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Concessões de TV ou capitanias hereditárias?

A decisão do presidente venezuelano Hugo Chávez de não autorizar a renovação da concessão da RCTV teve repercussões negativas em várias partes do mundo, inclusive no âmbito do legislativo brasileiro. Como se sabe, o Senado aprovou uma moção contrária à atitude de Chávez e recebeu em resposta a alcunha de "papagaio dos Estados Unidos", ocasionando grande mal-estar nas relações entre os dois países.

Sem entrar no mérito do acerto ou do erro da atitude do presidente venezuelano, a questão traz a oportunidade de discutir a situação das concessões de rádio e TV no Brasil. A nosso ver, é urgente a necessidade de aprovação de emendas constitucionais com vistas à modificação do regime jurídico de nossas concessões de radiodifusão por som e por som e imagem (TV), por tratar-se de um modelo de apropriação privada indevida e antiética de serviços públicos. Explico-me.

As concessões de serviço público se caracterizam como contratos administrativos pelos quais o Estado transfere à iniciativa privada a execução dos referidos serviços, mantendo, contudo, sua titularidade. O concessionário é, assim, mero executor de um serviço cujo "dono" permanece sendo o Estado. Em tais contratos vige regime jurídico absolutamente diverso das condições usuais nos contratos privados, razão pela qual cláusulas destes contratos são denominadas "exorbitantes", por permitirem que o Estado, a qualquer tempo, possa romper o contrato por decisão unilateral da administração, respeitando-se, porém, o direito de o concessionário ser indenizado pelos danos e perdas que sofrer.

Renovação automática

Isto ocorre porque o Estado-Administração representa o interesse coletivo, enquanto o particular (concessionário) cuida apenas de seu interesse individual. Por razões óbvias, nossa Constituição privilegia o interesse coletivo, outorgando-lhe prerrogativas de autoridade no âmbito contratual, mas, em momento algum a ordem jurídica confere ao Estado poder de confisco, de se apropriar compulsoriamente de direitos privados sem justa indenização.

Apenas um ambiente das atividades públicas põe-se como exceção a este regime jurídico, em razão de dispositivos discretamente aprovados pela Constituinte de 1988: as concessões de rádio e TV.

Provavelmente por uma conjunção de lobby de empresas de telecomunicações agregado ao fato de que muitos constituintes eram proprietários diretos ou indiretos de empresas de rádio e/ou TV, o artigo 223 da Carta Magna estabelece regime de concessão de serviço público absolutamente diverso dos demais serviços públicos concedidos no que tange aos aludidos serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens (rádio e TV).

Por esse artigo constitucional, as concessões de rádio e TV só podem ser extintas, antes de vencido seu prazo, por decisão judicial, enquanto todas as demais concessões públicas podem sê-lo por decisão administrativa. E mais: tais concessões são quase de renovação automática, contratos eternos e intangíveis, pois só com aprovação de dois quintos do Congresso Nacional deixariam de ser renovadas.

"Macaco, olha o teu rabo…"

Se os então constituintes – muitos ainda congressistas – tivessem observado valores democráticos em sua decisão, haveriam de estipular para a renovação da concessão de rádio ou TV o mesmo que para qualquer outro contrato público com particular: a necessidade de fazê-lo por licitação aberta a todos os interessados.

Estabeleceu-se aí inegável imoralidade no âmbito de nossa Carta Magna, uma nódoa em nossa Constituição cidadã. Concessões de serviço público se transformaram em capitanias hereditárias de famílias notórias ou de políticos. Tal situação nada tem de republicana, remetendo à forma como a aristocracia do Estado imperial se apropriava dos bens e serviços públicos.

Assim, é de se estranhar que o Congresso Nacional aprove moção contra a não renovação de concessão de TV venezuelana e, ao mesmo tempo, deixe de adotar medidas que são de sua competência com vistas à alteração de nossa Constituição e ao restabelecimento em seus dispositivos relativos às telecomunicações dos valores republicanos e isonômicos que deveriam norteá-los.

