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Sistemas anti-cópia: impondo limites aos impérios de mídia

As dúvidas no Brasil sobre o conversor de TV digital fazem lembrar uma rara decisão judicial nos EUA, na era Bush, a favor dos consumidores e contrária aos poderosos impérios de mídia. Foi em 2005. Um juiz do tribunal de apelações da capital (Distrito de Columbia) foi enfático ao advertir um advogado da FCC, a reguladora federal da área de comunicações: "Ei, vocês passaram do limite!"

O fato era parte de um contexto mais amplo – o debate no país em torno das sucessivas medidas e decisões da FCC no governo Bush, quando foi presidida (até 2005) por Michael Powell, filho do secretário Colin Powell, que à época acabara de deixar o Departamento de Estado. Para os consumidores, a FCC limitava-se então a fazer a vontade dos impérios de mídia, em vez de cumprir sua finalidade reguladora.

O sermão do juiz Harry T. Edwards foi revelador: as empresas da área de mídia e entretenimento tinham pressionado a FCC a obrigar a indústria a mudar especificações de aparelhos (em especial de TV) a fim de adicionar dispositivo antipirataria destinado a impedir a gravação de filmes ou programas. Isso aumentava o custo para o consumidor, cujos direitos estavam sendo diminuídos para os impérios de mídia lucrarem mais com DVDs, fitas, CDs, etc.

Pirataria é problema deles

No Brasil é incrível o espaço dado pela mídia à pirataria, tratada nos programas de notícias como se fosse problema do consumidor ou do governo e não resultado da incompetência dos impérios de mídia de proteger seus produtos. O que devem fazer os consumidores dos serviços dos impérios, inclusive internet, é questionar o poder desmedido com que influem nas agências reguladoras – no Brasil, nos EUA e em toda parte.

No governo Bush a FCC tentou impingir mudanças em regulamentos, indignando as organizações de defesa do consumidor e grupos de usuários da internet, pois a reguladora federal foi além de sua jurisdição, intrometendo-se até na fabricação e venda de aparelhos de TV, computadores e outros equipamentos. O juiz agiu em momento crucial, já que as corporações aproveitavam o momento da conversão para o sistema digital de alta definição.

Antes de Colin e Michael Powell assumirem cargos no governo, eram executivos – pai e filho – do maior dos impérios de mídia do mundo, o da Time-Warner, que ainda incluia a gigante America On Line (AOL), golpeada então por escândalos de fraude contábil Michael Powell teve de sair da presidência da FCC ante uma torrente de críticas, acusado de agir sistematicamente a favor dos interesses daqueles que devia fiscalizar.


"Isso não é da conta de vocês"

O que estava em causa no recurso judicial levado ao tribunal de apelações era a polêmica iniciativa da FCC (cujas decisões em geral tinham votos favoráveis dos membros republicanos e eram repudiadas pelos democratas, minoritários) de ditar à indústria como fabricar seus aparelhos de TV, computadores e outros equipamentos de recepção de sinais digitais, dizendo ainda como eles deviam ser usados.

"O negócio de vocês não é a venda de aparelho de TV. Isso não é da conta de vocês", disse o irritado juiz Edwards. A manifestação dele foi festejada por críticos do absurdo poder da mídia gigante – corporações que controlam praticamente tudo o que o americano vê, lê e ouve, como Time-Warner, Disney-ABC, News Corp (grupo Murdoch), Viacom-CBS, GE-NBC-Universal, Sony-Columbia.

O dispositivo antipirataria que os conglomerados de mídia queriam a todo custo enfiar nos aparehos de TV era o "broadcast flag" – "bandeira para transmissões", um chip com a missão de policiar a ação do usuário, impedindo-o de gravar o que fosse apresentado na TV. Para a Electronic Frontier Foundation (EFF), que defende os direitos de acesso livre à internet, tratava-se de uma grave ameaça.

