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Os mitos da imprensa liberal: denúncia e alternativa

Resenha do livro The Problem of the Media – U.S. communication politics in the 21st century, de Robert W. McChesney, publicado em 2006 pela Monthly Review Press.

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No mundo inteiro, as empresas jornalísticas justificam sua existência a partir da idéia de que, sem elas, não existe democracia. Por esse raciocínio, a imprensa é necessária para cumprir três tarefas: 1) fiscalizar os governantes e os que aspiram a essa posição; 2) separar as verdades das mentiras; 3) proporcionar aos cidadãos o acesso às opiniões relevantes sobre os temas de interesse público.

Na avaliação de Robert McChesney, um dos mais importantes analistas de mídia dos Estados Unidos, essas intenções nunca estiveram tão distantes da realidade quanto no momento atual. Esse autor demonstra como a formação de grandes conglomerados no setor de comunicações, as políticas de gestão voltadas para a redução dos custos e a "hipercomercialização" do mercado editorial se somaram para fazer da mídia contemporânea uma instituição que contradiz, ponto por ponto, os pressupostos democráticos que legitimam sua existência.

McChesney busca na história dos EUA argumentos sólidos para desmontar os mitos que alicerçam o discurso liberal sobre a mídia. Seu livro assinala a presença, em toda a trajetória do país desde a independência, de "uma tensão crucial entre o papel dos órgãos de imprensa como empreendimentos comerciais e sua necessidade para a formação de cidadãos bem informados". A idéia, tão cara aos liberais de hoje, de que Estado e imprensa livre não se misturam é apenas um mito. Na fase inicial da democracia norte-americana, a pluralidade de pontos de vista só foi possível graças a um vasto sistema de incentivos estatais – desde os subsídios ao papel e à importação de impressoras até a franquia do envio postal. Até hoje, as empresas de comunicação continuam a se beneficiar de políticas governamentais que favorecem os seus interesses.

A imprensa norte-americana dos primeiros tempos era assumidamente partidária. Isso não constituía um problema na medida em que, numa mesma comunidade, podiam circular até 15 jornais diferentes. "Se alguém estivesse insatisfeito com a linha editorial de todos esses 15, não precisaria ser um milionário para criar um 16º", comenta McChesney. A grande mudança ocorreu no final do século XIX, quando a imprensa caiu sob o domínio de grandes empresas e a venda de publicidade passou a exercer um peso econômico cada vez maior. A pressão dos anunciantes forçou uma situação em que, na maioria das cidades, apenas um ou dois jornais sobreviveram. Com exceção de grandes metrópoles, como Nova York, e de áreas suburbanas antes inexistentes, nenhum novo jornal foi lançado nos EUA desde 1910.

As empresas de comunicação encontraram no tipo-ideal do jornalismo "independente" e "objetivo" um meio eficaz de adaptação à nova realidade. Não há inconveniente em existirem poucos jornais, dizia-se, desde que eles ofereçam informações isentas, ganhando assim a confiança de um universo heterogêneo de leitores. Para garantir a independência das publicações, surgiu a norma da "separação entre Igreja e Estado" – o princípio sagrado de que o conteúdo editorial deve permanecer imune aos interesses comerciais da empresa. Disseminou-se entre os jornalistas uma mentalidade de "profissionalismo" que dá suporte a essa concepção. Na prática, como muitíssimos estudos já demonstraram, a propalada autonomia editorial sempre esbarrou em limites concretos. A submissão da imprensa aos interesses das elites políticas e econômicas foi garantida por mecanismos como a seleção dos assuntos (ênfase nas pautas geradas pelos poderosos) e das fontes (exclusão das vozes críticas ao establishment).

Na atual era de neoliberalismo, mesmo essa imprensa falsamente objetiva está desmoronando diante da ganância incontrolável e da extrema competição. Nos EUA, a derrubada das leis anti-monopolistas (a "desregulamentação") abriu caminho para um processo frenético de fusões e incorporações nos meios de comunicação, hoje concentrados nas mãos de gigantescos conglomerados. Para permanecer nesse jogo bilionário, os capitalistas precisam recuperar rapidamente seus investimentos e, para isso, tratam de modificar as regras e os acordos informais que vigoraram por mais de um século.

