito presente. Ela revela as múltiplas fontes que alimentam o ódio ao feminino.

As campanhas publicitárias das cervejas no Brasil retratam bem isso. E não se pode dizer que isso é natural ou uma “brincadeira”. É o retrato do machismo que mata mulheres e meninas. Retrato de uma sociedade que precisa ser transformada, e que atitudes como as de Pri Ferrari e Mila Alves, ou de iniciativas como as da Rede Mulher e Mídia, sempre atenta e combativa às violações à imagem da mulher nos meios de comunicação, precisam sem ampliadas e divulgadas.

*Mabel Dias é jornalista e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Marco Civil da Internet: começa uma nova batalha

Por Helena Martins e Jonas Valente*

O caráter da Internet e os direitos e deveres dos usuários da rede são objetos de consulta pública promovida pelo Ministério da Justiça por meio de uma plataforma virtual. Iniciada na última quarta-feira (28), ela trata da minuta do decreto presidencial que vai regulamentar o Marco Civil da Internet**. Não é exagerado afirmar que o que está em jogo é o futuro das comunicações no Brasil.

Com a consulta, tem início nova batalha. O desafio é garantir uma regulamentação que assegure os avanços conquistados com a aprovação da norma, no ano passado. Um dos pontos mais sensíveis é a neutralidade de rede, princípio que estabelece que todo o conteúdo que trafega na rede mundial de computadores deve ser tratado igualmente.

A norma prevê que a neutralidade poderá ser dispensada em casos relacionados aos requisitos técnicos indispensáveis para a prestação do serviço e à possível priorização do tráfego de conteúdo relativo aos serviços de emergência. Na prática, contudo, tem sido comum vermos ações empresariais que colocam em questão a neutralidade e, com isso, o caráter aberto da rede.

Exemplos disso são os contratos que possibilitam acesso ilimitado e sem uso de franquia a determinados aplicativos, como faz a TIM em parceria com o WhatsApp ou a Claro com o Twitter e o Facebook. Hoje, até mesmo a Justiça tem dificuldade de estabelecer se essas práticas vão de encontro à lei. Um cenário que favorece as empresas, mas golpeia a conquista da neutralidade. Princípio que não queremos que se transforme em uma palavra sem efetividade.

Privacidade

Também está em questão a proteção dos usuários. O Marco Civil já garante que os dados pertencem a eles e que a venda de informações pessoais ou sobre acesso pelas empresas só pode ocorrer com a autorização expressa do internauta. Ocorre que muitas vezes essa permissão é dada quase que automaticamente, por meio de cliques rápidos em links acompanhados por explicações em letras miúdas. Ou mesmo sem informações acessíveis.

É preciso criar padrões que assegurem maior clareza sobre procedimentos de segurança e de sigilo adotados pelas empresas e sobre o uso dos nossos dados pessoais. Além disso, tendo em vista que os registros deverão ser guardados pelos provedores para que possam ser acessados em caso de determinação judicial, a regulamentação deverá tratar dos padrões de segurança para a guarda e disponibilização desses dados.

A definição é importante para evitar que o armazenamento previsto na norma acabe legalizando e promovendo a vigilância em massa dos usuários. Também para enfrentar a lógica do controle, podem ser propostos mecanismos que garantam que a sociedade tenha conhecimentos sobre o uso dessas informações por parte das autoridades. Caso percamos essa batalha, poderemos ficar todos e permanentemente vigiados e sob suspeita.

Acesso

A regulamentação do Marco Civil deve tratar de forma menos detalhada, mas ainda assim não menos importante, dos princípios e objetivos que apontam para a essencialidade do serviço de acesso à Internet e para a garantia de que este seja assegurado a todos os brasileiros.

Uma primeira mudança que deve fazer parte do detalhamento da lei é fazer com que este serviço possa ser prestado em regime público, ou seja, que haja obrigações de universalização, de continuidade do serviço e controle maior sobre as tarifas e seus reajustes. Esse regime seria aplicado fundamentalmente àquelas operadoras que atuam no atacado, permitindo que no varejo (na prestação do serviço de acesso diretamente ao cidadão) seja mantido o regime privado.

