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Carta Mundial da Mídia Livre é lançada no Fórum Social Mundial

Por Mônica Mourão*

Muito trabalho, muita gente, uma diversidade de línguas, de nacionalidades e de realidades sociopolíticas no colorido cenário da democracia árabe tunisiana mostraram a que veio o IV Fórum Mundial de Mídia Livre (FMML). O encontro aconteceu entre 22 e 28 de março, em Túnis, como parte da programação do Fórum Social Mundial, e reuniu ativistas pela democratização da comunicação das mais diferentes regiões do planeta. Casos como os dos povos de territórios ocupados, cuja situação de restrição de direitos não reverbera na imprensa, ou de um jornalista que só consegue exercer seu papel de denúncia da ditadura do Chade vivendo como refugiado político fora do seu país, evidenciam a estreita correlação entre a liberdade de expressão e o direito à comunicação com os demais direitos humanos e a luta por um outro mundo possível.

O FMML também discutiu os rumos da governança na internet; o teor de gravuras, cartuns e charges na disputa por sentidos em torno do islamismo e da islamofobia; o papel da comunicação pública para uma mídia democrática e a importância política de questões tecnológicas, como o software livre. Tiveram caráter permanente durante todo o encontro, que foi coberto de forma colaborativa por coletivos de diversos países, uma exposição de ilustrações, um cineclube e um laboratório hacker.

Como resultado político mais concreto, o Fórum lançou a Carta Mundial da Mídia Livre, documento com princípios e reivindicações para a garantia da liberdade de expressão e do direito à comunicação de todos e todas. A elaboração da Carta teve início no FMML de 2013 e passou pela realização de quatro seminários internacionais (em Porto Alegre, Túnis, Paris e Marrakech), onde recebeu contribuições de mais de 30 países, sendo depois submetida a uma consulta online.

A compreensão da comunicação como um bem comum, o acesso livre às tecnologias e especialmente à Internet e a regulação dos meios de comunicação de modo a garantir que a mídia contemple a pluralidade de ideias e valores que circulam na sociedade são alguns dos pontos da Carta Mundial de Mídia Livre. Ao estabelecer princípios e reivindicações comuns, e por ter sido elaborada em âmbito internacional através de um processo participativo, a Carta constitui um instrumento para que se acione tanto as autoridades de cada país quanto organismos internacionais em prol da mídia livre. O lançamento do documento é o início de um novo percurso, em que defensoras e defensores da mídia livre terão um instrumento comum de luta no âmbito internacional.

A cooperação internacional da militância pela liberdade de expressão tem sido fundamental em casos como o do jornalista e blogueiro Makaila N’Guebla. Nascido no país africano do Chade, ele vivia como exilado no Senegal quando foi realizado um seminário de mídia livre dentro do Fórum Social Mundial naquele país, em 2011. Desde então, não parou de acompanhar as articulações do Fórum e, neste ano, já exilado na França, fez parte da comissão responsável por elaborar a redação final da Carta de Mídia Livre. N’Guebla acredita que o documento poderá ajudá-lo em sua luta para poder seguir denunciando as violações de direitos humanos que ocorrem em seu país natal.

Um mundo em que pessoas são criminalizadas, assassinadas e expatriadas por exercer a liberdade de expressão não é o mundo que militantes da mídia livre queremos. Um mundo em que o genocídio da juventude negra, o ódio contra mulheres e LGBT, o desrespeito às pessoas com deficiência reverberam através do discurso das grandes corporações midiáticas não é o mundo que militantes da mídia livre queremos. Um mundo em que povos palestinos, curdos, entre outros, que sofrem diariamente por ter seus territórios ocupados sem que a imprensa se engaje em sua defesa não é o mundo que militantes da mídia livre queremos. Mas acreditamos que, com a mídia livre, outro mundo é possível.

* Mônica Mourão é jornalista e integrante do Intervozes. Fez parte da delegação brasileira que participou do IV Fórum Mundial de Mídia Livre em Túnis.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital. 

Qual é a contribuição da mídia para o debate da redução da maioridade penal?

*Por Natasha Cruz

O debate em torno da redução da maioridade penal voltou à agenda pública nos últimos dias, quando a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados desengavetou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos.

