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TV Digital: bem-vindo à televisão secreta

No dia 2 de dezembro, você está convidado para uma festa exclusivíssima. A comida será ótima, a bebida maravilhosa, a música sublime. O ambiente será o mais moderno e luxuoso, um espanto da alta tecnologia. Mas há um detalhe que talvez faça murchar o suflê: não haverá nenhum convidado na festa, apenas os anfitriões. Os convidados – e você entre eles – vão demorar meses para chegar. E enquanto não chegarem, os anfitriões vão fazer de conta que está tudo bem e vão dançar sozinhos, beber sozinhos, empanturrar-se sozinhos. Não é o máximo da exclusividade?

Bem-vindo à festa da TV Digital. A televisão da qual todo mundo fala e todo mundo lê, mas que raríssimos viram, vêem ou verão tão cedo. A televisão que chega para revolucionar o modo como se assiste TV, mas que vem pelas mãos dos velhos oligarcas de sempre da radiodifusão, de seus valetes no parlamento e no governo, e de seus camaradas da indústria eletrônica – ou seja, dos que não querem revolucionar coisa alguma. Tanto falaram, tanto fizeram, tanto defenderam o seu projeto e combateram os que se opunham a ele, e aí está a sua obra: uma televisão secreta, que será lançada sem que ninguém possa vê-la.

Fantasma da imagem

Previa-se para a noite de 2 de dezembro um imponente show de televisão, realizado em conjunto pelas grandes redes, para apresentar as virtudes da TV Digital e celebrar as grandes mudanças que ela trará ao entretenimento, à informação e à cultura. Desejava-se algo grandioso, que sinalizasse a pujança da televisão aberta brasileira e afirmasse seu poderio, diante das ameaças que enfrenta neste início de século, com o avanço da internet, da IPTV, das mídias portáteis com suporte para imagem.

Mas deu xabu no foguetório pretendido. O que irá ao ar será apenas um vídeo de 5 minutos, provavelmente transmitido em cadeia por todos os canais, anunciando o advento da nova tecnologia televisiva. Vídeo que será visto por 99% dos telespectadores em seus aparelhos analógicos, sem qualquer chance de perceberem as vantagens a digitalização lhes traz.

Não há qualquer decodificador de sinais digitais para aparelhos analógicos – o chamado set top box, ou caixa conversora – à venda nas boas casas do ramo. Nem nas más. O aparelho que permitiria à patuléia captar os sinais digitais em seu televisor trocado na última Copa do Mundo ainda é objeto de uma queda-de-braço entre o governo e a indústria eletrônica. Esta quer lançá-lo com preço superior a 800 reais, aquele insiste que pode fazê-lo a 250 reais. Ela quer redução de impostos, incentivos e beijinhos na orelha para atendê-lo, ele diz que não, nem pensar, é ganância demais.

Enquanto se digladiam, o tempo passa e a tigrada aguarda, arrumando o bom-bril na antena para espantar o fantasma da imagem. Só os ricos estão sossegados, com suas caríssimas telas de plasma ready for HDTV.

Resultado insólito

Os próprios radiodifusores já estão se referindo à TVD como o "mico digital". Sentem-se desconfortáveis em embalar o símio que pariram. E, de fato, não é para menos. A responsabilidade pelo fiasco que se avizinha, e que ficará mais evidente nos próximos dias, é inteiramente deles. Foram ingentes os seus esforços, nos últimos anos, para controlar com mão-de-ferro o processo de implantação da TV Digital, obstruindo todas as divergências e recusando qualquer debate mais aprofundado, para preservar seus interesses de mercado. Construíram o modelo de TVD que queriam, portanto não podem reclamar.

Recordemos que eles lutaram pelo padrão técnico japonês, indiscutivelmente o melhor avaliado nos testes para as condições geográficas do país, mas restrito ao mercado do Japão e, portanto, mais caro que os padrões americano e europeu, muito mais disseminados. Recordemos que essa opção se deu, em larga medida, porque o padrão japonês permite a transmissão simultânea para receptores comuns e para dispositivos portáteis, como o celular, dispensando a intermediação das empresas de telecomunicações – o que significava barrar o seu acesso ao mercado da TV aberta.

Recordemos também que a indústria eletrônica implantada no mercado brasileiro desejava, majoritariamente, o padrão europeu. Recordemos ainda que o governo flertou com a idéia de desenvolver um sistema exclusivamente brasileiro, repetindo o erro da tecnologia de televisão colorida PAL-M, e que imaginou uma parceria com os chineses, antes de render-se aos encantos do eletrosushi.