Outra medida fundamental para a universalização do acesso à Internet é o estabelecimento de metas de atendimento a municípios e domicílios, incluindo, além de acessos fixos, centros coletivos a exemplo dos telecentros. Combinadas a elas, a regulamentação do Marco Civil pode envolver a melhoria dos parâmetros de qualidade, com obrigações relativas à continuidade do serviço e ao percentual da velocidade contratada.

Governança

O Marco Civil também traz em seus artigos diretrizes para a atuação do Poder Público em suas várias esferas. A regulamentação pode consolidar um sistema nacional de governança calcado no papel protagonista do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.Br) e na criação de comitês congêneres nos estados para acompanhamento das metas e da prestação dos serviços, de modo que este sistema de governança seja transparente, aberto e permeável à participação da sociedade.

Todos esses aspectos são fundamentais para resistir à transformação da Internet em um espaço cerceado e pautado por interesses privados e para fortalecer a luta por direitos no ambiente virtual. Uma vez mais, a batalha será intensa, afinal não são poucos ou frágeis os grupos que se opõem a um ambiente livre e pautado pela compreensão da comunicação como um direito fundamental.

Diante deste cenário, a participação popular – chave das conquistas na formulação e aprovação do Marco Civil da Internet – uma vez mais é nossa maior arma nesse enfrentamento.

* Helena Martins é jornalista, doutoranda em Comunicação Social pela Universidade de Brasília e representante do Intervozes no Conselho Nacional de Direitos Humanos. Jonas Valente é jornalista, doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília e integrante da Coordenação Executiva do Intervozes.

** Além da consulta sobre o Marco Civil da Internet, também foi aberto espaço para Debate Público do Anteprojeto de Lei sobre Proteção de Dados Pessoais, que será tratado posteriormente neste blog.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Uma agenda de curto prazo para o Ministério das Comunicações

Nesta quarta-feira (28), o ministro das Comunicações Ricardo Berzoini recebeu a executiva do Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações (FNDC), que reúne os principais movimentos e organizações que defendem a liberdade de expressão e o direito à comunicação no país. O Intervozes esteve presente. Na pauta, necessariamente, o debate sobre como Berzoini pretende conduzir as discussões públicas sobre a elaboração de um novo marco regulatório para o setor no Brasil. O ministro reafirmou as declarações já feitas na imprensa: esta gestão Dilma quer enfrentar o tema, “desmistificando conceitos e compartilhando informações”, como explicou.

O processo de construção e aprovação de um novo marco regulatório, entretanto, levará tempo e encontrará obstáculos não apenas junto ao empresariado, mas também no Congresso Nacional.

Como o quadro atual do sistema midiático brasileiro requer ações urgentes, bastando para isso vontade política e uma mudança de postura do Ministério das Comunicações, o FNDC apresentou a Berzoini questões que podem ser tratadas no curto prazo, independentemente da aprovação de uma nova lei geral para o setor. Isso porque o marco normativo atualmente em vigor no Brasil já garante os elementos necessários para que tais desafios sejam finalmente enfrentados por essa gestão governo federal. É só querer.

Compartilhamos abaixo algumas delas, na expectativa de que o nomo ministro efetivamente cumpra o que tem anunciado: fazer diferente.

1. Proibição de outorgas para deputados e senadores

O artigo 54 da Constituição aponta, em seus dois primeiros parágrafos, como fundamento da República, que deputados e senadores não podem firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público. O artigo 38 do Código Brasileiro de Telecomunicações também determina, em seu parágrafo primeiro, que não pode exercer a função de diretor ou gerente de concessionária, permissionária ou autorizada de serviço de radiodifusão quem esteja no gozo de imunidade parlamentar ou de foro especial. No entanto, há 40 deputados federais e senadores, da legislatura que termina neste domingo (1), que controlam diretamente pelo menos uma emissora de rádio ou televisão em seu estado de origem.