Aí reside, segundo o autor, a explicação para o rebaixamento brutal dos padrões de qualidade amplamente apontado pelos analistas de mídia. Em nome do enxugamento das despesas, um mesmo repórter agora produz matérias para jornais, revistas, TV aberta e a cabo, website, telefonia celular e o que mais venha a ser inventado. "A reportagem investigativa entrou para a lista das espécies ameaçadas", escreve McChesney. "Ficou mais barato contratar jornalistas inexperientes para preencher o espaço com as declarações dos poderosos. Os repórteres investigativos se tornaram suspeitos, pois as empresas de mídia têm pouco incentivo para produzir reportagens que possam irritar seus anunciantes, acionistas e parceiros de negócios."

A antiga "muralha da China" desabou com a invasão das redações pelos interesses comerciais. A penetração se dá por diversas portas de entrada, segundo McChesney. Uma delas é a influência crescente das assessorias de imprensa. Com as redações desfalcadas e povoadas por profissionais sem preparo, os releases são publicados como se fossem informações isentas. Outro meio de captura das redações pelo interesse financeiro são as "fontes de receita não-tradicionais", matérias-pagas produzidas pelos mesmos órgãos de imprensa que, segundo o figurino liberal, deveriam fiscalizar as companhias. Para não desagradar os anunciantes, os veículos de comunicação evitam os assuntos polêmicos e se voltam, cada vez mais, para futilidades, para a vida mundana dos ricos e famosos. O "hiper-comercialismo" também empurra a mídia a dar destaque aos temas e aos interesses do público endinheirado, de classe "alta" e "média-alta", mais atraente para os anunciantes. Desaparece, assim, a noção do jornalismo como um serviço público.

Nesse cenário, o "mundo corporativo" é quem ocupa o centro. As oscilações rotineiras da Bolsa de Valores são tratadas com tema de vital importância, apesar da indiferença da maioria da população por esse assunto. Os temas trabalhistas sumiram do noticiário.

Lamentavelmente, observa McChesney, o boom do jornalismo de negócios não provocou um aumento da vigilância sobre os empresários. Ao contrário, a acumulação de riqueza é cultuada como um valor em si mesmo. Em qualquer assunto, as fontes empresariais têm prioridade.Os magnatas e os altos executivos são tratados com deferência servil, ao mesmo tempo em que se descartam os portadores de opiniões críticas. Os efeitos nefastos desse processo de deterioração se desnudaram no megaescândalo que envolveu, em 2002, algumas das maiores corporações empresariais dos EUA, entre as quais a Enron e a WorldCom. A imprensa fracassou vergonhosamente em seu papel de vigilância. "Apesar dos enormes recursos destinados ao jornalismo de negócios na década de 90, a imprensa deixou passar em branco todas as evidências das falcatruas que eram praticadas nos altos escalões da Enron", escreve McChesney. Ele lembra que a prestigiada revista Fortune premiou a Enron como "a empresa mais inovadora dos EUA" em todos os anos entre 1995 e 2000.

Diante desse panorama sombrio, o que fazer? McChesney tem o grande mérito de propor soluções viáveis – ou, ao menos, dignas de discussão. Segundo ele, "não podemos ficar prisioneiros da idéia de que não há alternativa com exceção do Gulag". Ou a tirania stalinista ou a opção igualmente antidemocrática de um "pensamento único" sob o controle dos Berlusconis, Murdochs e Marinhos. Sua proposta de democratização prevê duas vias convergentes. De um lado, investimento maciço do Estado em apoio a meios de comunicação não-comerciais – empreendimentos sem fins lucrativos, geridos por cooperativas de jornalistas, entidades comunitárias, municipalidades, grupos religiosos etc. Ao mesmo tempo, as autoridades devem instalar um amplo sistema público de mídia, com tecnologia moderna e recursos que o tornem capaz de competir com as redes comerciais.     

