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Fusão Oi/BrT: mudança de paradigmas

No mundo dos negócios, onde as empresas são conduzidas para se tornarem parte indispensável do mercado onde atuam, portanto supridoras dos desejos e aspirações das pessoas que atendem, a dinâmica das transformações é permanente. No caso da eventual compra da Brasil Telecom pela Oi, muito mais do que o resultado dessa transformação, sob o ponto de vista das empresas, o que se precisa avaliar é o quanto essa transformação atende aos interesses da sociedade.

No que diz respeito ao arcabouço regulatório que rege as telecomunicações do Brasil a citada operação representa uma possibilidade que é recepcionada pelo modelo do setor, que foi concebido de forma flexível – juristas renomados costumam se referir à Lei Geral de Telecomunicações, como uma Lei Quadro, portanto como uma peça jurídica dotada de flexibilidade para atender às transformações de cenários – sendo,portanto, passível de incorporar novas realidades decorrentes das mutações tecnológicas, empresariais e de impacto na sociedade, típicas de um setor tão dinâmico quanto as telecomunicações.

No caso do Plano Geral de Outorgas, que estabelece as áreas de atuação das concessionárias de telefonia fixa, a previsão legal é de que a Anatel pode admitir, após cinco anos da privatização, a transferência de controle entre empresas atuantes em regiões distintas das determinadas pelo PGO, se entender que isso já não é mais necessário para o cumprimento do Plano. A agência não tem, no entanto, poder para criar novas regras, o que traz o risco de um vácuo regulatório que pode provocar um processo indesejado de monopolização do mercado. Para evitar isso, é fundamental que o Presidente da República, no exercício de sua competência legal indelegável, institua um novo PGO, mais adequado à consecução das políticas públicas por ele definidas.

A verdade é que vivemos hoje um momento completamente diferente em relação ao cenário da época das privatizações, em 1998. Em primeiro lugar, a evolução tecnológica mudou conceitos dos serviços, modificou a lógica da competição, e, como conseqüência, ampliou as opções para os consumidores. A convergência de redes e serviços e a dinâmica do mercado exigem explicitação de regras, como, por exemplo, a que permite que grupos empresariais possam controlar empresas atuantes em áreas geográficas distintas.

Por conta disso, o mundo inteiro vive um intenso processo de consolidação de empresas de telecomunicação que se ajustam às demandas da sociedade e à lógica dos mercados, o que evidencia a necessidade de refletirmos sobre seu impacto no mercado brasileiro. O exemplo mais relevante é o dos Estados Unidos, umas das principais fontes de inspiração dos modelos dos setores de telecomunicações em todo o mundo. Ali, as chamadas 'Babybells', sete empresas que dividiam o país por áreas geográficas, em 1996, se consolidaram em três grandes grupos com atuação, na maioria dos serviços, de âmbito nacional. Ficou claro, no caso americano, que a divisão artificial do mercado – muito maior que o mercado brasileiro – levou a um processo natural de consolidação.

No Brasil, a divisão do país em três áreas geográficas fez muito sentido no momento da privatização, principalmente para resgatar a gigantesca dívida representada pela enorme demanda reprimida, à época, e garantir o amplo atendimento da sociedade, com o estabelecimento de metas de universalização do serviço telefônico fixo. Essa etapa, claramente já foi ultrapassada e esse fato, por si só, já é determinante para suscitar uma reflexão mais atualizada do modelo.

O ponto sobre o qual temos que nos concentrar não é, portanto, a questão da modificação do modelo de mercado. Sua alteração é possível, prevista na legislação e determinante para adequar o marco regulatório brasileiro às novas realidades do mercado de telecomunicações no país. O que precisamos discutir, na verdade, são as diretrizes que irão orientar essa mudança e os benefícios que pretendemos auferir para a sociedade.