2. Combate aos arrendamentos/subconcessões

Levantamento de arrendamentos na grade de programação da TV aberta, feito pelo Intervozes, aponta que algumas emissoras chegam a ter 92% do seu tempo vendido para terceiros, como a Rede 21, do Grupo Bandeirantes. Há casos também de emissoras maiores, como a RedeTV, que cresceu, nos últimos quatro anos, de 32% para 50% o percentual de sua grade arrendada. As igrejas cristãs são as responsáveis pela parte mais significativa dessas compras. A Igreja Universal do Reino de Deus, proprietária da Record e da TV Universal, por exemplo, paga cerca de 12 milhões por mês para o Canal 21 e para a CNT. Recentemente, o Ministério Público Federal de São Paulo entrou com três ações contra arrendamentos ilegais. Foram acionados na Justiça o grupo de TV CNT e o Canal 21 do grupo Bandeirantes pelo arrendamento ilegal de 22 horas diárias das suas programações para a Igreja Universal do Reino de Deus. O Ministério das Comunicações é réu nas ações, pois o MPF considera que o órgão deveria impedir a prática, e não o faz.

Segundo o MPF, a subconcessão é inconstitucional pois (i) viola o princípio da licitação e a regra da isonomia, e (ii) a concessão possui caráter personalíssimo. Ainda que se admita a legalidade da subconcessão, seriam necessárias (i) a previsão no edital de licitação inicial da outorga, (ii) a permissão contratual, (iii) a prévia autorização do Poder Executivo e (iv) a realização de concorrência pública. Na venda de programação, nada disso é feito. Já se for considerado o aspecto mercadológico do negócio, a legislação brasileira também está sendo desrespeitada, visto que o art. 124 Código Brasileiro de Telecomunicações e o art. 28, §12, “d”, do Decreto Presidencial nº 52.795/63 determinam que o tempo destinado à publicidade comercial não poderá exceder 25% da programação. O Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT) determina fim do direito à outorga se a concessionária ou permissionária descumprir o contrato de concessão ou permissão, ou as exigências legais e regulamentares (art. 67). Mas o Ministério das Comunicações e o Congresso nacional nunca fizeram isso.

3. Enfrentamento ao livre mercado de compra e venda de outorgas de rádio e TV

A radiodifusão, além de ser um serviço público, utiliza um bem público: o espectro eletromagnético. Apesar disso, muitos concessionários utilizam a outorga obtida junto à União como uma mercadoria por meio das vendas declaradas ou das negociações não públicas conhecidas como “contratos de gaveta”. Ao mesmo tempo, transferências diretas e indiretas de outorgas também revelam a apropriação privada de recursos públicos. Previstas em lei, desde que autorizadas pelo Poder Executivo, as transferências de outorgas já são consideradas inconstitucionais – há jurisprudência nesse sentido e uma ação da Procuradoria Geral da República questiona um dispositivo análogo na lei de concessões. Além disso, uma série de transferências ocorrem sem a anuência do Poder Executivo.

4. Garantia do respeito aos limites à concentração de propriedade já existentes

A legislação brasileira veda que um mesmo ente possua mais de cinco emissoras em VHF ou mais de 10 em UHF no território nacional, bem como duas outorgas do mesmo serviço na mesma localidade. No entanto, esses limites são burlados cotidianamente no país. Um primeiro problema é o uso de estruturas societárias diferentes dentro de um mesmo grupo comercial. Um segundo problema é a afiliação em rede, cuja ausência de regramento permite, além da concentração de veículos por poucos grupos econômicos, contratos com obrigações excessivas para as afiliadas e a verticalização da produção audiovisual brasileira. Normas infralegais poderiam constituir mecanismos que identificassem os grupos comerciais, aplicando os limites à concentração de propriedade já existentes para estes.