Na pauta da CCJ desde o dia 17 de março, a PEC 171/93 ainda não foi votada. De lá para cá, o debate ganhou destaque na cobertura midiática. De blogueiros à grandes redes nacionais de televisão abordam o tema. Nada mais natural. Mas, qual a real contribuição da mídia para o debate da redução da maioridade penal?

Antes de entrar no assunto, é preciso ter em mente que a atual composição do Congresso Nacional é considerada a mais conservadora desde a redemocratização. A bancada da bala, com seus 55 deputados, nunca antes esteve tão consolidada. De acordo com levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), o número de parlamentares policiais ou próximos desse segmento, como apresentadores de programas de cunho policialesco, cresceu de forma alarmante. Nas pautas defendidas, a revisão do Estatuto do Desarmamento, o recrudescimento penal e a redução da maioridade.

A grande (des)contribuição midiática

“E você? [repórter] Não tenho o que falar não. Não fui eu, não. [jovem acusado e facilmente identificável pela reportagem] Garoto que chega a mandar até alô (…) porque nega qualquer envolvimento, mas o fato é que tratam-se de dois adolescentes, segundo a polícia, de alta periculosidade. Pessoas que apresentam sim risco para a comunidade, que estavam à solta. Infelizmente, por serem menores, o período em que eles vão passar (privados de liberdade) é muito curto. [repórter]”

– Programa Cidade 190 (de Fortaleza, CE), da emissora TV Cidade.

“Ele tem apenas dezessete anos. De aparência franzina, é considerado pela polícia como um adolescente infrator dos mais perigosos do bairro do Guamá, periferia de Belém. Conhecido com Joãozinho é acusado de aterrorizar a população da área e pratica em média quatro assaltos por dia, para ele o tipo de arma usada é o que menos importa. [repórter]

– Programa Barra Pesada, do Diário Online, da emissora RBA.

Os recortes transcritos acima nos dão um claro panorama de como a mídia historicamente aborda notícias relacionadas a adolescentes acusados da autoria de atos infracionais. Nos programas policialescos (ambos os casos citados acima), a abordagem é conhecida e as violações também: discurso de ódio, criminalização da pobreza, exposição indevida e identificação de adolescentes em conflito com a lei, ridicularizarão de vítimas e acusados, julgamento antecipado, incitação à violência.

Os programas policiais, autointitulados jornalísticos, enfatizam uma suposta “alta periculosidade juvenil” e nos bombardeiam com manchetes sobre atos infracionais praticados com alto grau de violência e atentados contra a vida, sem apresentar as reais estatísticas da violência, ou muito menos problematizá-la.

As violações de direitos nestes programas vêm gerando uma maior incidência de órgãos fiscalizadores como o Ministério Público, que ajuizou em diferentes estados Termos de Ajustamento de Conduta e Ações Civis Públicas contra as emissoras responsáveis por sua veiculação.

Mas e quando esta abordagem não é predominante apenas nos programas policias? E quando ela é prerrogativa também dos noticiários locais e nacionais das grandes emissoras de TV? Como esquecer o esdrúxulo comentário de Rachel Sheherazade no SBT Brasil?

E aos defensores dos Direitos Humanos que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: “faça um favor ao Brasil: adote um bandido!”. [âncora, Rachel Sheherazade]

– Programa SBT Brasil, emissora SBT.

A eficiência midiática em provocar uma sensação de pânico na população é incontestável! Os adolescentes são retratados como os algozes, responsáveis pela onda de violência no País. Quando e se apreendidos, são logo liberados pela “aberração que é o Estatuto da Criança e do Adolescente”, que serve apenas para “proteger os delinquentes juvenis”. “Vão para a engorda”, eles bravejam. Legitimar uma alteração na legislação vira tarefa fácil nessa conjuntura…

Mas, quando vemos a mídia debater com profundidade a conflitualidade e a violência, ou retratar ou dados sem distorções ou omissões?