É possível que nossos congressistas não tenham disposição para tanto, pois muitos deles são donos diretos ou indiretos de empresas concessionárias dos referidos serviços. Legislar contra os próprios interesses econômicos e empresariais é algo inimaginável nesse reduto, mesmo que isso se faça necessário para o restabelecimento de um mínimo de ética. Antes de apontar o dedo para a Venezuela, nossos congressistas deveriam agir como recomenda a sabedoria popular: "Macaco, olha o teu rabo…"

* Pedro Estevam Serrano é professor de Direito Constitucional da PUC-SP

Zé Roberto e Murilo: jornalismo, paixão e morte

Morreu José Roberto de Alencar. Azar de quem sobrou. O mundo sem ele ficou mais pobre, mais chato e burro. Dias antes havia morrido Murilo Felisberto. Dois grandes jornalistas. Com eles lá se foi mais um pouco do pouco que restava entre nós do jornalismo como paixão. Duvido que surjam no futuro próximo pessoas tão apaixonadas pelo jornalismo como eram José Roberto de Alencar, o "Zé Grandão", e Murilo Felisberto.

Ambos veneravam o jornalismo, os grandes jornais e os grandes jornalistas. Viviam a profissão à moda antiga, "romântica", como definem com desdém os moderninhos, com muito papo de botequim depois do fechamento, e também engajada, não politicamente engajada, simplesmente engajada. O jornalismo como um engajamento em valores humanos e estéticos, não meramente como uma forma de saber, ou um jeito de ganhar dinheiro.

Ambos mineiros, como tantos outros jornalistas brasileiros de destaque, eram gregários, viviam com e para os amigos. E eram ambos perfeccionistas. Também morreram cedo demais, Murilo aos 67 anos e Alencar aos 62. Mas parece que aí param as semelhanças entre esses dois grandes jornalistas. É sobre as diferenças entre os dois que quero escrever.

Vocabulário popular

Murilo era o bem formado, o intelectual, estudou no colégio americano Gamon. Alencar era o prático. Um caminhoneiro que virou repórter, pelas mãos de Luís Nassif. Murilo era classe média (suponho). Alencar era povo. Murilo provavelmente preferia whisky. Alencar decididamente tomava cachaça. Murilo era muito mais o editor, o condutor de redações, o inovador do departamento de arquivo do Jornal do Brasil e depois criador da linguagem dialogada e direta do Jornal da Tarde, que influenciou tantos outros jornais, inclusive o alternativo Amanhã. Tinha o faro do que é notícia, segundo escreveram seus amigos, mas me parece que era basicamente um jornalista de redação.

Alencar não conseguia esquentar cadeiras. Era o repórter de rua por excelência. De rua, e das quebradas pelo Brasil afora. Quando descobria que não queriam reportagem, não queriam que viajasse, demitia-se. Fanático por um furo na primeira página. Deve ter colecionado o maior número de furos em primeira página da história do nosso jornalismo. Lembro o dia em que ele me procurou para receber os elogios pelo seu furo na Gazeta Mercantil, revelando os contratos de risco para exploração de petróleo que a Petrobras queria assinar com empresas estrangeiras.

Mas os furos do jornalismo, como o próprio jornalismo, têm vida curta. "Efêmera glória matinal: ao meio-dia jornal já é papel de embrulho…", diz o próprio Alencar em um de seus livros de causos. Já a linguagem jornalística do Alencar, seu estilo, seu modo de escrever, é uma invenção que fica. Tenho a certeza de que ainda vai ser objeto de estudos acadêmicos.

Se Murilo detestava o vulgar, como dizem os seus obituários no Jornal da Tarde e no Estadão, Alencar conseguia usar o vulgar para desconstruir o formalismo da narrativa padrão do nosso jornalismo. Isso em textos bem estruturados, com a informação precisa, hierarquizada e contextualizada e nunca escondendo sua indignação pelos desastres sociais que encontrava. Era uma escrita ao mesmo tempo galhofeira, anarquista e bem humorada. Como ele conseguia isso?

Nesta nota rápida é possível apenas levantar algumas pistas. Quando a escrita ameaçava se tornar formal demais, ele a quebrava com expressões do vocabulário popular. Exemplo: o uso das palavras "pirralhos" e "guria", nesta frase: "…A história começa em 1995, ano da morte do construtor Walmir Costa. Viúva, com quatro pirralhos e a guria, dona Vera arrumou emprego de vendedora…". Quando ameaçava se tornar solene, ele a quebrava com expressões fortes do dia-a-dia: "Morreu Darcy Ribeiro. Azar de quem sobrou: o mundo sem ele ficou mais pobre, mais chato e burro…."