Tanto os problemas analisados por McChesney quanto as soluções por ele propostas vão muito além, como se percebe, do âmbito dos EUA. Pela sua relevância e atualidade, seu livro merece uma tradução brasileira, urgente.

* Igor Fuser é jornalista.

Globo vive crise histórica de público, poder e credibilidade

A TV Globo amarga um desgaste histórico. Nenhum executivo da emissora chega a temer pela não-renovação das cinco concessões que expiram nesta sexta-feira (5). Mas nem essa convicção atenua a crise de uma Globo que: 1) perde audiência sem parar; 2) é cada vez mais contestada por movimentos da sociedade civil; e 3) já não ostenta tanto poder e credibilidade diante da opinião pública.

Não dá para dizer que, em curto prazo, a hegemonia da família Marinho na televisão brasileira esteja sob risco. Até a Record – que desbancou o SBT do posto de principal concorrente da Globo – assume que precisa de pelo menos cinco anos para alcançar a liderança de audiência. Ainda assim, dia após dia, estatística a estatística, a Globo decai.

Essa constatação fica explícita na Grande São Paulo – área mais disputada pelas emissoras, onde cada ponto abrange 55 mil domicílios. A TV Globo encerrou o mês de setembro com vantagem de 11 pontos sobre a Record (18 x sete). Em relação a setembro de 2006, esses números revelam que audiência global despencou 11,8%, enquanto a Record ganhou 50,2%.

A guerra entre os dois canais se acirrou com a inauguração da Record News, na última semana, em cerimônia realizada em São Paulo. Visivelmente preocupada, a Globo apelou para o governo federal na tentativa de impedir a estréia da emissora de notícias. Evandro Guimarães, vice-presidente de Relações Institucionais das Organizações Globo, teve audiência com o ministro das Comunicações, Hélio Costa, e com outras autoridades ligadas ao Palácio do Planalto. Sua missão era impedir que a Record News entrasse no ar devido a "ilegalidades". Fracassou.

O vexame maior se deu no dia da cerimônia da inauguração. Segundo informou Paulo Henrique Amorim no site Conversa Afiada, "a Globo fez uma pressão violentíssima, de última hora, sobre o Palácio do Planalto, para impedir que o Presidente Lula fosse à festa de lançamento da Record". As armas da Globo: "detalhes técnicos minuciosos, que continha o argumento de que a lei impede uma rede de ter dois canais na mesma área".

Como se viu horas depois, o ataque final foi infrutífero, e o presidente da República inaugurou a emissora. As "pressões de bastidores" perderam o peso que tinham nos tempos em que a Globo era capaz de arquitetar resultados eleitorais e guiar ações do Congresso.

Programas em baixa

São visíveis os sinais de que o público depende menos da Globo para se informar e se distrair. A debandada atinge novelas (carro-chefe da audiência global), futebol (sobretudo seleção brasileira), seriados, atrações semanais (como Linha Direta, Fantástico e Esporte Espetacular) e a programação da manhã.

Do primeiro ao último capítulo, Paraíso Tropical – que foi ao ar até sábado (29/9) – teve média geral de 42,8 pontos. Entre as "novelas da 8" que a emissora exibiu nesta década, trata-se do segundo pior desempenho – o típico "fiasco de público". Não atingiu a meta mínima de 45 pontos, estipulada pela Globo. Mais inferior ainda foi a sucessora, Duas Caras, que teve a pior estréia da década, com 40,3 pontos no primeiro capítulo – e caiu mais quatro pontos no capítulo seguinte.

"A comparação das audiências regionais da Globo evidencia que a novela da oito, líder na média nacional e nas principais capitais, não é uma unanimidade", explicou Daniel Castro na Folha de S.Paulo. Segundo o jornalista, Paraíso Tropical teve "rejeição nas cidades do interior" – situação com que poucas vezes a Globo teve de lidar.

Malhação é outro exemplo de programa global em queda livre. Na média, foram 32 pontos em 2004, 31 em 2005, 29 em 2006 e apenas 25 em 2007 (janeiro a setembro). O despencar da atração levou a Globo a antecipar o final da temporada de janeiro para novembro.