Muitas ameaças à internet

"A Justiça está certa e foi direto ao ponto, ao questionar a autoridade da FCC nesse campo", declarou Wendy Seltzer, advogado da EFF. "As bandeiras de transmissão têm tanto a ver com a jurisdição da FCC como máquinas de lavar pratos. Estamos encorajados pela ação do tribunal". Seltzer também via grave ameaça à internet no esforço contra os cartões de sintonia de alta definição para os PCs.

A EFF e outros grupos fizeram uma lista das ameaças crescentes à liberdade na internet a fim de chamar atenção para o perigo representado por leis e regulamentos que a indústria de entretenimento busca impingir usando seu poder de "lobby" na FCC e no governo.

Eles acham que se criou através da reguladora perigosas ameaças ao desenvolvimento futuro de tecnologias e à criação de novos aparelhos.

Em outros países, inclusive na Europa Ocidental, reguladoras oficiais do setor, menos afinadas com os interesses das grandes corporações, não revelam o mesmo empenho em mudar aparelhos de TV e computadores para favorecer os lucros das corporações de mídia. Na Inglaterra, segundo a BBC, a plataforma terrestre digital Freeview e outros receptores vetavam a tal tecnologia de proteção contra cópias.

Pesquisa Latinobarómetro: mídia e poder na América Latina

Foram recentemente divulgados os resultados da pesquisa Latinobarómetro 2007 que é realizada há 12 anos pela Corporación Latinobarómetro, uma ONG chilena com sede em Santiago que pretende medir "as percepções dos latino-americanos a partir de sua realidade econômica e social". Este ano foram feitas 20.212 entrevistas, entre 7 de setembro e 9 de outubro, cobrindo uma amostra representativa da população de cada um dos 18 países da região (exceto Cuba), cerca de 527 milhões de habitantes.

Dos relatórios anuais, em geral a grande mídia divulga os resultados da avaliação comparada dos presidentes da região, os índices de apoio à democracia, à iniciativa privada e à intervenção do Estado na economia. Por exemplo: o índice de apoio à democracia caiu de 58% em 2006 para 54%, em 2007.

O Latinobarómetro 2007 incluiu também uma alentada avaliação sobre o inédito ciclo eleitoral que está acontecendo no continente: onze eleições presidenciais realizadas entre novembro de 2005 e dezembro de 2006, seguidas em 2007 pelas eleições da Guatemala e da Argentina e, em 2008, pelas eleições no Paraguai (abril) e na República Dominicana (maio). O que chama atenção, no entanto, é a estranha ausência de qualquer referência sobre o papel da mídia nas características identificadas como centrais em todos esses processos eleitorais.

Quem exerce o poder?

Já comentei o livro lançado em agosto passado pela Fundação Friedrich Ebert (FES), na Colômbia [Se nos rompió el amor – Elecciones y medios de comunicación, América Latina 2006, disponível na íntegra aqui], exatamente sobre o papel da mídia nessas mesmas onze eleições presidenciais realizadas entre 2005 e 2006. A principal conclusão dos estudos apresentados no livro é que, em seis dessas eleições, saíram vencedores os candidatos a presidente que enfrentaram a cobertura jornalística adversa majoritária da mídia em seus respectivos países – Bolívia, Chile, Brasil, Nicarágua, Equador e Venezuela.

Se o tema mereceu a organização de um livro financiado pela FES, reunindo o trabalho de quinze pesquisadores, é de se supor que seja relevante. Afinal, a mídia ocupa uma posição de centralidade nos processos políticos das democracias contemporâneas. Ou não ocupa?

O longo relatório "A Democracia na América Latina – Rumo a uma democracia de cidadãs e cidadãos", preparado sob a coordenação do ex-chanceler argentino Dante Caputo para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e publicado no final de 2004 (ver aqui), traz os resultados de uma preciosa pesquisa, realizada entre julho de 2002 e junho de 2003, com 231 líderes latino-americanos. Esse relatório não teve, pelo menos no Brasil, a divulgação que merecia.