O que a mídia omite sobre a redução

A maioria dos atos infracionais que levam a medidas de privação de liberdade de adolescentes não envolve crimes com alto grau de violência e atentados contra a vida. Pesquisa do Conselho Nacional de Justiça, de 2012, revela que os delitos cometidos por adolescentes são predominantemente de roubo, furto e tráfico (aproximadamente 80% do total).

Os adolescentes, na realidade, são mais vítimas do que autores de violência. O último Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), realizado em 2012 nas cidades com mais de 100 mil habitantes, estimou que mais de 42 mil adolescentes poderão ser vítimas de homicídios até 2019.

De acordo com os dados, para cada grupo de mil pessoas com 12 anos completos em 2012, 3,32 correm o risco de serem assassinadas antes de atingirem os 19 anos de idade, taxa que representa um aumento de 17% em relação a 2011. A IHA mostrou ainda que adolescentes negros ou pardos possuem aproximadamente três vezes mais probabilidade de serem assassinados do que adolescentes brancos. De acordo com os dados das pesquisas: “Mapa da Violência 2012 e de 2013” em 2011, a vitimização dos jovens negros também aumentou substancialmente, de 71,7%, em 2002, para 154%, em 2010.

O Brasil já possui a quarta maior população carcerária do mundo e o investimento de nossas políticas públicas segue na linha de mais recrudescimento. O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sianse) é absolutamente violador de direitos básicos fundamentais. Exemplo disso é uma recente denúncia formulada pela Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced), Fórum Permanente das ONGs de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes do Ceará (Fórum DCA) e Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca), denunciando o Estado Brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos por graves violações nas Unidades Socioeducativas do Ceará. Relatos de torturas sistemáticas no interior das Unidades Socioeducativas, superlotação em todas as Unidades, denúncia de estupro cometido por agente público e até episódios de dopagem coletiva.

Finalmente, não há atualmente qualquer estudo que comprove que o recrudescimento de sanções aplicadas a adolescentes diminuiria os índices de violência no Brasil ou mesmo geraria uma maior sensação de segurança para a população. O que está em risco com a aprovação da PEC 171/93 é um imensurável retrocesso para a sociedade brasileira, que sequer chegou a conseguir implementar integralmente o ECA e a lei 12.594/2012 (que institui o Sinase).

Para engrossar o caldo: interesses em jogo

Vale lembrar que vários dos programas policiais que se arvoram na defesa do rebaixamento da idade penal são comandas por parlamentares que integram a bancada da bala. Mais uns tantos deputados e senadores são concessionários do serviço público de rádio e TV, muito embora o artigo 54 da Constituição Federal proíba isso. São muitos interesses em jogo. Basta ver o ataque à qualquer tentativa de debater a necessidade de avançarmos na regulamentação da comunicação no Brasil, à exemplo do que já fizeram tantos outros países.

Quem acompanhou as sessões da CCJ que tiveram como pauta a PEC 171/93 deve ter percebido como o debate sobre a redução da maioridade em si foi escanteado. Não bastasse a superficialidade e as distorções midiáticas, os parlamentares não chegaram a fazer um debate aprofundado sobre o tema. Nada perto disso. A coisa toda acabou virando uma grande queda de braço entre oposição X situação. O acirramento da polarização em curso no País pode chegar a uma concretude em breve: um gigantesco e imensurável retrocesso para os direitos humanos dos adolescentes.

*Natasha Cruz é jornalista e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Mídia e democracia na encruzilhada

Por Helena Martins*

​Ao que a sociedade brasileira assistiu nos últimos dias certamente precisará de tempo, debate e maturação para ser compreendido em toda a sua complexidade. É difícil, por meio de análises rápidas, muitas vezes absolutamente polarizadas e impregnadas pelo calor dos acontecimentos, analisar a indignação e o direcionamento que tem sido dado a ela. Esquerdas e direitas se defrontam agora com o desafio de disputar os rumos do que está posto, testando sua capacidade convocatória e a adesão aos diferentes programas e alternativas societárias.