Também o Fantástico, líder de audiência aos domingos, decresce programa a programa – já caiu cinco pontos de agosto a setembro. O cenário mudou. Reportagens "especiais" foram feitas na reta final da novela das 8. Nada resolveu. "Deve haver uma soma de fatores influenciando esse relativo desinteresse do público", escreveu a crítica de TV Bia Abramo. "Mas será que para isso também não concorre simplesmente um envelhecimento fatal da fórmula?"

E aí está o segredo da TV Record. A emissora do bispo Edir Macedo chupa o "padrão Globo de qualidade", seja no jornalismo, seja na teledramaturgia. Mas tempera isso com ousadia e ritmo próprios, aproximando-se do interesse dos jovens espectadores.

A reação

Uma verdade: a Globo, no cômputo geral, ainda tem mais público que a soma de Record e SBT. A diferença, no entanto, vai diminuindo. Em 2000, metade dos espectadores sintonizava a Globo. Atualmente, sua audiência não passa de 43% – e a emissora já começa a correr para reverter o declínio.

No começo de setembro, mandou a anunciantes um documento de 14 páginas exclamando uma "destacada liderança em todo o Brasil". Segundo Daniel Castro, a iniciativa foi interpretada no mercado "como uma demonstração da Globo de preocupação com o marketing e com o crescimento de audiência e comercial da Record".

Uma semana depois, o 7º Encontro Globo de Criação não se restringiu a seu tema habitual – o estudo de programas novos para especiais de fim de ano. O principal ponto em debate foi justamente a audiência perdida para outras emissoras, outras mídias e até para a apatia do espectador.

A disputa pelo público matutino é a prova maior do desprestígio da Globo, ameaçada pelos desenhos do SBT e pelo interessante programa Hoje em Dia, da Record. A emissora carioca já patinou várias vezes num terceiro lugar no período da manhã, expondo a decadência de estrelas como Ana Maria Braga e Xuxa.

Quem dera fosse só de manhã. Na noite de 12 de junho deste ano, a Globo estreou a esperada microssérie A Pedra do Reino – uma das apostas da emissora, e um sucesso de crítica. Ficou novamente atrás da Record (22 pontos com O Aprendiz) e do SBT (16 com o filme Lara Croft – A Origem da Vida). A microssérie registrou 14 pontos.

Sob ataques

O desgaste da maior emissora do país se reflete no Congresso Nacional e nos movimentos sociais. Lá como cá, as manifestações e os discursos anti-Globo se multiplicam. Em defesa do canal, pode-se dizer que houve protestos contra outros veículos, como o ato do Movimento Sem-Mídia à frente da Folha de S.Paulo e da UJS (União da Juventude Socialista) diante da Editora Abril. A Globo, ainda, assim, "lidera" o ranking da indignação.

Em 19 de setembro, o deputado federal Fernando Ferro (PT-PE) foi à tribuna da Câmara e, de forma irônica, propôs a criação do Partido da Imprensa – com Arnaldo Jabor de presidente, Miriam Leitão como secretária-geral e Diogo Mainardi na tesouraria. O mesmo parlamentar voltou ao plenário neste mês de outubro e acusou o diretor-executivo da Central Globo de Jornalismo, Ali Kamel, de "falsificador" de informações.

As queixas generalizadas contra a emissora da família Marinho culminam, nesta sexta-feira, em manifestações lideradas pela Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) – A Jornada Nacional de Lutas pela Democratização dos Meios de Comunicação. Com eventos marcados em 15 capitais, entidades como CUT, UNE e MST exigirão mais rigor e controle público na renovação de concessões de rádio e TV.

São as grandes redes – Globo à frente – que estão no centro da contestação. Uma manifestação cultural chamada Globo Mente tomará o Rio de Janeiro. No Recôncavo Baiano e no Recife, comunidades quilombolas sairão às ruas para denunciar as difamações promovidas pela emissora. Os quilombolas da Bahia incentivarão o povo a não ver a programação da Globo durante o dia.