Espaço para o talento

Conseguia sempre fugir do pomposo, do pernóstico. Também trazia para a narrativa jornalística algo do som dos sertões: "Notícia ruim nunca faltou aos sete mil moradores de Puerto Casado, no Chaco Paraguaio… E a sina não ia mudar justo em dia agourento como aquele…". Criava, assim, efeitos de lugar e época. E gostava de brincar com os significados de palavras ambíguas, observou bem um dos poucos registros de sua morte nos jornais desta semana.

Volto ao meu ponto de partida, do jornalismo como paixão. É uma paixão que pode ser vivida de vários modos, o sofrido, o lúdico, o prazeroso. Fora ou dentro das redações. Mas é sempre uma relação intensa, uma entrega total. E passa sempre pelo manejo criativo e respeitoso da língua. A língua é o nosso registro do mundo e nosso elo com os leitores. Não é algo que se aprende na escola. Alencar não aprendeu na escola. Não vem no diploma de jornalismo. Está no DNA. Nasce com a gente. É parte do talento para o jornalismo.

Mas é claro que os talentos só vão se mostrar se o jornalismo lhes der espaço. E aí está o paradoxo: cada vez que morre um Alencar ou um Murilo, morre um pouco mais do próprio espaço do jornalismo como paixão, e com isso a possibilidade de se revelarem novos apaixonados.


 

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Democracia da Rede Globo não resiste à menor análise

A defesa da democracia feita a todo o momento pela Rede Globo é na verdade uma grande mentira – e uma hipocrisia. Na prática, os diretores da Vênus Platinada não adotam esta postura, como demonstra um fato ocorrido nestes dias. Integrantes da chapa 2, Luta Fenaj, que se opõem à atual diretoria da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) nas próximas eleições da entidade (16 a 18 de julho), foram à sede da emissora para apresentar aos jornalistas que lá trabalham a plataforma desta corrente, que, por sinal, passa pela defesa intransigente da democratização da comunicação. 

Na entrada da emissora, na rua Von Martius, no Jardim Botânico, os integrantes, entre os quais o candidato a presidente da chapa, Dorgil Marinho, dirigente do Clube de Imprensa de Brasília, não receberam autorização para entrar. Os jornalistas queriam aproveitar a passagem de Dorgil pelo Rio para ir à Rede Globo, como foram em outras empresas jornalísticas para exercer o prosaico direito de divulgar entre seus pares as suas propostas.

Depois disso, os jornalistas do Luta Fenaj protocolaram uma carta para o diretor geral da Rede Globo, Calos Henrique Schroeder, com o pedido formal de autorização para o ingresso nas redações da empresa. Foi lembrado no pedido que faz parte da democracia o contato de candidatos de uma chapa sindical com a sua base.

Schroeder simplesmente não deu nenhum tipo de resposta, a forma que a Rede Globo encontra para negar pedidos que não agradam a empresa. Este mesmo Schroeder agiu do mesmo modo quando do trágico episódio que resultou no assassinato do jornalista Tim Lopes. Nenhum tipo de resposta foi dado aos jornalistas que quiseram aprofundar a questão e não aceitaram a versão oficial da Rede Globo sobre o caso do repórter. Isto é democracia? Isto é liberdade de imprensa? A Rede Globo deu toda a cobertura às homenagens pelo quinto ano da morte de Tim Lopes, inclusive divulgando com maior estardalhaço outdoors em vários bairros do Rio, uma realização da Fenaj e do Sindicato dos jornalistas cariocas. E quem teria bancado a campanha publicitária?

Em outros tristes episódios em que jornalistas foram assassinados, a Fenaj não teve o mesmo tipo de procedimento como no caso de Tim Lopes. Recentemente, até lançou uma nota condenando o assassinato do jornalista Luiz Carlos Barbom Filho, de 37 anos, mas colocou em dúvida sua condição de jornalista. Luiz Carlos foi morto a tiros por denunciar, em reportagens, a pedofilia praticada por vereadores de uma cidade no interior de São Paulo. Esquizofrenicamente, a diretoria da Fenaj chegou a dizer textualmente que "Luiz Carlos Barbom Filho, apesar de se auto-intitular, não era jornalista de fato e de direito" e que "o jornal de sua propriedade, Realidade, foi fechado pois nunca esteve regularizado". Se dependesse da diretoria da Fenaj, a opinião pública não saberia o motivo pelo qual o jornalista fora assassinado.