No entanto, uma questão que sem dúvida salta aos olhos é a centralidade que os meios de comunicação ocupam neste momento. Centralidade que está na internet e nas possibilidades que se abrem de constituição de diferentes formas de fazer política; nos meios tradicionais de comunicação, em especial a televisão, que mais uma vez mostraram capacidade de influência na leitura dos processos em curso, ao produzirem e divulgarem um discurso hegemônico; ou mesmo nas novas ferramentas como o whatsapp, que tornaram massivas mensagens muitas vezes anônimas e conteúdos que dispensam o contraditório. São as formas de se organizar, conhecer, debater e pensar que estão mudando. E a configuração atual das mídias está estreitamente vinculada a isso, com impactos ainda difíceis de precisar.

Diriam os funcionalistas que um dos papeis que a mídia cumpre na sociedade é exatamente buscar apresentar respostas comuns aos problemas sociais. Por mais que essa seja uma perspectiva incapaz de apreender toda a complexidade do processo comunicacional, certamente ainda é orientadora das ações de empresas de comunicação que buscam, devido aos seus próprios interesses, influenciar as respostas que a sociedade deverá dar a esses problemas. É o que tentam fazer agora diante da profunda crise política que o país vivencia.

Durante a cobertura dos protestos do 15 de março, a repetição do argumento, por exemplo, buscou eliminar as diversas possibilidades de leitura dos fatos. Passamos todo o domingo ouvindo um mantra que tinha como início a afirmação de que as manifestações foram espontâneas e não contaram com a presença de partidos, embora algumas das agremiações mais conservadoras da sociedade tenham ido inclusive à mídia convocar os protestos. Passava pela garantia de que os atos eram pacíficos, afinal a cobertura das jornadas de junho e de seus desdobramentos mostrou como o destaque à violência serve para esvaziar as mobilizações. E terminava com a afirmação de que se tratou de um conjunto de atos em defesa da democracia.

Se todo o exposto carece de outras abordagens, este último ponto, de cara, carece é de indignação. Não, não é possível reduzir o que aconteceu a um ato em defesa da democracia. Não é possível ignorar as manifestações explicitamente contrárias ao regime atual e que pediam o impeachment, uma intervenção militar, o fim do Supremo Tribunal Federal (STF) e outras saídas absolutamente conservadoras e certamente danosas para a sociedade. Não é possível silenciar diante das defesas do fim da diversidade de pensamento, das quais não escaparam Karl Marx ou Paulo Freire, muito menos ignorar as agressões às mulheres e aos homossexuais, atingidos por palavras de ordem que, se não quebram vidraças, certamente violentam profundamente esses grupos e todos e todas nós que nos solidarizamos e juntamos a eles.

No dia em que registramos os 30 anos da volta ao regime democrático em nosso país, a história foi esquecida. As torturas, a ausência até da possibilidade de protestar, o distanciamento da população da vida política do país e toda a luta para a conquista da democracia foram ignorados. O presente foi apresentado como totalidade diante de um passado que se nega e um futuro que não se questiona. Seria preciso ao menos recordar, palavra que, como certa vez lembrou Eduardo Galeano, significa voltar a passar pelo coração. Por quê? Porque não deixa de assustar que os sombrios anos ditatoriais sejam agora exaltados por uma parcela da população, muitos jovens inclusive, que deveria querer viver, se expressar livremente e nutrir amor pelo outro, pela humanidade.

Ao contrário, na cobertura de domingo não houve espaço para fazer do passado um elemento central para a problematização da situação presente, da crise mundial ao desgaste da política institucional. Perdeu-se a oportunidade de negar as saídas golpistas que estão sendo apresentadas, contextualizar a origem dos problemas, apresentar outras saídas e também de gerar a pergunta que deveria ser feita tanto por quem saiu às ruas no dia 13 quanto no dia 15: o que devemos fazer com a indignação que nos atravessa, seja pelos cortes nos direitos, a corrupção ou pela falência do sistema político atual?

À mídia hegemônica nada disso interessa. Irresponsável, tomada pelo desejo de sangrar o governo e com isso ampliar sua centralidade política e a barganha, fez de sua programação dominical um efetivo instrumento de convocação às ruas. E começou logo cedo, ao vivo, com helicópteros, plantões ao longo da programação e o que mais fosse necessário para garantir ares grandiosos aos protestos, mesmo quando a quantidade de pessoas ainda não justificava tamanha cobertura. Esta, aliás, foi por todo o dia animada por comentaristas e pelos tais especialistas que compartilhavam essencialmente das mesmas posições políticas.

