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Globonews derruba avião

Vinte de maio de 2008. Esse dia, certamente, entrará para a história da imprensa nativa como a data em que a GloboNews produziu a mais "volumosa barriga" do jornalismo brasileiro. Uma barriga pedagógica, pois modelada por um "q" de qualidade desprovido de qualquer compromisso com apuração do que é divulgado. Um relato de como se produz o que o telespectador "deve saber". Um instantâneo de como a ética corporativa trabalha com o conceito de responsabilidade social.

Por volta de 17h, a emissora anunciava que: “interrompemos a transmissão da CPI dos Cartões Corporativos para mostrarmos imagens ao vivo de São Paulo. Acaba de chegar a informação de que um avião da empresa aérea Pantanal caiu em cima de um prédio comercial na Zona Sul de São Paulo". Ao apontar a Infraero como fonte, foi desmentida de imediato. É tênue a fronteira que separa o fascínio espetacular do lodaçal patético do testemunho desqualificado.

Um incêndio em um depósito de colchões, em Campo Belo, bairro de classe média de São Paulo, foi apresentado, durante cinco minutos, como um desastre aéreo. Mostrando imagens de fumaça, a emissora informava que uma aeronave da empresa Pantanal havia caído próximo a Congonhas. Foi o suficiente para que dois portais (IG e Terra), além de emissoras de rádio, no curso do mimetismo midiático, reproduzissem, sem citar fontes, a falsa notícia.

A que atribuir tal açodamento? Ao processo taylorista instalado na dinâmica do campo jornalístico? É possível. Isso é compatível com o modus operandi de uma indústria que concebe a informação como bem simbólico mercantil.

Como checar as informações e publicá-las dentro de um padrão de bom senso e confiabilidade, quando o critério de eficiência é dado pela velocidade da divulgação? Quando o objetivo é furar o concorrente, dando a notícia em primeira mão, direto, ao vivo, instantaneamente. Continuar o bombardeio informativo, em tempo contínuo, dispensa até mesmo o profissional qualificado: basta uma testemunha que produza o "efeito do real". Alguém que já não controle mais o produto final da produção simbólica, visto que dela participa como mero legitimador.

Como destaca Ignacio Ramonet "o jornalista está literalmente asfixiado, ele desaba sob uma avalanche de dados, de relatórios, de dossiês- mais ou menos interessantes- que o mobilizam, o ocupam, saturam seu tempo e, tal como chamarizes, o distraem do essencial. Por cúmulo, isto incentiva ainda sua preguiça, pois não precisa mais buscar a informação. Ela chega por si mesma a ele."

Por certo, a barriga dos repórteres e editores da telinha deve também ser analisada nas próprias condições materiais de produção da informação em "tempo real". Mas será que isso nos exime de examinar o caráter ideológico e político inerente à atividade jornalística. No caso brasileiro, não cabe falar em um "script" que está no substrato das coberturas?

Nossa grande imprensa pode ser considerada um serviço público que, de forma isenta, faz a mediação dos "fatos que falam por si", cabendo ao público o livre discernimento? Ou prevalece a orientação editorial de que há que se preservar a estabilidade democrática salvo o surgimento de “fatos novos e comprometedores"?

Não estaria aí, na perfeita sintonia com o pensamento de quem lhes emprega, o descuido que levou uma aeronave a colidir com colchões? Interromper uma construção midiática que se mostra sem fôlego ( “dossiê") para reativar outra (“caos aéreo") nada mais é que estabelecer a agenda que interdita o real debate político. Algo que cai do céu para uma oposição que vive seu vazio programático de forma melancólica.

Terá sido por acaso que, alertado por um assessor, o deputado Antônio Carlos Pannunzio( PSDB-SP), interrompeu a sessão da CPI dos Cartões para, como destaca José Dirceu em seu blog, fazer uma "comunicação bastante grave e muito triste" aos seus pares e lamentar o "caos no tráfego aéreo"? Ou será que o parlamentar tucano, em boa hora, alugou a barriga global?

Em comunicado sobre o episódio, a Central Globo de Comunicação afirmou que: "A respeito do incêndio ocorrido hoje à tarde em São Paulo, a Globo News, como um canal de noticias 24 horas, pôs no ar imagens do fogo assim que as captou. Como é normal em canais de notícias, apurou as informações simultaneamente à transmissão das imagens. A primeira informação sobre a causa do incêndio recebida pela Globo News foi a de que um avião teria se chocado com um prédio na região do Campo Belo, Zona Sul de São Paulo.

“Naquele momento bombeiros e Infraero ainda não tinham informação sobre o ocorrido. As equipes da própria Globo News constataram que não havia ocorrido queda de avião e desde então esclareceu que se tratava de um incêndio em um prédio comercial. Poucos minutos depois o Corpo de Bombeiros confirmou tratar-se de um incêndio em uma loja de colchões".

O Portal IMPRENSA registra que mesmo após o Alto Comando das Organizações esclarecer que "embora a Globo News tenha publicado esta primeira informação, a TV Globo não fez qualquer menção ao possível acidente aéreo", o engano ainda permanecia em vídeo no site do canal por assinatura, ainda que a informação já estivesse desmentida. Minutos depois, ele foi retirado”.

Diante do naufrágio, a família Marinho fez o que achou mais acertado. Tirou o "q" de qualidade da barriga e seguiu solene para a próxima “exploração de hipótese". É assim que o monopólio compreende a democracia. Como uma possibilidade de pequenos arranjos e grandes negócios.