Quando jornalistas da própria Rede Globo questionam a emissora, como aconteceu recentemente com o repórter Rodrigo Viana, que denunciou a cobertura facciosa das últimas eleições presidenciais, a direção obriga seus funcionários a assinarem uma nota de defesa da empresa, nota esta que acabou sendo firmada pela atual diretora da Fenaj, Beth Costa, uma das editoras do Jornal Nacional.

Quando uma sindicalista adota esse procedimento, compromete a própria diretoria sindical da entidade a que pertence, até porque para assinar um documento dessa natureza a sindicalista provavelmente consultou a direção da Fenaj.

Bombardeio midiático conservador

É importante a opinião pública ser informada sobre o fato, sobretudo neste momento em que a TV Globo quase diariamente faz uma verdadeira lavagem cerebral para induzi-la a acreditar que a não renovação do canal da RCTV, na Venezuela, é um ato arbitrário contra a democracia e a liberdade de imprensa. A Rede Globo não é imparcial; defende interesses econômicos poderosos, os seus em particular. Querem os diretores, como Schroeder ou Ali Kamel, evitar que o público brasileiro seja informado de que vários canais de televisão nacionais, alguns deles afiliados à Globo, terão que ter renovadas as suas licenças para continuar ocupando o espectro eletro-eletrônico, as tais ondas hertezianas, como preferem alguns.

Diferentemente da legislação venezuelana, aqui no Brasil a renovação passa pelo Congresso, cujos integrantes evitam também colocar o tema em discussão. Se por acaso alguém lembrar ou questionar a necessidade de ao menos se discutir a matéria, os barões da mídia conservadora colocarão esta figura fora do circuito informativo. Em outras palavras, quem exigir algum tipo de debate sobre o tema vai cair no ostracismo, sobretudo na Rede Globo. Querem um exemplo concreto? O ex-senador Saturnino Braga, quando era deputado, nos anos 60, presidiu a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o grupo Time-Life, o tal que favoreceu ilegalmente a Globo, ajudando a emissora da família Marinho a dar a sua arrancada. A consolidação, vale sempre lembrar, aconteceu no período ditatorial em que a Vênus Platinada tornou-se na prática um órgão oficial dos generais de plantão que comandavam o país a ferro e fogo. Saturnino deixou de aparecer na tela da Globo durante mais de 30 anos, mesmo no período em que foi prefeito da cidade do Rio de Janeiro. Foi a vingança.

Debate que não pode ser evitado

Diante destes e muitos outros fatos, que passam pela manipulação da informação mais recente e em outros períodos, como o caso Proconsult (eleição no Estado do Rio de Leonel Brizola em 1982), a eleição presidencial de 1989 e a de 2007, a constante criminalização do movimento social, em particular do MST, a cobertura sobre a não renovação do canal da RCTV na Venezuela e os espaços concedidos a figuras que demonstram seu ódio contra o Presidente Hugo Chávez, com mentiras e meias verdades, podemos afirmar, sem medo de cometer injustiça, que a Rede Globo não é democrática. Seu jornalismo se caracteriza pela manipulação da informação e pela adoção do esquema do pensamento único. De vez em quando, numa tentativa de demonstrar que dá espaço para o outro lado, apresenta uma ou outra opinião contrária a um determinado fato, mas que basicamente não afeta no computo geral.

Esta é uma realidade que políticos e alguns sindicatos de jornalistas e mesmo a atual diretoria da Fenaj não enfrentam. Preferem silenciar ou, de vez em quando, também lançar notas oficiais que não passam de retórica. Na prática, como no caso Tim Lopes, por exemplo, vestiram até a camisa da Rede Globo, a empregadora do repórter assassinado.

Outras Globos existem no Brasil e na América Latina, como a RCTV, que não foi fechada, como afirmam a todo o momento articulistas notórios, mas apenas não teve o canal aberto renovado, mas continua com direito de funcionar como TV a cabo, via satélite ou na Internet.
Este patronato está preocupado, isto sim, com a quebra do monopólio exercido por algumas famílias na área midiática aqui no Brasil e ainda pelo fato de que, apesar das restrições do conservadorismo, a questão da democratização da comunicação está ganhando a cada dia novos espaços de discussão e de apoio. Ou seja, parte considerável da opinião pública começa a entender que não se pode aprofundar o processo democrático sem a democratização da comunicação, para evitar que versões sobre determinados fatos virem verdades absolutas.