Se os exemplos do passado, como o golpe de 1964 e as Diretas Já, não deixavam esquecer a centralidade da mídia na política, o que vimos nos últimos dias e o que veremos nos próximos devem ser lidos à luz de uma questão: qual o papel atual da mídia na democracia brasileira? Isso está em jogo e pode ser determinante. Seja para garantir a vitória de uma reação mais conservadora ou para alargar os horizontes da nossa pobre democracia, carente de participação direta, de controle popular sobre os mandatos, de transparência e de espaços para que as diversas opiniões sejam conhecidas e problematizadas de fato.

Vivemos em uma sociedade mediada pelos meios de comunicação. Meios – ou melhor, instituições – que são detentores de interesses políticos e econômicos. Essa mediação tanto interfere na agenda política quanto no próprio fazer político, hoje indissociável da comunicação. Por isso, quando defendemos e lutamos pela democratização das comunicações, temos em vista exatamente a necessidade de que múltiplas vozes circulem nos espaços de socialização e construção de sentidos. Temos em vista a necessidade desses meios, sobretudo dos que usam uma concessão pública para chegar aos nossos lares, serem debatidos, acompanhados e regulados pelo Estado, tomado aqui em seu sentido ampliado. Tudo isso para que, por exemplo, não sejam usados para atentar contra direitos, como vemos cotidianamente, e a própria democracia.

Se a sociedade em geral e as esquerdas, em particular, não entenderam a importância dessa pauta, o 15 de março não deixa dúvidas. Os setores mais conservadores se valeram da mídia e certamente aprovaram os resultados de termos, ainda hoje, um sistema de comunicação marcado pelo oligopólio midiático e pelo atrelamento aos históricos donos do poder.

* Helena Martins é doutoranda em Comunicação Social pela UnB, integrante do Intervozes e representante do coletivo no Conselho Nacional de Direitos Humanos.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Liberdade de expressão em pauta no STF: o caso Cristian Góes

Por Paulo Victor Melo*

“Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda”
Cecília Meireles.

Um dos exemplos mais emblemáticos de cerceamento à liberdade de expressão e manifestação do pensamento no Brasil está prestes a entrar na pauta de discussões do Supremo Tribunal Federal (STF). É o caso que envolve o jornalista Cristian Góes, condenado a sete meses e 16 dias de prisão (revertida em prestação de serviços à comunidade) e ao pagamento de R$ 30 mil de indenização ao desembargador do Tribunal de Justiça de Sergipe, Edson Ulisses.

O motivo da condenação? Cristian Góes, em maio de 2012, escreveu em seu blog na internet um texto ficcional sobre o coronelismo, em que não são citadas pessoas, locais e épocas. Em síntese, um texto em que não há personagens nem ambientes reais.

Esse não foi, porém, o entendimento do desembargador Edson Ulisses. A expressão “jagunço das leis”, utilizada no texto, foi, segundo o magistrado, direcionada a ele. Entendimento semelhante teve a juíza Brígida Declerk que, ainda na fase inicial do processo, decidiu pelo recebimento da denúncia e afirmou que “o texto possui atores definidos e identificados”.

Nem mesmo Kafka seria capaz de imaginar e narrar tamanho absurdo. Apenas por interpretarem que uma expressão generalista (jagunço das leis), utilizada numa crônica ficcional, faz referência a uma determinada pessoa, que não foi citada no texto, magistrados condenaram cível e criminalmente um jornalista.

Mas não para por aí a sequência de absurdos que envolvem este caso. O juiz Aldo de Albuquerque Mello, da 7ª Vara Cível de Aracaju, que condenou o jornalista ao pagamento da indenização por danos morais, chegou a afirmar que “o valor fixado é ínfimo em relação à gravidade da conduta”. Mas qual a conduta grave? Exercer o direito à liberdade de expressão? Manifestar livremente o pensamento?