Recordemos especialmente que esse mesmo governo começou a debater a TV Digital de forma ampla e democrática, constituindo um conselho consultivo com representantes de múltiplos setores sociais, mas depois esvaziou esse processo e entregou-o à radiodifusão e à indústria eletrônica, excluindo a sociedade do Fórum da TV Digital.

Esses fatores, combinados, produzem o insólito resultado: uma tecnologia que chega ao mercado sem disponibilidade de aparelhos para ser consumida. Sem contar o fato de que, das muitas funcionalidades que ela agrega à televisão, terá inicialmente apenas uma, a transmissão em alta definição de imagem e som (imagem duas vezes mais nítida que a atual, som de CD).

Vá ao cinema

Ótimo, dirá você, quero uma TV "que seja um cinema". Mas não lhe explicaram direito que a alta definição só existe para os televisores nascidos digitais, que ela não funciona no seu televisor analógico, mesmo que você compre a caixa conversora de 800 reais – ou mais – que a indústria eletrônica quer lhe impingir. Muito menos lhe disseram que a alta definição só é perceptível, só demonstra sua imensa vantagem, nas telas grandes, superiores a 27 polegadas. Até essa medida, a imagem e o som melhoram bastante, mas não a ponto do telespectador notar a brutal diferença obtida nas telas maiores.

Considerando que a esmagadora maioria dos brasileiros tem televisores de 16 a 20 polegadas, 40% deles com antena interna (as duas varetas onde se pendura o bom-bril), a caixa conversora servirá apenas para eliminar os fantasmas, chuviscos e chiados, que inexistem na TV Digital. É uma vantagem e tanto, mas quem pagará o preço de dois ou três televisores analógicos atuais para tê-la? E se não há dinheiro para isso, quantos poderão investir nas telas de plasma "prontas para HDTV" para ver novela em alta definição? Aliás, quem precisa de alta definição para ver novela?

Quer mais perguntas? Onde estão os celulares capazes de sintonizar TV Digital? Onde estão os televisores para carros, barcos, aviões? Quando vai começar a televisão móvel, a outra vantagem que – dizem eles – a nova tecnologia nos trará, visto que a interatividade ficará para as calendas gregas?

Seja bem-vindo, pois, à gloriosa TV Digital. Mas na noite do dia 2, aproveitando que é domingo, vá ao cinema. Lá você encontrará a qualidade que lhe prometeram, e que vai demorar para chegar à sua casa.

O limite à propriedade cruzada na TV por assinatura

Tramita na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio da Câmara dos Deputados o substitutivo do deputado Wellington Fagundes (PR-MT) que procura unificar a legislação de TV paga no Brasil. Uma vez aprovado, o substitutivo seguirá para a Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), onde terá novo relator, provavelmente o deputado Jorge Bittar (PT-RJ).

O projeto é surpreendentemente interessante, levando-se em conta os interesses em jogo e a origem partidária do relator. Mas, ainda existem várias questões a serem melhoradas, como imprecisões no texto e a quase total inexistência de regras para conteúdo nacional, produção regional e de caráter independente.

Mas, a grande polêmica do substitutivo está mesmo no parágrafo primeiro do artigo 9°. De uma só vez, o relator conseguiu comprar briga com as operadoras de telecomunicações (Oi, Embratel, Brasil Telecom e Telefonica) e de TV paga (entre elas a Globo). Diz o parágrafo:

"As empresas de produção e programação de conteúdo audiovisual eletrônico não poderão deter o controle acionário de empresas prestadoras de serviços de telecomunicações, independentemente das plataformas das mesmas, assim como as empresas exploradoras de serviços de telecomunicações não poderão, direta ou indiretamente, adquirir direitos de exploração de imagens de eventos nacionais de qualquer natureza, ou participar de empresa de produção de conteúdo nacional e de programação, onde exerçam qualquer influência na administração, independentemente das plataformas a que se destinem os referidos conteúdos."