O processo de discussão seguirá adiante, independente da vontade dos big-shots midiáticos. O ódio a Chávez, um dos poucos governantes latino-americanos que enfrenta o poder do monopólio midiático, vai aumentar. Porém, quer queiram ou não Condoleezza Rice e os papagaios de pirata do Departamento de Estado norte-americano, a história não acabou, muito menos a discussão sobre a democratização da mídia pode ser detida.

É por aí que se explica a postura da Rede Globo de Televisão e de figuras menos votadas nos mais diversos setores.   

* Mário Augusto Jakobskind é jornalista e escritor. Foi colaborador dos jornais alternativos Pasquim e Versus, repórter da Folha de S. Paulo (1975 a 1981) e correspondente da Rádio Centenária de Montevideo, além de editor de Internacional da Tribuna da Imprensa (1989 a 2004) e editor em português da revista cubana Prisma (1988 a 1989). Atualmente é correspondente do semanário uruguaio Brecha e membro do conselho editorial do Brasil de Fato. É autor, entre outros, dos livros América Que Não Está na Mídia (Adia, 2006), Dossiê Tim Lopes – Fantástico/Ibope (Europa, 2004), A Hora do Terceiro Mundo (Achiamê, 1982), América Latina – Histórias de Dominação e Libertação (Papirus, 1985) e Cuba – apesar do bloqueio, um repórter carioca em Cuba (Ato Editorial, 1986).

 


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Classificação Indicativa: desinformação também é censura

O debate acerca da classificação indicativa do Ministério da Justiça, informando a faixa etária recomendada para recepção de dados conteúdos culturais, poderia tornar-se uma importante oportunidade para a sociedade discutir seriamente os processos midiáticos. No entanto, mais uma vez a questão não tem sido apresentada pelos meios de comunicação em toda a sua complexidade, como um tema que envolve, no mínimo, dois lados, duas concepções de mundo. A Rede Globo vem se destacando na distorção dos fatos, apresentando-os, na essência, como censura, notadamente em espaços como o Fantástico e o Programa do Jô, o que confunde o telespectador e nada esclarece. 

Comparar censura e controle público da mídia (ínfimo, diga-se de passagem) é uma confusão proposital provocada pelas indústrias culturais, que, para isso, não têm poupado esforços em justapor fases históricas e motivações diferentes em uma mesma edição, comparando o momento atual, de plenitude democrática, com períodos de exceção, como o da longa ditadura militar brasileira, a qual, por sinal, teve o apoio da mídia hegemônica.  

O direito da sociedade, através do Estado, analisar e classificar o que vai assistir, visando a proteger especialmente a infância, tem como mote o interesse público. Esse procedimento em muito diverge de uma censura estabelecida para a perpetuação de uma elite no poder, tendo em vista interesses privados, como ocorreu no passado recente brasileiro ou via de regra acontece nas decisões corporativas (atuais e pretéritas). 

Por que autoridades e profissionais do Ministério da Justiça pouco têm sido procurados pela mídia para aprofundar o assunto? É de se ressaltar que a regra mais básica do jornalismo consiste em ouvir todas as partes, isto é, todos os lados envolvidos na história. As emissoras de televisão ocupam um grande papel na sociedade contemporânea, tanto na divulgação e apuração de problemas nacionais, quanto na educação e formação de valores sócio-culturais, constituindo a principal fonte de informação e sociabilidade para a maioria da população. Uma função de tamanho destaque social deve ser praticada com responsabilidade superior e nível de controle maior do que aquele fortemente exercido pelas famílias que dominam tais negócios. 

Visão única 

Quando um tema é abordado por um meio, provoca uma reflexão no telespectador, sendo aí que começa o problema central. Ao deparar com tais mensagens, o telespectador agrega apenas dados e informações de um lado da história, relacionando as informações veiculadas às suas próprias mediações, é claro, mas num jogo em que é determinante o posicionamento da emissora, que logicamente tem interesses próprios em disputa. Por isso, a necessidade de haver uma maior responsabilidade na informação noticiada, pois, embora não haja uma influência direta, certamente os elementos fornecidos pela mídia são decisivos para a formação da convicção do público, pois de outra forma este não tem acesso à realidade social. 

Desta forma, é equivocada a postura das grandes emissoras, em especial a Rede Globo, pois tratam a midiatização como assunto privado, sobre o qual caberia só a seus proprietários decidir o que veicular e aos sujeitos adultos, individualmente, o que assistir. A TV dita moda e comportamento, ao mesmo tempo em que destrói valores e cria estereótipos.  