O mesmo juiz disse que a sentença tinha o objetivo de “educar o agressor”, o que demonstra claramente o caráter político da condenação. Não há dúvidas: o objetivo é, tendo Cristian Góes como um exemplo, ameaçar o jornalismo crítico e reflexivo e fazer com que outros profissionais de comunicação pensem inúmeras vezes antes de escrever qualquer linha sobre o Poder Judiciário. Prova disso é que, ainda na primeira audiência, em janeiro de 2013, o desembargador não aceitou a proposta do jornalista de publicar uma nota de esclarecimento, em que afirmaria que o texto não se referenciava em ninguém.

Além do cerceamento à liberdade de expressão, esse caso demonstra também a seletividade do Poder Judiciário brasileiro. Afinal, enquanto um jornalista independente é condenado por um texto ficcional, membros do Judiciário silenciam frente às inúmeras calúnias, difamações, violações de direitos e destruição de reputações praticadas diariamente pelas redes de televisão e rádio do país.

Qual a conduta grave nesse caso, então? O texto de Cristian ou a sua condenação? Onde está o crime contra a democracia? Na crônica “Eu, o coronel em mim” ou na sentença contra o jornalista?

Ação também no CNJ

Além da ação no STF que contesta as sentenças, o caso também está no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão em que a defesa do jornalista questiona, dentre outras coisas, o fato da condenação criminal ferir o princípio da impessoalidade dos atos administrativos e pede a anulação da portaria que nomeou o juiz Luiz Eduardo para atuar no Juizado Criminal de Aracaju, bem como de todos os atos jurisdicionais proferidos pelo magistrado no período de 1 a 30 de julho de 2013.

Vejamos. O processo criminal movido pelo desembargador contra o jornalista ocorreu no Juizado Especial Criminal de Aracaju, onde a titular era a juíza Brígida Declerk, que presidiu todo o processo, mas não o julgou mesmo já estando pronto, e foi afastada daquele juizado em julho de 2013. Na lista de substituição, publicada pelo Tribunal em abril daquele ano, o juiz que deveria assumir os trabalhos era Cláudio Bahia. Porém, sem qualquer justificativa, o Tribunal de Justiça trocou de juiz e colocou Luiz Eduardo Araújo Portela.

Apenas após três dias do início dessa substituição, o juiz Luiz Eduardo condenou o jornalista à pena de sete meses e 16 dias de detenção. Com um agravante: dentre todos os processos que se encontravam prontos para ser julgados antes da chegada do juiz Luiz Eduardo, o único que foi sentenciado por ele foi justamente o de interesse do desembargador Edson Ulisses, então vice-presidente do Tribunal de Justiça de Sergipe.

Repercussão

Ainda que tenha sido ignorado pelas grandes emissoras de televisão do Brasil, o caso tem gerado repercussão tanto dentro do país quanto a nível internacional. Diversas entidades da sociedade civil têm se mobilizado na solidariedade e defesa do jornalista, sites e blogs na internet publicam matérias desde o início do processo e organizações de direitos humanos têm se pronunciado e acompanhado o caso.

Pela gravidade que representa para o exercício da liberdade de expressão não apenas no Brasil, o caso já foi objeto de uma audiência pública na Câmara dos Deputados, de uma reunião na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington (EUA), fez parte de um dossiê entregue à Relatoria de Liberdade de Expressão da Organização das Nações Unidas (ONU) e compôs um relatório da Repórteres Sem Fronteiras, organização não governamental sediada na França, que entende o caso como “um desvario judicial e um insulto aos princípios fundamentais da Constituição democrática de 1988”.

Nada disso, porém, foi suficiente para alertar os magistrados sergipanos sobre a medida autoritária e absurda que estavam tomando. Cabe agora aguardar para verificarmos se os ministros do STF confirmarão esta ameaça à liberdade de expressão e à democracia ou se reverterão as sentenças e, assim, honrarão a Constituição Federal e os diversos tratados internacionais ratificados pelo país que garantem o direito à liberdade de expressão.

* Paulo Victor Melo, jornalista, mestre e doutorando em Comunicação. Integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

O Ministério das Comunicações vai punir a Band?