O texto poderia ser mais explícito na sua redação ("não poderão deter o controle acionário de empresas prestadoras de serviços de telecomunicações, inclusive de distribuição de comunicação audiovisual eletrônica por assinatura, independentemente das plataformas das mesmas"), mas, na prática, o que ele está propondo é uma inédita regra de limite a propriedade cruzada. Ainda que estejam sendo abrandadas pelos ventos do neo-liberalismo, tais regras existem em quase todos os países ditos desenvolvidos, inclusive nos Estados Unidos, e visam impedir que uma mesma empresa seja dona de jornais, revistas, rádios AM e FM, TVs abertas, TVs pagas, etc. No Brasil, até hoje, não existe nenhum tipo de limite para a concentração de propriedade (exceto o impedimento para que uma pessoa tenha mais de cinco canais de televisão aberta).

No caso específico da TV paga, o oligopólio exercido pela Globo tem ares dramáticos e ajuda a explicar o alto preço e a consequente baixa penetração do serviço (menos de 10% da população brasileira vive em casas onde há pelo menos um ponto de TV paga). A Globo é dona integral da maior "programadora" brasileira, a GloboSat, que tem em seu portfólio canais como GloboNews, GNT, MultiShow, SportTV1, SportTV2, USA, Telecines (5), Canal Brasil, Premiere Futebol Clube e Sexy Hot. A mesma Globo é igualmente dona integral da maior "empacotadora", a NET Brasil, que tem como clientes a NET Serviços (44 cidades, entre elas São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte, Brasília, Curitiba e Porto Alegre), a Sky Brasil e várias outras franqueadas, como a TV Cidade (presente em Niterói, São Gonçalo, Volta Redonda, Aracaju e Juiz de Fora, entre outras cidades).

Mas, a Globo também possui cerca de 28% da Sky Brasil ("distribuidora" de TV paga via satélite) e 10% diretos e 26% indiretos da NET Serviços (maior "distribuidora" de TV paga via cabo do país). Com isso, a Globo garante presença nas quatro atividades que integram a cadeia produtiva da TV paga: produção, programação, empacotamento e distribuição.

O substitutivo do deputado Wellington Fagundes obriga a Globo a vender suas ações na NET Serviços e na Sky Brasil, deixando de operar na distribuição da TV paga. Em contrapartida, as operadoras de telecomunicações não poderiam comprar direitos de transmissão de eventos (como shows e campeonatos esportivos), produzir conteúdo audiovisual e programar canais de TV paga. Na prática, contudo, a proposta afeta pouco as teles, que, até onde se sabe, estão interessadas apenas em comprar ou constituir empacotadoras e distribuidoras de TV paga (como os casos da Embratel-Net Serviços, Telefonica-TVA, Telefonica TV Digital e Oi-Way TV) e não pretendem produzir e programar conteúdo audiovisual.

A proposta do substitutivo também poderia ser mais abrangente. O ideal seria separar totalmente as atividades de produção e programação, de um lado, das atividades de empacotamento e distribuição, de outro lado. Assim, a Globo poderia continuar produzindo conteúdo audiovisual e programando os canais da GloboSat. Mas, não poderia ser acionista da empacotadora NET Brasil e das distribuidoras NET Serviços e Sky Brasil. Com isso, a Globo deixaria de poder usar a NET Brasil para obrigar a transmissão de todos os canais produzidos pela GloboSat e para impedir a transmissão de canais brasileiros que lhe façam concorrência. Teria que haver uma verdadeira negociação comercial entre a programadora GloboSat e a empacotadora NET Brasil.

É fato que a crise porque passou a Globo no início desta década a obrigou a abandonar sua posição majoritária na Sky Brasil (hoje propriedade do grupo DirecTV) e na NET Serviços (que, apesar das restriçoes legais, tem a maioria das ações nas mãos da Embratel-Telmex). Em ambos os casos, a Globo se tornou sócia minoritária, embora ainda participe do bloco de controle. Mesmo assim, uma proposta legislativa que obrigue a Globo a ter que sair de uma das atividades da TV paga (a distribuição) já está fadada a ser alvo de intensa polêmica e, principalmente, de pressão do poderoso lobby dos deputados que servem aos interesses da Vênus Prateada do Jardim Botânico.   

GLOSSÁRIO

* Programação é o ato de reunir o conteúdo audiovisual na forma de uma grade de horários, constituindo o que chamamos de canal de televisão;
* Empacotamento é a atividade de reunir vários canais de televisão paa serem ofertados aos assinantes;
* Distribuição é a operação da rede (cabo, microondas ou satélite) que transmite a TV paga.