O tema classificação indicativa é de tal grandeza que deveria receber um tratamento específico, uma abordagem séria em programas como Globo Repórter ou SBT Realidade. Ao contrário, tem prevalecido a desinformação. Se há censura, não é oficial, mas de muitas organizações midiáticas, que desinformam seu público ao reduzirem os fenômenos à sua própria visão, pelo menos naquilo que consideram prioritário e não abrem mão de editorializar.

 

Active Image autorizada a reprodução, desde que citada a fonte original.

A luta renhida pela diversidade cultural na América Latina

Os problemas históricos de desigualdade e exclusão na América Latina refletem-se nos campos da comunicação e da cultura de modo semelhante e perverso: um pequeno número de megagrupos, quase sempre em alianças com conglomerados transnacionais, controla, de maneira oligopólica, expressiva parcela da produção e da circulação de dados, sons e imagens. Os titãs buscam rentabilidade a qualquer preço, beneficiando-se das desregulamentações neoliberais, das omissões deliberadas dos poderes públicos e dos desníveis tecnológicos entre países ricos e periféricos. Em função de seus interesses mercantis, boa parte da produção simbólica não leva na devida conta identidades, tradições e anseios socioculturais dos povos. O que prevalece, geralmente, são apelos convulsivos ao consumo, elevado à condição de instância máxima de organização societária. 

A ascensão do espanhol como segundo idioma da globalização, o atrativo de um continente com 560 milhões de habitantes, a carência por tecnologias avançadas e a ausência de legislações antioligopólicas têm levado conglomerados de infotelecomunicações – principalmente norte-americanos – a incrementarem seus negócios. Isso acontece por meio de aplicações diretas ou acordos e joint ventures com empresas e investidores locais.

Trata-se de uma das regiões mais rentáveis ao escoamento de bens e serviços multimídias. As projeções da consultoria Price Waterhouse Coopers para o quadriênio 2004-2008 indicam expansão de 6,3% nas receitas de informação e entretenimento. Não é casual que a taxa de expansão da publicidade latino-americana supere os índices dos produtos internos brutos da maioria dos países. Enquanto o PIB subiu, na média, 5,3% em 2006, os investimentos publicitários cresceram em torno de 8%.

Entendamos bem o cenário adverso com que nos deparamos. As corporações de mídia qualificam-se como atores de primeira linha no processo de reprodução do capital em dimensão planetária. Elas apóiam-se em tecnologias de ponta, poderio financeiro, know-how gerencial, influência política, capacidade industrial, suporte logístico e esquemas globais de distribuição. Do ponto de vista ideológico, fixam as premissas do discurso neoliberal, que transfere para o mercado a regulação das aspirações sociais ao mesmo tempo em que desqualifica ou neutraliza contestações ao status quo. A mídia, assim, atua tanto por adesão à globalização capitalista quanto por deter a capacidade única de interconectar o planeta, através de satélites e redes infoeletrônicas.

Lógicas comerciais

A concentração patrimonial e tecnoprodutiva é particularmente grave na América Latina, onde players internacionais (News Corporation, Viacom, Time Warner, Disney, Bertelsmann, Sony-Columbia) têm alianças estratégicas com grupos multimídias regionais, vários deles controlados por dinastias familiares. Com as desregulamentações e privatizações na década de 1990, dinamizou-se essa junção de atores nacionais – sobretudo do Brasil, da Argentina e do México – e internacionais. As diretrizes de regionalizalização traduzem-se em coleções de joint ventures, aquisições, fusões, repartições acionárias e acordos operacionais, geralmente concebidos e implementados por holdings transnacionais (particularmente norte-americanas).

As quatro maiores empresas nas áreas de mídia e entretenimento retêm 60% do faturamento total dos mercados e das audiências. Se compararmos o desempenho sofrível da maioria dos países latino-americanos no comércio internacional com o que os gigantes midiáticos arrecadam no nosso continente, concluiremos que o grosso do faturamento é sugado por potências estrangeiras. Os Estados Unidos ficam com 55% das rendas mundiais geradas por bens culturais e comunicacionais; a União Européia, com 25%; Japão e Ásia, com 15%; e a América Latina, com apenas 5%.