Foram ouvidos "líderes políticos que detêm ou detiveram o poder em seu máximo nível institucional, em chefias partidárias, parlamentares, funcionários de alto escalão ou prefeitos; protagonistas sociais em um amplo espectro que inclui líderes sindicais, empresários, acadêmicos, jornalistas, religiosos e dirigentes de movimentos ou organizações sociais; e membros das Forças Armadas", entre eles 41 presidentes e vice-presidentes, no exercício do cargo ou anteriores. Em outras palavras, foi ouvida a elite econômica, política e intelectual da região.

Entre os obstáculos à consolidação democrática existentes na América Latina, a pesquisa do PNUD revela uma tensão entre os poderes institucionais e os poderes de fato. Os líderes consultados apontam, então, três poderes de facto que representam os riscos principais à consolidação democrática na região:

1. limitações internas decorrentes da proliferação de controles institucionais inadequados e da multiplicação de grupos de interesse que funcionam como poderosos lobbies, e externas oriundas do comportamento dos mercados internacionais, das avaliadoras de risco (de investimento) e dos organismos internacionais de crédito;

2. a ameaça do narcotráfico; e

3. os meios de comunicação.

Além disso, a primeira resposta à pergunta "quem exerce o poder na América Latina?" dada por 79,8% dos entrevistados foi "os grupos econômicos/empresários/o setor financeiro"; e a segunda resposta, oferecida por 64,9% dos entrevistados foi "os meios de comunicação".

Percepção dominante

Pergunto: não haveria, em muitos casos, superposição entre esses dois poderes de facto? Por exemplo: os grupos Televisa, no México, e Globo, no Brasil, não seriam ao mesmo tempo poderes econômicos e de mídia?

Além disso, o relatório afirma textualmente, com citações de políticos, jornalistas e sindicalistas:

"Os meios de comunicação são caracterizados como um controle sem controle, que cumpre funções que excedem o direito à informação. `Formam a opinião pública, decidem as pesquisas de opinião e, conseqüentemente, são os que mais têm influência na governabilidade´ (político). `Atuam como suprapoderes, […] passaram a ter um poder que excede o Executivo e os poderes legitimamente constituídos, […] substituíram totalmente os partidos políticos´ (político). A maioria dos jornalistas consultados vê o setor econômico-financeiro e os meios de comunicação como os principais grupos de poder. Os meios de comunicação têm a peculiaridade de operar como mecanismo de controle e/ou limitação às ações dos três poderes constitucionais e dos partidos políticos, seja quais forem os proprietários desses meios. `A verdadeira vigilância que se exerce é a da imprensa´ (jornalista). Além disso, reconhecem que atuam como uma corporação que define os temas da agenda pública e que até traça a agenda presidencial. Em geral, os consultados consideram problemática a relação entre os meios de comunicação e os políticos. `Aqui a classe política os teme. Porque podem fazer desmoronar uma figura pública a qualquer momento´ (sindicalista). `A forma através da qual se construíram as concessões e os interesses com os quais se teceu toda a estrutura dos meios de comunicação os converteram em um poder´ (político)."

Se esta é a percepção predominante entre a elite da região sobre a mídia e seu poder, uma avaliação do ciclo eleitoral que se desenrola na América Latina não deveria contemplar o seu papel no processo democrático?

A elite latino-americana, certamente, faria esse reparo ao Latinobarómetro 2007.

Democracia audiovisual e o terceiro setor

Com o processo de Reforma do Estado, houve a reformulação de sua organização e repasse de certas atividades para a execução por particulares. Nesse contexto, foram criadas as organizações sociais, "figuras" integrantes do denominado terceiro setor, na forma da Lei n.o 9.637/98.