A banda larga é muito mais importante que a TV Digital

O governo federal decidirá até o dia 12 de dezembro sobre uma proposta do Ministério das Comunicações propondo a instalação de, pelo menos, um terminal de banda larga em todos os 5.564 municípios em substituição ao plano, ainda não executado, de criação de 8.462 Postos de Serviço de Telecomunicações (PST), em todo o país.

É mais uma mudança de rumo nesta complicada questão da infraestrutura de telecomunicações no país, um terreno onde a opinião pública e o consumidor são tradicionalmente mantidos longe das deliberações.

O governo, as empresas de telecomunicação e a imprensa têm fortes interesses em jogo nesta questão, razão pela qual preferem trata-la dentro de quatro paredes, e apresentar fatos consumados aos eleitores.

Ainda não se sabe o que está por trás da proposta do ministério das Comunicações, uma área do governo onde o lobby corporativo é violento, mas silencioso. A proposta de mudança de estratégia dos PSTs para a banda larga é a melhor opção do ponto de vista de desenvolvimento econômico e social futuro, mas é preciso saber também o que as empresas de telecomunicações vão levar nesta jogada.

Há poucas dúvidas de que elas vão ganhar com a nova proposta do Ministro Helio Costa, porque se fossem perder, mesmo que pouca coisa, o lobby contra a medida já teria começado e com força.

O ministro pode estar tentando abrir uma nova frente de visibilidade pública depois que perdeu a guerra interna no governo pelo controle da nova rede nacional de emissoras estatais de televisão.

Independente do jogo político-corporativo em torno da banda larga, uma coisa é certa: a ampliação do sistema de banda larga é de importância estratégica para o país e sua relevância deveria ter ofuscado o debate sobre a televisão digital."

A banda larga é essencial para o ensino à distância, para a formação de clusters[1] corporativos, para a formação de comunidades online e para a disseminação da informação etc. Por ela também pode circular o sinal da televisão digital, que chegaria à casa dos usuários, como acontece com a TV a cabo.

Acontece que a TV digital é um negócio que interessa às redes de televisão instaladas no país, em especial à TV Globo, por isto a questão foi apresentada à opinião pública como muito mais importante do que a banda larga, num esforço das emissoras de atrair verbas públicas, evitando usar recursos próprios.

A criação de uma rede nacional de banda larga é estratégica porque viabiliza a inclusão de escolas, empresas e milhões de usuários domésticos, que se conectariam ao backbone (espinha dorsal) do sistema por meio de sistemas sem fio como o WiFi e WiMax, que podem ser instalados nas mesmas torres usadas para telefones celulares.

Dinheiro não é problema, porque o governo tem à sua disposição a bagatela de seis bilhões de reais que dormem na conta do FUST , um fundo criado em 2001 e que deveria ser usado para a universalização das comunicações telefonicas. As operadoras estão de olho grande nesta montanha de dinheiro que o governo pode agora usar para a banda larga.

Como as empresas de telecomunicações e as grandes redes de televisão são as maiores interessadas nesta questão, é inevitável que elas tratem de reduzir a discussão pública sobre o tema ao mínimo possível. Elas só abrirão o jogo quando seus interesses forem contrariados.

A transparência neste debate é, portanto, essencial para que a discussão sobre a rede nacional de banda larga realmente sirva para acelerar a inclusão digital, sem a qual nosso desenvolvimento futuro está comprometido, conforme vocês podem ler , no post anterior A Lógica da Inclusão.

Caso Júlio Lancellotti: o apedrejamento jornalístico

Agora é tarde. As pedras já foram lançadas contra Júlio Lancellotti. Aqueles que por algum motivo discordam de sua maneira de ver e atuar estão secretamente felizes. Ou não tão secretamente. Aqueles que praticam o jornalismo do escancaramento, com ou sem evidências, já cumpriram sua missão.

Hermano Freitas, por exemplo, utilizando locuções verbais para exprimir fatos acontecidos (ou não?) em época passada, escreveu: "ex-interno da Febem, Batista teria conhecido e iniciado um relacionamento amoroso com o padre na instituição, onde foi internado aos 16 anos por roubo." (Folha Online, 27/10/2007). A expressão "relacionamento amoroso" é o que interessa, sobretudo num momento em que casos registrados de pedofilia dentro da Igreja católica criaram e difundiram a sensação de que o mais provável é que se repitam sempre e em todo lugar.