Acredito que o desenvolvimento de uma empresa de capital nacional, com capacidade de competir internacionalmente, pode ser um fato relevante para a sociedade brasileira. Para começar, o resultado de uma eventual fusão entre Oi e Brasil Telecom criaria uma companhia mais forte, capaz de fazer frente a uma nova série de compromissos, definida pelas novas regras, em relação ao desenvolvimento regional e à oferta de serviços em áreas mais carentes. Além disso, os ganhos de sinergia e de redução de custos da operação, inclusive para captações internacionais, poderiam levar a preços e tarifas menores, com a repartição de seus benefícios para a sociedade como um todo.

Como decorrência dos compromissos que viessem a ser estabelecidos, a consolidação de um grupo local – com capacidade para atuar no mercado brasileiro, cadavez mais competitivo, e para se expandir para outros mercados, com destaque para os países vizinhos – poderia também fortalecer a competição interna e garantir a presença brasileira em um mundo cada dia mais dependente de telecomunicações.

Uma iniciativa do Poder Executivo no sentido de adequar o modelo regulatório das telecomunicações pode, portanto, e deve ser estimulada, quando responde às demandas do país. O governo tem todos os instrumentos para conduzir essa adequação, explicitando as razões e estabelecendo as diretrizes que irão orientar o processo de mudança. O que não podemos é deixar de acreditar que somos capazes de transformar em realidade as nossas utopias, e perdermos oportunidades de, num setor de alta tecnologia e imenso dinamismo e utilizando as regras fixadas na legislação, promover modificações que venham ao encontro do interesse nacional.

* Renato Navarro Guerreiro é consultor em telecomunicações e ex-presidente da Anatel.

Direito autoral: aquele abraço como única moeda

A recente polêmica entre o ministro Gilberto Gil e seu parceiro e amigo Caetano Veloso em torno da proteção dos direitos de propriedade dos criadores artísticos vai muito além dos interesses imediatos dos que vivem da produção cultural. Caetano acusou Gil de estar criando um ambiente de "vale-tudo", em que os interesses dos artistas seriam seriamente feridos com a renúncia à proteção. O compositor Fernando Brant, hoje presidente da União Brasileira de Compositores, manifestou-se abertamente contra o Creative Commons, iniciativa para desenvolver uma série de licenças que permitem aos indivíduos que produzem informação, cultura e conhecimento definir o que os outros podem fazer com seus trabalhos.  

É óbvio que Caetano e Brant não representam o ponto de vista conservador de defesa da propriedade e dos interesses das grandes gravadoras contra uma suposta posição irresponsável de Gil, já assentado em reputação internacional e, por isso, alheio aos direitos autorais. Tal polaridade não faz jus à inteligência desses gênios da raça. O que está em jogo no debate é aquilo que o último livro de Yochai Benkler, professor da Entrepreneurial Legal Studies da Harvard Law School, considera a mais importante força de mudança das sociedades contemporâneas: a nova economia da informação em rede. Parodiando Adam Smith, Benkler escreveu "The Wealth of Networks", publicado pela Yale University Press e disponível na internet por licença da Creative Commons. 

O trabalho de Benkler não consiste em propor um irrealista desprendimento material aos produtores de informação, cultura e conhecimento, como se, com a adesão ao Creative Commons, pudessem viver do ar azul do céu. Seu ponto de partida é que bens culturais são diferentes daquilo que caracteriza o conjunto da produção social. Conforme ensina a microeconomia, bens culturais são não rivais, isto é, seu consumo por alguém em nada prejudica o consumo simultâneo ou posterior por outra pessoa. Maçãs e laranjas são bens rivais. Depois de eu consumir uma laranja, mais recursos terão de ser alocados à sua produção para atender a um novo consumidor. Com a informação, a cultura e o conhecimento, não. Por isso, são fortes candidatos à produção fora das leis do mercado. 