Em razão disso, no âmbito federal, por exemplo, a Fundação Roquete Pinto (originariamente uma organização integrante da administração pública indireta), encarregada da operação do canal de televisão TVE, foi extinta, na forma da Lei n.o 9.637/98, sendo sucedida pela Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto – ACERP, esta qualificada como organização social, na forma do Decreto n.o 2.442/9, e que celebrou um contrato de gestão com a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. Nesse caso, o repasse dos recursos públicos está condicionado ao cumprimento das metas estabelecidas pelo poder central.

Ora, as organizações sociais não pertencem ao primeiro setor (Estado), nem ao segundo setor (mercado), mas elas encontram-se no terceiro setor (sociedade civil) e desempenham serviços qualificados como não-exclusivos do Estado, daí porque não podem ser enquadradas no sistema de radiodifusão estatal, mas tão-somente no sistema de radiodifusão público (terceiro setor).

Em outras palavras, por uma questão de unidade e coerência do ordenamento jurídico, uma vez qualificada uma entidade como organização social, então, ela passará a integrar o terceiro setor e não mais o âmbito da administração pública. Evidentemente que isto não afasta a responsabilidade estatal quanto à execução da política pública em termos de educação, por intermédio do sistema de radiodifusão público.

Defende-se aqui que o "terceiro setor" da comunicação audiovisual ampara-se na cidadania (art. 1.o, II, CF) e na liberdade de associação que assiste aos cidadãos brasileiros (art. 5.o, XVII, CF). É uma proteção à auto-organização da sociedade relativa à comunicação social. Consiste em um mecanismo de realização cooperada dos direitos fundamentais relacionados à comunicação social, especialmente a liberdade de expressão, informação, comunicação e direitos culturais. Sua tarefa básica é a de assegurar uma comunicação social de interesse público. Ademais, trata-se de uma verdadeira garantia em favor do acesso dos cidadãos e dos grupos ao meio de comunicação social na modalidade televisão por radiodifusão.

A inovação constitucional reside na diferenciação entre os sistemas de radiodifusão público e estatal. Na perspectiva da tradição do direito público brasileiro, o elemento estatal é identificado com o público. O público é o âmbito estatal (referente ao Estado), assim como o estatal está associado com a idéia de público. Ocorre que com as transformações sociais verificadas nas últimas décadas, passou-se a diferenciar o público do estatal, não mais se adotando o âmbito estatal como sinônimo de público, daí a emergência de um setor público não-estatal.

Pode-se afirmar que, atualmente, o termo "público" é o gênero que compreende as seguintes espécies: estatal (âmbito destinado ao Estado em que há a atuação dos poderes públicos) e o não-estatal (setor da sociedade em que há a ação de organizações fora do aparelho estatal em afirmação à cidadania, assegurando a redistribuição do poder político e do poder social). Tal diferenciação serve à expressão do pluralismo social, como fator de organização do sistema de radiodifusão, pois a unidade política do Estado pressupõe a pluralidade inerente à sociedade.

O ponto em comum entre o público-estatal e o público não-estatal consiste no fato de ambos os setores estarem atrelados ao que é de "todos e para todos", ou seja, eles defendem e promovem os interesses públicos sem fins lucrativos. Aqui, adota-se a concepção contemporânea de interesse público, fundada em uma pluralidade de interesses públicos que expressam a diversidade de interesses sociais classificados em interesses especiais e interesses difusos. Em um sentido amplo, o termo "público" refere-se tanto ao Estado quanto à sociedade, sendo que os interesses públicos não são mais objeto de "monopólio estatal". A nota diferenciadora reside em que o público-estatal diz respeito à figura do Estado (e, respectivamente, ao exercício de poderes estatais), enquanto o público não-estatal designa a figura da sociedade civil (vocábulo público em sentido restrito).