O recurso das aspas funciona como pretexto para reproduzir a fala irresponsável de quem quer que seja sobre o que for. Na mesma matéria de Hermano Freitas, lemos, com as aspas indicando (heróica objetividade…) as palavras de um outro: "‘Eles chegaram a ter relações sexuais dentro da igreja’, disse o advogado de Batista. […] O advogado afirma que o valor dos bens recebidos por seu cliente foi de ‘quase 700 mil reais’ e que o relacionamento entre o padre e ex-detento acabou após Batista ter se casado, em outubro de 2006. Ainda de acordo com ele, o sacerdote mantinha relações sexuais com outros meninos."

Michael Jackson da Mooca

Diogo Mainardi, na Revista Veja (ed. 2031), adota outro expediente. O da pseudo-insinuação. Chamar o padre de "Michael Jackson da Mooca" é colocá-lo no banco dos réus por antecipação, e reduzir a figura do sacerdote à imagem de um astro pop tupiniquim.

Na Record, o programa "Fala que eu te escuto" emitiu seu veredicto. O problema de Júlio Lancellotti é o celibato. Se não houvesse celibato obrigatório para os padres, esses casos deixariam de existir. Não é bem uma pergunta, ou uma enquete… É condenação mesmo.

No dia 3 de novembro, divulgou-se na mídia o "desabafo público" de Padre Lancellotti, depois das pedradas: "aquelas coisas todas, que foram ditas e colocadas nas manchetes dos jornais e dos noticiários, não aconteceram."

A mídia não sente culpa. Ninguém admitirá que atirou a primeira, a segunda, todas as pedras.

E sempre há uma chance de, antes do Natal, aplicar o golpe de misericórdia.

Gabriel Perissé é doutor em Educação e escritor.

Código de Ética dos Jornalistas: revisão bem-vinda, mas insuficiente

A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) concluiu em agosto passado o processo de revisão do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. Durante seu Congresso Nacional Extraordinário, realizado em Vitória (ES), delegados de 23 estados discutiram e formalizaram uma versão final do documento, que substitui um código de vinte e um anos.

A consulta à categoria, no entanto, começou em 2004, quando os sindicatos que compõem a Fenaj passaram a discutir emendas ao código de ética. Num segundo momento, uma comissão de especialistas sistematizou as sugestões encaminhadas e fez consulta pública no site da federação. Com as decisões do congresso nacional, os jornalistas chegaram a uma quarta versão de um código de ética de origem sindical. O primeiro surgiu em 1949, mas foi revisado em 1968. Em 1986, veio à tona o documento que serviu de base para a atuação dos jornalistas no período de redemocratização brasileira.

Como os avanços no jornalismo e na tecnologia foram muitos nessas últimas duas décadas, era mesmo necessário revisar o código, modernizando alguns trechos e incluindo cláusulas e cuidados sobressalentes. Neste sentido, a adoção de um novo código de ética para os jornalistas brasileiros é muito bem-vinda, mas não resolve toda a problemática da ética no país. Por duas razões fundamentais: a legislação profissional restringe as sanções que qualquer código deontológico possa prescrever, e um código – para mostrar eficácia – precisa contar com instrumentos de implementação efetiva.

O primeiro furo

Mesmo que bem intencionadas, as mudanças no Código de Ética dos jornalistas não puderam ir muito além no âmbito das sanções aos profissionais que incorrem em falha ética. Diferente de outras profissões, os jornalistas – mesmo que causem o pior dos prejuízos morais, por exemplo – não correm o risco de perder seus registros profissionais por agirem de forma antiética. As sanções chegam, no máximo, a uma advertência pública ao profissional faltoso. Se comparado a outros casos, como o dos médicos, engenheiros e advogados – que podem ser impedidos de atuarem profissionalmente –, o código dos jornalistas dispõe de poder limitado.

Para que isso se modificasse seria necessário alterar a legislação e passar do Ministério do Trabalho para a Fenaj a prerrogativa de conceder os registros profissionais dos jornalistas. Com isso, aí sim, a Fenaj poderia cassar os documentos de quem transgride o código de ética.

Como a reforma feita é um processo limitado, claro que essa fragilidade – sanções leves – não é exclusiva desta versão do código deontológico dos jornalistas. Mas esse detalhe reduz seu raio de alcance e sua eficácia punitiva.