É difícil que as cinco afiliadas globais percam sua licença. Um decreto de 1963 permite a renovação automática das concessões enquanto o Congresso não aprecia a questão. Mesmo que o caso chegue lá, dois quintos do Congresso Nacional precisam aprovar a não-renovação em votação nominal. Mas, legislação à parte, a confiabilidade da TV Globo nunca esteve tão à prova.

* André Cintra é jornalista e membro da equipe do Portal Vermelho.

TV digital: cadê a prometida fábrica japonesa de semicondutores?

A escolha do padrão japonês para a TV digital brasileira – que faz sua estréia dia 2 de dezembro, em São Paulo – foi assunto dos mais discutidos por técnicos das mais variadas tendências, sobretudo porque esse padrão somente é usado no Japão e mais dois países asiáticos. Americanos e europeus bem que tentaram argumentar em favor de seus sistemas, em vão. Os japoneses acabaram escolhidos apenas por uma razão: a contrapartida. Eles se comprometiam, com o devido registro no memorando de entendimento assinado pelos dois governos, a construir, no Brasil, uma fábrica de semicondutores, o que significaria um enorme salto tecnológico para o País. O tempo passou e o Brasil já está apto a transmissões digitais, o que significa que fez sua parte. Mas, segundo uma bem informada fonte, ao que parece, a tal fábrica não será construída. 'Nunca mais se falou nela', ironiza.

Alguém do governo brasileiro cobrou o governo japonês? Em recente visita ao Brasil, justamente para divulgar o modelo nipônico, o ministro para assuntos internos de Comunicações do Japão, Yoshihide Suga, segundo a mesma fonte, foi cobrado. Mas tergiversou, limitando-se a dizer que o sucesso da parceria criou um clima propício à entrada de novos investimentos do seu país no Brasil, que estavam estancados desde a década de 1970.

Aliás, não é apenas a fábrica prometida pelos japoneses que não figura em um futuro visível. Ao justificar a escolha do padrão japonês de TV digital, o ministro Hélio Costa disse, entre outras, que ele proporcionaria maior interatividade, maior mobilidade, com recepção direta de TV em celulares, por exemplo. Hoje, o próprio ministro já admite que essa interatividade e a recepção móvel virá sim, mas não agora.

Num balanço informal, feito por funcionários do governo brasileiro, constatou-se que a única coisa acertada no tal memorando que foi cumprida até agora foi a incorporação, ao avançado modelo japonês, de algumas ferramentas desenvolvidas por universidades brasileiras, o que, atestam os técnicos, melhorou o sistema, adaptando-o às necessidades brasileiras.

Direito autoral: aquele abraço como única moeda

A recente polêmica entre o ministro Gilberto Gil e seu parceiro e amigo Caetano Veloso em torno da proteção dos direitos de propriedade dos criadores artísticos vai muito além dos interesses imediatos dos que vivem da produção cultural. Caetano acusou Gil de estar criando um ambiente de "vale-tudo", em que os interesses dos artistas seriam seriamente feridos com a renúncia à proteção. O compositor Fernando Brant, hoje presidente da União Brasileira de Compositores, manifestou-se abertamente contra o Creative Commons, iniciativa para desenvolver uma série de licenças que permitem aos indivíduos que produzem informação, cultura e conhecimento definir o que os outros podem fazer com seus trabalhos.  

É óbvio que Caetano e Brant não representam o ponto de vista conservador de defesa da propriedade e dos interesses das grandes gravadoras contra uma suposta posição irresponsável de Gil, já assentado em reputação internacional e, por isso, alheio aos direitos autorais. Tal polaridade não faz jus à inteligência desses gênios da raça. O que está em jogo no debate é aquilo que o último livro de Yochai Benkler, professor da Entrepreneurial Legal Studies da Harvard Law School, considera a mais importante força de mudança das sociedades contemporâneas: a nova economia da informação em rede. Parodiando Adam Smith, Benkler escreveu "The Wealth of Networks", publicado pela Yale University Press e disponível na internet por licença da Creative Commons. 