Com efeito, a organização da gestão do setor público de radiodifusão comporta múltiplos arranjos institucionais, tais como: associações civis e fundações, sem fins lucrativos, organizações sociais, organizações civis de interesse público, em que prevalece a noção de propriedade pública (coletiva) e não de propriedade privada. Trata-se de um espaço para a ação cooperada dos cidadãos em favor da prestação de serviços de televisão por radiodifusão para a comunidade, assegurando-se a auto-gestão das respectivas atividades pelos próprios cidadãos e (ou) usuários.

Enfim, a realização plena do princípio democrático sobre o setor de televisão em nosso País depende, a par da conscientização progressista da classe política, da mobilização dos brasileiros em defesa de seus direitos tanto na qualidade de cidadãos quanto consumidores e, também, como produtores de conteúdo audiovisual.

* Ericson Meister Scorsim é advogado e doutor em Direito do Estado pela USP. ericson@expresso.com.br.

TV Digital, começa o segundo tempo!

Neste domingo, 02 dezembro de 2007, o Presidente Lula lançou, oficialmente e na prática, o Brasil na era da TV Digital. Resultado de um árduo desafio iniciado com o Decreto 4.901 de 26 de novembro de 2003 que instituiu o Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), esse fato pode ser visto como um 4×3 de um primeiro tempo, a nosso favor. Poderia ter sido um 4×0? Talvez sim, mas o que importa mesmo é que o “time está em campo” num jogo que quase perdíamos por W.O. Afinal, setembro de 2004, o setembro negro da TV Digital, foi o auge de uma “peleja” só conhecida nos bastidores, quando lobbies internacionais e outros interesses contrariados com a ousadia nacional tentaram, sem sucesso, passar à sociedade a nociva idéia de que o SBTVD estava “reinventando a roda”. Segundo os algozes digitais de plantão à época, éramos técnica e politicamente incompetentes e estávamos “enrolando” o povo brasileiro. 

Não faltaram frases de efeito, estrategicamente encomendadas, tais como “estamos repetindo o erro do PAL-M”, ou ainda, “como o Brasil quer competir com apenas R$ 50 milhões (recursos previstos para o SBTVD) quando concorrentes internacionais aplicavam U$ bilhões?”. Naturalmente que essas viciadas retóricas quando não pecavam por de falta de contexto ou de conceito, pecavam por inverdades. O inoportuno artigo assinado pelo jornalista Celso Ming neste período, “TV de Policarpo Quaresma”, retrata a desleal disputa Golias multicor X um David verde amarelo.

Foi difícil “entrarmos em campo” nesta batalha digital, o que só viria a acontecer em meados de 2005, quando organizamos no Ministério das Comunicações uma mostra da competência brasileira na área, implementada por nossos 1500 cientistas e  técnicos envolvidos no SBTVD. 

Muito embora o 4×3 se traduza numa TV Digital que traz para poucos os benefícios da boa qualidade da imagem, ela tem alma brasileira, pois o software é nosso. Começaremos 2008 na expectativa de um placar mais elástico no segundo tempo, apostando na prometida interatividade, característica principal do modelo brasileiro, baseado em plataforma japonesa. Esta interatividade, que permitirá o acesso a diversos serviços digitais (educação a distância, tele-saúde, etc)  em especial o acesso à Internet, o que, em acontecendo, se traduziria numa efetiva revolução de inclusão digital do povo brasileiro, facilmente compreensível se considerarmos que mais de 95% dos lares brasileiros possui um aparelho de TV.

Por fim, há de se referenciar indispensáveis atores do período de preparação do jogo: Luiz Fernando (Puc-Rio), Guido Lemos (UFPB), Marcelo Zuffo (USP), Fernando Carvalho (UFC), “craques” sem os quais não teríamos nos classificado para as “oitavas de final”. Ricardo Benetton (CPQd), Augusto Gadelha (MCT), André Barbosa (Casa Civil) e Plínio Aguiar (Anatel), técnicos desta seleção que, dentre outros, nos ajudaram a enfrentar revezes e manter vivo o sonho de uma TV Digital Tupiniquim mais condizente com o Brasil de Gilberto Freire, Oscar Niemayer, César Lattes do que com a saga do Major Quaresma de Lima Barreto.