Os principais grupos de comunicação da região (Globo do Brasil; Televisa do México; Cisneros da Venezuela; Clarín da Argentina) têm parcerias com grupos transnacionais para explorar, sinergeticamente, os setores tornados convergentes pela digitalização: televisão aberta e paga, rádio, mídia impressa, internet, celulares, filmes, vídeos, DVDs, CDs, livros, jogos eletrônicos, softwares, seriados e desenhos animados, etc. Com isso, além de monopolizar os mercados nacionais, racionalizam custos e obtêm mais-valia em ramos conexos e na economia de escala.

A dependência aos cartéis acentua-se em face dos insuficientes investimentos dos governos em tecnologias e produção cultural. Um dado eloqüente: embora o acesso à internet na América Latina cresça, semestralmente, a uma taxa média de 25%, somente 6% da população estão conectados. O descompasso nas apropriações e nos usufrutos tecnológicos constitui um paradoxo frente ao caráter estratégico da comunicação, seja para a formação de opinião pública, seja para o consolidação do mercado interno (mais serviços, receitas e empregos), ou para o desenvolvimento do audiovisual nacional, ou ainda para as condições de competitividade no plano externo.

A prevalência das lógicas comerciais na mídia latino-americana manifesta-se no reduzido mosaico interpretativo dos fenômenos sociais; na escassa variedade argumentativa, em razão de enfoques que reiteram temas e ângulos de abordagem; na supremacia de gêneros sustentados por altos índices de audiência e patrocínios (telenovelas, telejornais, reality shows); nas baixas influências públicas nas linhas de programação; no desapreço pelos movimentos sociais nas pautas e coberturas; na incontornável disparidade entre o volume de enlatados adquiridos nos Estados Unidos e a produção audiovisual nacional.

Diversificação simbólica

Os mais indulgentes diriam que, apesar dos pesares, aumentou a oferta multimídia e há recepções diferenciadas. De fato, seria miopia enxergar apenas manipulações no que a mídia difunde, ou supor que todas as audiências submergem na passividade crônica. Entretanto, devemos examinar atentamente importantes os lados da questão: a) os usos dependem de acessos e capacidades de discernimento marcadamente desiguais; b) quem comanda a disseminação dos bens simbólicos? c) quem define o que vai ser produzido e divulgado? d) como acreditar no valor absoluto da liberdade de escolha quando verificamos que 85,5% das importações audiovisuais da América Latina provêm dos Estados Unidos? Se duas dezenas de corporações respondem por dois terços das informações e dos entretenimentos mundiais, evidentemente a descentralização se inscreve mais na órbita das exigências mercadológicas do que propriamente nas diferenças qualitativas de conteúdos.

Em face da concentração monopólica e transnacional das indústrias culturais, a possibilidade de interferência do público (ou de frações dele) nas programações depende não somente da capacidade criativa e reativa dos indivíduos, como também de direitos coletivos e controles sociais sobre o desmedido poder da mídia.

De que adianta pôr em relevo os downloads grátis de filmes e vídeos na web ignorando-se que a avalanche imagética tem procedência definida: as produções de Hollywood detêm 85% do mercado cinematográfico global e 77% das programações televisivas da América Latina. Portanto, a diversificação simbólica guarda estreita proximidade com a comercialização em grandes quantidades lucrativas.

Vislumbrando horizontes

Fica claro que diversidade nada tem a ver com os prazeres sensoriais proporcionados pela Disney ou com o gáudio da Sony ao anunciar o lançamento de cinco mil itens por ano. Muito menos com modismos compulsivos. Diversidade pressupõe revitalizar manifestações do contraditório, confrontar pontos de vista, debater as interseções entre progresso, técnicas e tecnologias. Diversidade se assegura com intercâmbio e cooperação horizontal entre as culturas de povos, cidades e países. Diversidade se alcança com o acesso do conjunto da sociedade a múltiplas abordagens sobre acontecimentos e informações de interesse coletivo.

Entre as medidas ao alcance de governos comprometidos com a democratização da comunicação, estão:  

** legislações que impeçam a oligopolização;  

** revisão de normas para concessão ou renovação de canais de rádio e TV, pois as licenças pertencem ao patrimônio público e não a grupos privados;  

** mecanismos democráticos de fiscalização das empresas concessionárias;  

** ampliação da cota obrigatória de programação nacional, regional, comunitária e educativa nas emissoras de TV;  

** à semelhança do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) existente no Brasil, estipular um percentual de taxação sobre o lucro das concessionárias de rádio e TV, a fim de criar um fundo para programas de incentivo ao audiovisual nacional;  

** patrocínios a novas mídias, rádios e televisões comunitárias e projetos de comunicação popular (como na Bolívia de Evo Morales e na Venezuela de Hugo Chávez);  

** políticas específicas para a comunicação virtual sem fins mercantis, em sintonia com medidas que favoreçam a universalização dos acessos a tecnologias, através de desenvolvimento de infra-estruturas de rede em banda larga, do barateamento de custos teleinformáticos, da multiplicação de telecentros e pontos de acessos em comunidades carentes e de formação educacional condizente.