Uma segunda preocupação

Deve-se elogiar a forma como a Fenaj conduziu o processo da revisão do código, pois os trâmites exaustivos de discussão apenas dão mais legitimidade e representatividade ao documento. Esses cuidados ampliam o trânsito do documento, mas não garantem o seu efetivo funcionamento.

O código deve ser bem elaborado, bem disseminado, aceito e assimilado pela categoria, mas é preciso ainda que haja formas de operacionalizá-lo. A mais importante é a comissão de ética. Tanto as dos sindicatos quanto a da Fenaj, de âmbito nacional. São essas comissões que acolhem as denúncias de procedimentos duvidosos, ouvem as partes, e definem sanções ou o arquivamento do processo. Por serem estratégicas, as comissões de ética precisam ser preservadas e fortalecidas, disporem de condições mínimas para funcionamento. Não só para trabalharem em possíveis processos abertos, mas também para atuarem como disseminadores de uma cultura jornalística responsável. As comissões, neste sentido, não precisam ocupar apenas a posição de órgãos repressores ou censores, mas também promotores de valores do jornalismo.

Por isso, não basta apenas a reforma do código. É preciso que as entidades classistas entendam que o fortalecimento das comissões é essencial para que o novo código se institucionalize junto aos profissionais. Sem esse cuidado, um código deontológico – por mais bem intencionado que seja – não passa de letra morta.

Mas o que muda?

À primeira vista, comparados o código atual e o de 1986, pode-se notar que a versão que saiu de Vitória é mais enxuta, já que o documento passou de 27 para 19 artigos. Vã ilusão. Na verdade, o novo código é mais amplo que seu antecessor e combina conteúdos já listados anteriormente, fundindo artigos, o que dá a impressão de uma peça mais sintética. O código aprovado em Vitória contempla as indicações históricas da deontologia jornalística no Brasil e adiciona ao menos duas importantes novidades: a cláusula de consciência e preocupações mais nítidas com métodos heterodoxos de obtenção da informação.

No artigo 13, por exemplo, o código de ética faculta ao jornalista "se recusar a executar quaisquer tarefas em desacordo com os princípios deste Código de Ética ou que agridam as suas convicções". A seguir, indica que tal direito não pode ser usado como justificativa "para que o jornalista deixe de ouvir pessoas com opiniões divergentes das suas". A chamada cláusula de consciência é o maior avanço do novo código, e ela permite que o jornalista não violente suas convicções em nome dos interesses da empresa para a qual trabalha.

Polêmica, a novidade já é um direito conquistado em países da Europa, por exemplo. No contexto nacional, a cláusula de consciência surge na evolução dos debates sobre o assédio moral no mundo do trabalho. Entre repórteres e editores, não é prática rara o hábito de pautar coberturas que não só contrariam as convicções individuais desses trabalhadores, mas também desviam-se das definições do bom jornalismo. Por isso, para combater os "jabás" ou as "pautas 500", a cláusula de consciência vem como fator positivo. Entretanto, sabe-se que o mercado e o empresariado do setor são bastante refratários a tais posicionamentos, condição que deve dificultar a implementação desse direito pra valer. É algo a se conferir nos próximos anos…

A segunda grande novidade no novo código de ética se ocupa dos avanços metodológicos e tecnológicos no jornalismo. No artigo 11, o jornalista é proibido de divulgar informações "obtidas de maneira inadequada, por exemplo, com o uso de identidades falsas, câmeras escondidas ou microfones ocultos, salvo em casos de incontestável interesse público e quando esgotadas todas as outras possibilidades de apuração". A proibição – no mesmo artigo – é flexibilizada na medida em que admite o uso daqueles meios quando impera o interesse público ou quando já se tentou de tudo. Ok, ok, mas é necessário criar regras mais específicas para essas situações? Quem deve arbitrar isso? As empresas, em normativas internas? As entidades de classe, como a Fenaj?

Questionamentos como esses devem se multiplicar nos próximos anos, com a vigência do novo código e com a sua assimilação pela categoria, a começar pelas gerações em formação e as que desembarcam diariamente no mercado de trabalho. Nada mal, já que o código de ética pode cumprir mais uma importante função profissional: motivar que os jornalistas reflitam e discutam seus limites de atuação e seu próprio campo de trabalho.

* Rogério Christofoletti é jornalista, professor da Universidade do Vale do Itajaí (Univale) e coordenador do Monitor de Mídia, integrante da Rede Nacional de Observatórios de Imprensa (Renoi)