* Mauro Oliveira, Secretário Adjunto de C&T do Ceará, foi Secretário de Telecomunicações do Minicom 2004/2005.

* Tarcisio Pequeno, Presidente da FUNCAP, foi Secretário Regional da SBPC.

TV Digital: perguntas às respostas que não foram formuladas

A televisão digital estreou oficialmente no domingo (2/12), na cidade de São Paulo, de forma tão secreta quanto antecipamos neste espaço (ver "Bem-vindo à televisão secreta"). Apenas uns raríssimos paulistanos puderam vê-la em casa, com os equipamentos postos à venda a toque de caixa, nas últimas semanas.

A grande imprensa, cumprindo seu dever, produziu copioso material, inclusive cadernos especiais, para informar o distinto público sobre o funcionamento da nova tecnologia e suas inúmeras possibilidades. Boa parte das matérias foram guias do tipo "Entenda a TV Digital", no formato pergunta-e-resposta, com explicações objetivas para perguntas idem.

Assim sendo, ombreando-se com as melhores casas do ramo noticioso e no intuito de oferecer aos leitores a informação mais qualificada possível, esta coluna também oferece a sua modesta contribuição, arriscando respostas para questões que não foram formuladas, ou não foram de todo respondidas. São elas:

** O Brasil está certo em adotar a TV Digital?
Sem sombra de dúvida. A TVD (ou DTV, na sigla inglesa que a tradicional macaquice pátria já adotou) é uma tecnologia muito superior de transmissão de sinais de áudio e vídeo, que os países centrais já adotam desde o início da década, ou mesmo antes. Ela abre uma nova etapa na história da televisão e pode trazer enormes benefícios em termos de informação, entretenimento, educação e cidadania. Colocar-se contra a TV digital é burrice e fazê-lo apenas por pirraça contra o governo Lula, é burrice e meia.

** O Brasil adotou a TV Digital no momento certo?
Em termos. A decisão de planejar a introdução da tecnologia no mercado brasileiro, um dos maiores do mundo, foi tomada até tardiamente, em novembro de 2003 (veja o Decreto nº 4901 ). Poderíamos ter começado antes. Mas, depois que o processo começou para valer, as milhares de questões que ele colocou recomendavam cautela, para que as implicações fossem bem estudadas e os entraves solucionados antes da estréia.

Não foi o que ocorreu. As emissoras apressaram o governo, temerosas com a instabilidade em seu mercado, que está ameaçado pelo migração de telespectadores para a internet, a desenfreada pirataria de DVDs e a concorrência que já se anuncia da IPTV, a televisão por internet das empresas de telefonia, que é paga, mas de custo mais baixo. Queriam fortalecer-se, oferecendo um forte atrativo ao público e recobrindo-se da aura de modernidade e avanço tecnológico que haviam perdido. O governo embarcou na pressa e, em junho de 2006, definiu as regras gerais do jogo, nos termos em que as emissoras queriam, recuando enormemente de suas objetivos iniciais (compare o Decreto nº 5820 com o anterior).

De lá para cá, tudo foi feito na correria, sem tempo para o desenvolvimento, por exemplo, do sistema operacional Ginga, o Windows da TVD brasileira – nossa (boa) contribuição ao sistema japonês que adotamos. Estamos começando sem Ginga, o que significa uma TVD limitada e gastos futuros para os consumidores que estão comprando equipamentos agora.

** O Brasil fez o certo ao adotar o padrão japonês de TVD?
O padrão japonês, desenvolvido depois do americano e do europeu, é mais avançado e adapta-se melhor às condições brasileiras, sejam as sócio-econômicas, sejam as geográficas. Testes conduzidos por universidades (USP, Mackenzie), com apoio das emissoras, demonstraram isso.