Por Bia Barbosa*

Nesta quarta-feira 4, o Intervozes encaminhou mais uma denúncia de violação de direitos humanos praticada pela Rede Bandeirantes ao Departamento de Acompanhamento e Avaliação do Ministério das Comunicações. Desta vez, sobre o caso Alexandre Frota, que alimentou inúmeros debates e manifestações de repúdio na última semana nas redes sociais.

No último dia 25 de fevereiro, o programa Agora É Tarde, apresentado pelo comediante Rafinha Bastos e veiculado todas as noites pela Band, reprisou uma entrevista com Frota, datada de 22 de maio de 2014, na qual o ator revela – em tom de gozação e deboche – que teria praticado sexo com uma mãe de santo contra a sua vontade, ou seja, que a teria estuprado. A vítima teria desmaiado durante o crime.

Na entrevista, Frota narra os detalhes do crime entre encenações e gargalhadas do apresentador do talk show e da plateia. O fato, que teria acontecido já há alguns anos, foi descrito da seguinte maneira:

Fui pro terreiro da mulher. (…) A mãe de santo chegou pra mim e falou: “você está carregado, não tem luz própria, eu vou ter que fazer uma limpeza em você”. Aí ela virou, malandro. Eu fiquei olhando e falei: “meu irmão, essa mãe de santo tem um jogo, dá pra pegar, dá pra comer, morô?” (…)

Aí falei pra ela: “eu não acredito nessas paradas que você faz, mas queria te dar um pega. E aí, tem jogo?”. Ela não falou nada. Aí eu virei e botei a mãe de santo de quatro (…) levantei a saia dela e agarrei pela nuca. Botei o boneco pra fora e comecei a sapecar a mãe de santo. Aí estou pegando a mãe de santo e minhas amigas bateram na porta.

Fui mandando, fui mandando, e as mulheres batendo na porta. Brother, eu tava a fim de gozar, e aí eu fiz tanta pressão na nuca da mulher que ela dormiu, ela apagou, igual no ultimate, finalizei. Aí parei e falei: “levanta aí, ô mãe! Ô, filha da… , levanta aí!”. E ela apagou. Aí eu fui lá, abri a porta, as amigas entraram e perguntaram dela. Eu falei: “num sei, ela ficou aí nessa posição já há algum tempo, e não fala nada. Acho que ela teve um troço. Recebeu… está apagada”. Elas perguntaram: “como ela apagou?”. E eu: “eu juro que não sei”.”

O episódio terminou com o apresentador Rafinha Bastos pedindo “uma salva de palmas para essa história maravilhosa”. Assim como o apresentador do programa, a plateia reagiu com risadas e aplausos.

A reprise foi ao ar em fevereiro numa série com os “melhores momentos” do Agora É Tarde, preparatória à nova temporada do programa, que estreou nesta terça, dia 3. A íntegra do programa também está disponível no Youtube, onde já foi assistida por mais de 368 mil pessoas –assista ao final deste texto.

Na representação ao Ministério das Comunicações, o Intervozes destaca uma extensa relação de normas em vigor para a radiodifusão e demais leis do ordenamento jurídico brasileiro e pede a responsabilização da Band pelo ocorrido.

Entre elas, o Código Brasileiro de Telecomunicações (lei nº 4.117/62) que diz que constitui abuso no exercício de liberdade da radiodifusão o emprego dos meios de comunicação para a prática de crime ou contravenção previstos na legislação em vigor no País, inclusive a incitação à desobediência às leis. Também o Decreto Presidencial 52.795/63, que proíbe as concessionárias de “transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico”.

Já a Constituição Federal veda a veiculação de conteúdos que violem os direitos humanos e façam apologia à violência. Seu Art. 221 afirma que a programação das emissoras deve privilegiar “as finalidades educativas, culturais, informativas e artísticas”, assim como “os valores éticos e sociais da pessoa e da família”.

O documento enviado pelo Intervozes ao ministério lembra ainda a lei 7.716/89, que determina pena de reclusão de um a três anos e multa para quem “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Em 2010, o Estatuto da Igualdade Racial definiu que “o poder público adotará as medidas necessárias para o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores, especialmente com o objetivo de coibir a utilização dos meios de comunicação social para a difusão de proposições, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas”.