A política de proteção de bens não rivais só poderia ser justificada por duas razões. Em primeiro lugar, para garantir os direitos que vão permitir a difusão da cultura por parte de empresas, compensando os investimentos em máquinas para imprimir jornais, antenas de televisão e estúdios de cinema. Sem pagamento, não responderão à necessidade de difundir a cultura, o que justifica, socialmente, os direitos autorais. Em segundo lugar, a proteção garantiria aos autores que possam viver de sua produção intelectual, sem o que a sociedade sairia prejudicada, pela ausência de suas obras. 

Os computadores e a internet fazem parte de um conjunto de mudanças institucionais e tecnológicas que jogam por terra essas duas justificações. Os padrões que dominaram a produção cultural no século XX e se materializaram no poder de Hollywood, das grandes redes de gravadoras e de telecomunicações respondiam a uma lógica de fabricar relativamente poucos produtos e ganhar de maneira extraordinária com sua distribuição massiva. Dos 3 mil discos editados na França em 2001, apenas 30 figuram entre os mais tocados nas emissoras de rádio e 10 responderam por 80% das vendas. Isso quer dizer que a difusão cultural promovida pela economia industrial da informação é extremamente restrita e pouco diversificada, já que se trata de maximizar alguns poucos produtos, com base em sua massificação. 

Quanto à proteção dos direitos dos autores, ela tem uma contrapartida que foi apontada por Josh Lerner numa pesquisa sobre mudanças nos direitos de propriedade em 60 países ao longo de 150 anos. Os resultados são desconcertantes para os adeptos da idéia de que sem a proteção ao direito de autor não há inovação: a proteção por patentes não aumenta o nível de inovação dos países, por duas razões básicas. A primeira está no chamado efeito "sobre os ombros de gigante" e se refere à célebre tirada de Newton, segundo a qual não poderia ter escrito sua teoria se não estivesse apoiado em Copérnico e Galileu. A segunda refere-se à não-rivalidade: os custos do acesso à informação protegida são freqüentemente maiores do que os benefícios com seu uso. Portanto, do ponto de vista social, restringir o acesso à informação, ao conhecimento e à cultura por meio de direitos autorais ameaça o vigor dos processos inovadores. 

É aqui que Benkler mostra que seu trabalho não consiste em propor um modelo, mas em constatar algo que já está francamente em processo de construção. O surgimento da internet fortaleceu um ambiente no qual emergem formas de ação coletiva que não se baseiam nem no sistema de preços nem na coordenação típica das firmas ou dos grupos de firmas. A internet oferece uma plataforma de comunicação que fortalece a ação em rede dos indivíduos. 

Mas, se é assim, como sobrevivem os criadores de cultura e conhecimento neste mundo em que a produção partilhada, avaliada e certificada pelos pares, é cada vez mais importante, inclusive na estratégia de grandes grupos econômicos como a IBM? A partilha dos direitos do autor e sua permissão de uso (como, por exemplo, na prática do "copyleft") não vão conduzir ao aniquilamento da energia criativa que se localiza em alguns indivíduos de maneira especial? Benkler mostra como a economia da informação em rede fortalece a mistura entre relações mercantis e não mercantis: o produtor cultural que estimula a venda livre de suas obras em CDs (como no caso, por exemplo, do tecnobrega paraense) vai ampliar suas chances de ganho em shows e festas ou em conferências ou ainda com publicidade. 

O livro de Benkler rompe com a idéia, tão comum nos dias de hoje, de que a vida cívica contemporânea está afundando com a mercantilização do mundo, a corrupção na política e a crise na representação democrática. Ele constata a emergência de uma nova esfera pública, fora do mercado e das hierarquias. O que escapa aos objetivos de Benkler, mas vai na mesma direção que ele aponta, são os resultados mais recentes dos trabalhos inspirados na nova sociologia econômica que mostram a importância crucial das redes sociais nos mais variados domínios da vida econômica. 

* Ricardo Abramovay é professor titular do departamento de economia da FEA e do Programa de Ciência Ambiental (PROCAM) da USP