O trabalho de Benkler não consiste em propor um irrealista desprendimento material aos produtores de informação, cultura e conhecimento, como se, com a adesão ao Creative Commons, pudessem viver do ar azul do céu. Seu ponto de partida é que bens culturais são diferentes daquilo que caracteriza o conjunto da produção social. Conforme ensina a microeconomia, bens culturais são não rivais, isto é, seu consumo por alguém em nada prejudica o consumo simultâneo ou posterior por outra pessoa. Maçãs e laranjas são bens rivais. Depois de eu consumir uma laranja, mais recursos terão de ser alocados à sua produção para atender a um novo consumidor. Com a informação, a cultura e o conhecimento, não. Por isso, são fortes candidatos à produção fora das leis do mercado. 

A política de proteção de bens não rivais só poderia ser justificada por duas razões. Em primeiro lugar, para garantir os direitos que vão permitir a difusão da cultura por parte de empresas, compensando os investimentos em máquinas para imprimir jornais, antenas de televisão e estúdios de cinema. Sem pagamento, não responderão à necessidade de difundir a cultura, o que justifica, socialmente, os direitos autorais. Em segundo lugar, a proteção garantiria aos autores que possam viver de sua produção intelectual, sem o que a sociedade sairia prejudicada, pela ausência de suas obras. 

Os computadores e a internet fazem parte de um conjunto de mudanças institucionais e tecnológicas que jogam por terra essas duas justificações. Os padrões que dominaram a produção cultural no século XX e se materializaram no poder de Hollywood, das grandes redes de gravadoras e de telecomunicações respondiam a uma lógica de fabricar relativamente poucos produtos e ganhar de maneira extraordinária com sua distribuição massiva. Dos 3 mil discos editados na França em 2001, apenas 30 figuram entre os mais tocados nas emissoras de rádio e 10 responderam por 80% das vendas. Isso quer dizer que a difusão cultural promovida pela economia industrial da informação é extremamente restrita e pouco diversificada, já que se trata de maximizar alguns poucos produtos, com base em sua massificação. 

Quanto à proteção dos direitos dos autores, ela tem uma contrapartida que foi apontada por Josh Lerner numa pesquisa sobre mudanças nos direitos de propriedade em 60 países ao longo de 150 anos. Os resultados são desconcertantes para os adeptos da idéia de que sem a proteção ao direito de autor não há inovação: a proteção por patentes não aumenta o nível de inovação dos países, por duas razões básicas. A primeira está no chamado efeito "sobre os ombros de gigante" e se refere à célebre tirada de Newton, segundo a qual não poderia ter escrito sua teoria se não estivesse apoiado em Copérnico e Galileu. A segunda refere-se à não-rivalidade: os custos do acesso à informação protegida são freqüentemente maiores do que os benefícios com seu uso. Portanto, do ponto de vista social, restringir o acesso à informação, ao conhecimento e à cultura por meio de direitos autorais ameaça o vigor dos processos inovadores. 

É aqui que Benkler mostra que seu trabalho não consiste em propor um modelo, mas em constatar algo que já está francamente em processo de construção. O surgimento da internet fortaleceu um ambiente no qual emergem formas de ação coletiva que não se baseiam nem no sistema de preços nem na coordenação típica das firmas ou dos grupos de firmas. A internet oferece uma plataforma de comunicação que fortalece a ação em rede dos indivíduos. 

Mas, se é assim, como sobrevivem os criadores de cultura e conhecimento neste mundo em que a produção partilhada, avaliada e certificada pelos pares, é cada vez mais importante, inclusive na estratégia de grandes grupos econômicos como a IBM? A partilha dos direitos do autor e sua permissão de uso (como, por exemplo, na prática do "copyleft") não vão conduzir ao aniquilamento da energia criativa que se localiza em alguns indivíduos de maneira especial? Benkler mostra como a economia da informação em rede fortalece a mistura entre relações mercantis e não mercantis: o produtor cultural que estimula a venda livre de suas obras em CDs (como no caso, por exemplo, do tecnobrega paraense) vai ampliar suas chances de ganho em shows e festas ou em conferências ou ainda com publicidade. 