Diversos tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil também trazem elementos que permitem condenar tal tipo de conteúdo veiculado pela Rede Bandeirantes. A Convenção Internacional pela Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (2001) insta os Estados a incentivarem os meios de comunicação para evitarem os estereótipos baseados em racismo, discriminação racial, xenofobia e a intolerância correlata. E a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (1994) afirma que os Estados-partes concordam em “estimular os meios de comunicação a elaborar diretrizes adequadas de difusão que contribuam para a erradicação da violência contra a mulher em todas as suas formas e a realçar o respeito à dignidade da mulher”.

Reconhecendo o impacto dos meios de comunicação de massa no combate ou perpetuação da violência contra a mulher, a própria Lei Maria da Penha faz menção à importância de se coibir papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar nos meios de comunicação de massa.

Reincidência

O episódio em questão não é violento apenas para a mulher vitimada diretamente na história, mas para todas as mulheres. E não há dúvidas sobre o impacto que conteúdos como este podem ter na naturalização, legitimação e perpetuação da violência contra a mulher em nosso país. Veiculado desde junho de 2011, o Agora É Tarde alcançou, em 2012, segundo o Ibope, a segunda maior audiência da Rede Bandeirantes. O formato do programa, portanto, tem se mostrado lucrativo para a emissora.

Vale lembrar também que não é a primeira vez que o apresentador Rafinha Bastos brinca com a violência contra as mulheres na grade da Band. Em 2011, ao comentar a gravidez da cantora Wanessa Camargo, durante edição do CQC, ele disse que “comeria ela e o bebê” ao mesmo tempo. Bastos também foi chamado a depor sobre a declaração feita em sua peça de teatro de que mulher feia devia ver o estupro como “oportunidade” e não “crime”.

Questionados sobre o ocorrido, Rafinha uma vez mais argumentou que tudo não passa de piada. Já Alexandre Frota, declarou ao Portal IG que “a mãe de santo é fictícia, por isso não menciono nome porque não existe. A história fez parte do meu stand up, no ano passado. É uma história contada em forma de piada, com humor”. “Não vou me desculpar de nada porque nada fiz de errado. Temos liberdade de criar e roteirizar, e é isso. Repeito as mulheres, sou muito bem casado e essa onda é falta do que fazer”, acrescentou.

É impressionante que, num país onde uma mulher é estuprada a cada 12 segundos, seja considerado possível rir de narrativas como esta. Mais impressionante ainda que uma concessionária de serviço público continue autorizada a levar ao ar cenas lamentáveis e criminosas como esta. Neste caso, a Band não apenas veiculou o programa como o retransmitiu em busca de maior audiência, praticando, com isso, uma dupla violência contra os direitos das mulheres.

Em 2013, a mesma Band foi multada em mais de R$ 12 mil por exibir na programação de sua retransmissora na Bahia e também em cadeia nacional uma “entrevista” com um jovem suspeito de estupro. O caso, que também ganhou repercussão nacional, consistiu na humilhação de um suspeito pela repórter Mirella Cunha. Durante a “entrevista”, realizada no programa Brasil Urgente, o rapaz, detido em uma delegacia, negou a acusação que lhe era feita pela repórter e argumentou que um exame pericial poderia inocentá-lo. Não soube, porém, precisar o nome do procedimento, o que bastou para que a repórter zombasse do detido, ridicularizando-o num claro exemplo de linchamento público via TV. A ampla repercussão do episódio levou o Ministério das Comunicações a multar a TV Bandeirantes, que recorreu da sanção aplicada. Por conta dessa estratégia da empresa, o processo administrativo até hoje não é público.

Agora, a Band volta a violar direitos humanos em busca de aumentar sua audiência. Em função da reincidência e com base na legislação em vigor, o Intervozes pediu a aplicação da pena de suspensão do Agora É Tarde pelo ministério. Esperamos que, desta vez, a punição aplicada pelo órgão seja efetiva a ponto de impedir que violências como esta continuem sendo praticadas – em nome do lucro e a despeito de suas brutais consequências – por uma concessionária do serviço público de radiodifusão.

*Bia Barbosa é jornalista, especialista em Direitos Humanos, mestra em Políticas Públicas e integrante da coordenação do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.