Zé Roberto e Murilo: jornalismo, paixão e morte

Morreu José Roberto de Alencar. Azar de quem sobrou. O mundo sem ele ficou mais pobre, mais chato e burro. Dias antes havia morrido Murilo Felisberto. Dois grandes jornalistas. Com eles lá se foi mais um pouco do pouco que restava entre nós do jornalismo como paixão. Duvido que surjam no futuro próximo pessoas tão apaixonadas pelo jornalismo como eram José Roberto de Alencar, o "Zé Grandão", e Murilo Felisberto.

Ambos veneravam o jornalismo, os grandes jornais e os grandes jornalistas. Viviam a profissão à moda antiga, "romântica", como definem com desdém os moderninhos, com muito papo de botequim depois do fechamento, e também engajada, não politicamente engajada, simplesmente engajada. O jornalismo como um engajamento em valores humanos e estéticos, não meramente como uma forma de saber, ou um jeito de ganhar dinheiro.

Ambos mineiros, como tantos outros jornalistas brasileiros de destaque, eram gregários, viviam com e para os amigos. E eram ambos perfeccionistas. Também morreram cedo demais, Murilo aos 67 anos e Alencar aos 62. Mas parece que aí param as semelhanças entre esses dois grandes jornalistas. É sobre as diferenças entre os dois que quero escrever.

Vocabulário popular

Murilo era o bem formado, o intelectual, estudou no colégio americano Gamon. Alencar era o prático. Um caminhoneiro que virou repórter, pelas mãos de Luís Nassif. Murilo era classe média (suponho). Alencar era povo. Murilo provavelmente preferia whisky. Alencar decididamente tomava cachaça. Murilo era muito mais o editor, o condutor de redações, o inovador do departamento de arquivo do Jornal do Brasil e depois criador da linguagem dialogada e direta do Jornal da Tarde, que influenciou tantos outros jornais, inclusive o alternativo Amanhã. Tinha o faro do que é notícia, segundo escreveram seus amigos, mas me parece que era basicamente um jornalista de redação.

Alencar não conseguia esquentar cadeiras. Era o repórter de rua por excelência. De rua, e das quebradas pelo Brasil afora. Quando descobria que não queriam reportagem, não queriam que viajasse, demitia-se. Fanático por um furo na primeira página. Deve ter colecionado o maior número de furos em primeira página da história do nosso jornalismo. Lembro o dia em que ele me procurou para receber os elogios pelo seu furo na Gazeta Mercantil, revelando os contratos de risco para exploração de petróleo que a Petrobras queria assinar com empresas estrangeiras.

Mas os furos do jornalismo, como o próprio jornalismo, têm vida curta. "Efêmera glória matinal: ao meio-dia jornal já é papel de embrulho…", diz o próprio Alencar em um de seus livros de causos. Já a linguagem jornalística do Alencar, seu estilo, seu modo de escrever, é uma invenção que fica. Tenho a certeza de que ainda vai ser objeto de estudos acadêmicos.

Se Murilo detestava o vulgar, como dizem os seus obituários no Jornal da Tarde e no Estadão, Alencar conseguia usar o vulgar para desconstruir o formalismo da narrativa padrão do nosso jornalismo. Isso em textos bem estruturados, com a informação precisa, hierarquizada e contextualizada e nunca escondendo sua indignação pelos desastres sociais que encontrava. Era uma escrita ao mesmo tempo galhofeira, anarquista e bem humorada. Como ele conseguia isso?

Nesta nota rápida é possível apenas levantar algumas pistas. Quando a escrita ameaçava se tornar formal demais, ele a quebrava com expressões do vocabulário popular. Exemplo: o uso das palavras "pirralhos" e "guria", nesta frase: "…A história começa em 1995, ano da morte do construtor Walmir Costa. Viúva, com quatro pirralhos e a guria, dona Vera arrumou emprego de vendedora…". Quando ameaçava se tornar solene, ele a quebrava com expressões fortes do dia-a-dia: "Morreu Darcy Ribeiro. Azar de quem sobrou: o mundo sem ele ficou mais pobre, mais chato e burro…."

Espaço para o talento

Conseguia sempre fugir do pomposo, do pernóstico. Também trazia para a narrativa jornalística algo do som dos sertões: "Notícia ruim nunca faltou aos sete mil moradores de Puerto Casado, no Chaco Paraguaio… E a sina não ia mudar justo em dia agourento como aquele…". Criava, assim, efeitos de lugar e época. E gostava de brincar com os significados de palavras ambíguas, observou bem um dos poucos registros de sua morte nos jornais desta semana.

Volto ao meu ponto de partida, do jornalismo como paixão. É uma paixão que pode ser vivida de vários modos, o sofrido, o lúdico, o prazeroso. Fora ou dentro das redações. Mas é sempre uma relação intensa, uma entrega total. E passa sempre pelo manejo criativo e respeitoso da língua. A língua é o nosso registro do mundo e nosso elo com os leitores. Não é algo que se aprende na escola. Alencar não aprendeu na escola. Não vem no diploma de jornalismo. Está no DNA. Nasce com a gente. É parte do talento para o jornalismo.

Mas é claro que os talentos só vão se mostrar se o jornalismo lhes der espaço. E aí está o paradoxo: cada vez que morre um Alencar ou um Murilo, morre um pouco mais do próprio espaço do jornalismo como paixão, e com isso a possibilidade de se revelarem novos apaixonados.


 

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