5. Responsabilização das emissoras por violações de direitos humanos na programação

Em busca de audiência, canais multiplicam violações com a profusão de programas policialescos e conteúdos baseados na estigmatização e humilhação. Denúncias crescentes nas Procuradorias dos Direitos do Cidadão comprovam uma questão sistemática. No processo de fiscalização das obrigações de conteúdo, além de não realizar um acompanhamento sistemático do que é veiculado, o MiniCom trabalha e orienta a Anatel a considerar apenas as normas dispostas no CBT e no regulamento do serviço de radiodifusão. O Código afirma que constitui abuso no exercício da radiodifusão o emprego dos meios de comunicação para a promoção de campanha discriminatória de classe, cor, raça ou religião. Já o Decreto Presidencial 52.795/63 proíbe as concessionárias de “transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico” (Art.28, item 12).

Além de ser complexo enquadrar determinada programação na definição de campanha discriminatória, o MiniCom não considera as demais leis e tratados internacionais ratificados pelo Brasil que tratam do tema, como o Estatuto da Igualdade Racial, que prevê, por exemplo, que o poder público deve garantir medidas para “coibir a utilização dos meios de comunicação social para a difusão de proposições, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas”(Art. 26). Em relação às eventuais sanções aplicadas, apesar de serem gradativas, elas não podem ser consideradas cumulativas em casos de reincidência. Assim, mesmo que uma emissora tenha como prática sistemática a difusão de conteúdos atentatórios contra os direitos humanos, ela nunca chegará a perder sua licença por este motivo. O valor aplicado também não é dissuasivo. Em 2013, as multas tinham como teto R$ 76.155,21, sendo que, por apenas 30 segundos de inserção publicitária, as emissoras cobram o valor médio de R$ 15 mil.

6. Fim da criminalização às rádios comunitárias

É urgente promover uma mudança institucional no sentido de barrar a criminalização histórica das rádios comunitárias. Principal veículo de exercício da liberdade de expressão de milhares de comunidades em todo o país, essas rádios sofrem a frequente repressão por parte da Anatel, movida na maior parte dos casos por denúncias de rádios comerciais concorrentes. Ações de fechamento e lacração de emissoras tem levado, sem qualquer justificativa, além da detenção de líderes comunitários, à apreensão de equipamentos preciosos para a população e à cobrança de multas que colocam as associações em situação mais precária do que a em que já se encontram. A anistia dessas multas e a devolução dos equipamentos confiscados é uma medida urgente para a sobrevida deste movimento. A desburocratização dos processos de autorização (há casos de espera de quase 10 anos) e a criação de um mecanismo de financiamento para as rádios comunitárias, que seja compatível com a lei 9612/98, também são estratégicos para a sustentabilidade dos canais.

7. Universalização do acesso à banda larga

O Programa Nacional de Banda Larga foi lançado em maio de 2010 com objetivo de ampliar os acessos à Internet de alta velocidade no país. Embora os acessos tenham crescido desde então, mais da metade dos domicílios brasileiros permanece desconectada, o que se soma a uma considerável desigualdade regional e um profundo fosso entre áreas urbanas e rurais. O cenário atual é reflexo de uma das falhas mais graves do Programa – a não consideração do serviço de banda larga como essencial e a crença de que meros incentivos ao mercado são capazes de superar desigualdades e garantir direitos. O plano de banda larga popular e as metas destinadas à área rural são também retratos dessa insuficiência e precisam ser revistos. A Presidenta Dilma tratou esse tema com prioridade em sua campanha e se comprometeu com a universalização do acesso à banda larga. Contudo, isso deve ser feito de acordo com a legislação brasileira, com a sua prestação também em regime público, conferindo ao poder público instrumentos regulatórios suficientes para exigir obrigações das empresas. Deve ser feito também com investimentos em redes de fibra ótica e fortalecimento da Telebras. Por fim, a concepção e implementação de uma nova fase do PNBL deve ter a participação social como um de seus pilares, assim como ocorreu com o Marco Civil da Internet.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.