Tais intervenções englobam regulamentações favoráveis a veículos alternativos e comunitários (como no Chile de Michelle Bachelet e na Venezuela de Chávez); leis de incentivo à produção cinematográfica nacional (como na Argentina de Néstor Kirchner); e linhas de apoio à geração de conteúdos voltados à defesa da cidadania e à preservação de tradições culturais (como no Equador de Rafael Correa e na Nicarágua de Daniel Ortega).

São viáveis ações conjugadas de órgãos estatais de fomento no âmbito de blocos regionais (Mercosul, Pacto Andino). Isso poderá influir na formação de novos eixos para projetos compartilhados de comunicação e difusão cultural. É o que se observa nos recentes acordos de cooperação audiovisual firmados pelos governos de Chile, Argentina, Bolívia, Venezuela, Equador e Nicarágua – todos vedam financiamentos a grandes empresas, que são lucrativas e devem recorrer a bancos privados (ou então que paguem juros de mercado nos empréstimos obtidos em agências governamentais).

Pressões organizadas

Ao definirem novas políticas de comunicação, os governos progressistas da América Latina devem estar cientes de que marcos regulatórios das concessões de rádio e TV são tão indispensáveis quanto a inclusão dos sistemas de comunicação e das indústrias culturais nos eixos estratégicos de desenvolvimento e na agenda dos acordos de integração regional.

O processo de mudanças ainda está se desenhando; por certo haverá tensões, dificuldades e obstáculos. Os conglomerados resistirão a perder áreas de influência ou a se submeter a sanções legais. Basta ver a operação de guerra desencadeada contra o governo Chávez por não renovar, dentro da lei venezuelana, a licença da RCTV, que apoiou abertamente o fracassado golpe de estado em 2002. A grande mídia revidará toda vez que tentarmos salientar, como fez lucidamente o economista Luiz Gonzaga Belluzzo (Carta Capital, junho de 2007), que "os titulares do direito à informação e à livre manifestação do pensamento são os cidadãos em geral e não as empresas de comunicação e seus proprietários".

Os governos eleitos pelo voto popular e comprometidos com transformações sociais substantivas devem zelar, cada vez mais, pela prevalência do interesse público sobre as ambições comerciais e monopólicas.

As determinações políticas em vários países parecem apontar na direção de maiores e necessárias interferências governamentais nos rumos do setor. "A comunicação deve ter um nítido sentido social e de serviço público. É preciso reforçar o direito à informação, fortalecer a pluralidade comunicacional e facilitar o acesso dos cidadãos à tecnologia", resume com clareza a presidente chilena, Michelle Bachelet.

O ministro da Comunicação da Venezuela, William Lara, salienta a mudança de enquadramento no caso das concessões de radiodifusão (mudança que os governos de Bolívia e Equador também planejam fazer): "Os canais privados de rádio e televisão sempre foram aliados de setores do poder econômico e político. Agora devem estar abertos a todos os setores do país".

Na abertura do V Encuentro Mundial de Intelectuales y Artistas en Defensa de la Humanidad, realizado em maio de 2007 na cidade boliviana de Cochamba, o presidente Evo Morales disse que jornalistas e intelectuais devem ajudar o governo a criar "consciência popular sobre a importância de os meios de comunicação defenderem os valores da vida, e não os valores do capital, do egoísmo e do individualismo".

O desafio de longo prazo remete à construção de alternativas não contaminadas pela febre da mercantilização – alternativas que não podem prescindir de pressões organizadas por parte de segmentos reivindicantes da sociedade civil, bem como do empenho sistemático por parte de poderes públicos afinados com o ideal de democratização. Teremos que demonstrar capacidade de articular múltiplas ações e cobrar medidas que assegurem emissões descentralizadas, dinâmicas participativas e compromissos duradouros com uma comunicação mais plural.

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