O livro de Benkler rompe com a idéia, tão comum nos dias de hoje, de que a vida cívica contemporânea está afundando com a mercantilização do mundo, a corrupção na política e a crise na representação democrática. Ele constata a emergência de uma nova esfera pública, fora do mercado e das hierarquias. O que escapa aos objetivos de Benkler, mas vai na mesma direção que ele aponta, são os resultados mais recentes dos trabalhos inspirados na nova sociologia econômica que mostram a importância crucial das redes sociais nos mais variados domínios da vida econômica. 

* Ricardo Abramovay é professor titular do departamento de economia da FEA e do Programa de Ciência Ambiental (PROCAM) da USP 

A fiscalização e a renovação das concessões de televisão

É fundamental a oxigenação do sistema de radiodifusão privado com a implantação de um procedimento adequado de renovação do ato de atribuição do direito à exploração do serviço de televisão por radiodifusão, com a participação dos usuários do serviços e demais cidadãos interessados.

Atualmente, por força  do disposto no art. 223, §2º, da CF, a não-renovação da concessão dependerá de aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal. Na prática, ocorre a renovação automática das concessões para a prestação do serviço de radiodifusão, sem qualquer controle sobre o desempenho da atividade pela emissora de televisão.

Daí porque sugere-se a revogação do referido dispositivo constitucional, desconstitucionalizando a matéria, tornando-a passível de tratamento por lei, a fim de possibilitar o maior e o melhor sobre controle sobre a atividade de televisão.

O Decreto-Lei nº 236/67, que modificou a Lei nº 4.117/62, em seus arts. 53  e 64, disciplina a aplicação da pena de cassação à  emissora de televisão por radiodifusão titular da concessão nos seguintes casos: incitar a desobediência às leis ou decisões judiciais, divulgar segredos de Estado ou assuntos que prejudiquem a defesa nacional, ultrajar a honra nacional, fazer propaganda de guerra ou de processos de subversão da ordem política e social, promover campanha discriminatória de classe, cor, raça ou religião, insuflar a rebeldia ou a indisciplina nas forças armadas ou nas organizações de segurança pública, comprometer as relações internacionais do País, ofender a moral familiar pública, ou os bons costumes, caluniar, injuriar ou difamar os Poderes Legislativos, Executivo ou Judiciário ou os respectivos membros, veicular notícias falsas, com perigo para ordem pública, econômica e social, colaborar na prática de rebeldia, desordens ou manifestações proibidas, reincidência em infração anteriormente punida com suspensão, interrupção do funcionamento por mais de trinta dias consecutivos, exceto quando tenha obtido autorização do órgão competente, superveniência da incapacidade legal, técnica, financeira ou econômica para execução dos serviços da concessão ou permissão, não ter corrigido dentro do prazo estipulado as irregularidades motivadoras da suspensão anteriormente imposta e não cumprir as exigências e prazos estipulados até o licenciamento definitivo da estação.  

É inegável a possibilidade de aplicação da sanção de cancelamento da concessão em casos de abusos da liberdade de radiodifusão. Contudo, é preciso olhar a temática com muito cuidado, a fim de serem evitados excessos do poder estatal. Observe-se que o referido diploma foi expedido no contexto do regime autoritário, carecendo muitos de seus dispositivos de validade em face da Constituição de 1988 que reinaugurou o Estado Democrático de Direito e protegeu amplamente a liberdade de comunicação social. Infelizmente, não há aqui espaço para o desenvolvimento da temática. 

Nesse sentido, a renovação do licenciamento deve ser compreendida em termos republicanos de modo a acompanhar o processo de atualização tecnológico e publicístico do setor de radiodifusão. Deve-se evitar o perigo de cristalização do status quo do campo da comunicação social,  o que atua como entrave ao surgimento de novos atores comunicativos e a conseqüente atribuições de privilégios ilegítimos aos operadores existentes.

* Ericson Meister Scorsim é doutor em Direito pela USP. ericson@expresso.com.br