A questão é que o padrão japonês privilegia a alta definição de imagens e de sons (HDTV), e a mobilidade/portabilidade, isto é, a recepção em veículos de qualquer tipo e em dispositivos pessoais como celulares, i-pjosdireitoaco etc. A primeira dessas funcionalidades é bastante elitista, já que exige receptores muito caros. Tanto assim que, mundo afora, a definição que temos atualmente – a chamada "padrão", ou "standard" (SDTV) – ainda é majoritária na TVD.

Quanto à outra funcionalidade, o padrão japonês interessava mais às emissoras porque permite que elas transmitam diretamente para os celulares, sem passar pelas redes de telecomunicações. São elas que fazem o sinal chegar ao aparelho e não as teles. Com isso, as emissoras mantém o controle exclusivo de seu mercado. É melhor para o telespectador, claro, que não tem de pagar nada às teles, mas não foi no orçamento dele que as emissoras pensaram e sim no próprio.

Já o padrão europeu foca mais a multiprogramação, ou a possibilidade de se ampliar o número de canais, e também a interatividade, que permite ao telespectador navegar em telas de informação e fazer escolhas, como na internet. Isto seria melhor para o Brasil, que tem pouca diversidade de conteúdo na televisão e um enorme contingente de pessoas ainda longe da rede mundial de computadores (cerca de três quartos da população). Foi por isso que os setores pró-democratização da mídia posicionaram-se mais a favor do padrão europeu, ou de um padrão mais adequado às nossas necessidades.

** O padrão de TVD que temos, afinal, é japonês ou nipo-brasileiro?
O governo adotou o sistema japonês, com inovações brasileiras – basicamente, o navegador Ginga e a compressão de imagens padrão MPEG-4. O sistema japonês puro não funciona aqui e não adianta trazer muamba nipônica do Paraguai. Ele também não incorporou, ainda, os avanços da engenharia brasileira.

Portanto, não há propriamente um padrão "nipo-brasileiro", ao menos por enquanto. Há um padrão japonês e um brasileiro, que é o japonês adaptado. Os dois são únicos no mundo e adotados apenas em seus mercados. O que significa que não dá para importar nem exportar. Por isso, são mais caros que o americano e o europeu. E seguirão sendo, enquanto não conquistarem novos mercados.

** Onde foi parar a fábrica de semicondutores, que o Japão nos daria como contrapartida pela escolha de seu padrão?
Perdeu-se no papelório oficial. Não era uma exigência contratual nossa, nem um compromisso formal deles. Era uma vaga intenção de envidar esforços no sentido de um dia, quem sabe, considerar a remota hipótese de estudar o assunto por dois ou três minutos. Já passaram mais de cinco e não rolou fábrica alguma. Nem vai rolar.

** O que, enfim, a TV digital brasileira oferecerá aos telespectadores?
Inicialmente, das grandes funcionalidades da TVD – alta definição, mobilidade/portabilidade, multiprogramação e interatividade – só está disponível a primeira. E apenas para consumidores que possam comprar conversores (set top boxes) dotados de HDTV, com custo superior a 1 mil reais, e que tenham telas de LCD ou plasma com 1080 linhas de resolução (a mais baratinha custa quase 8 mil reais). Ou seja: a elite da elite da elite dos telespectadores. A turma do Rolex.

Para a tigrada, a aquisição do conversor digital mais simples, em definição SDTV, já melhora bastante a imagem e o som do televisor analógico que a maioria tem. Mas com os preços desse conversor na faixa de 500 reais, no mínimo, significa que o consumidor terá de desembolsar quase o valor de dois televisores atuais de 16 polegadas para melhorar a sua recepção. O bom-bril na antena ainda vale mais a pena.

** A TV digital elimina, de fato, todos os problemas de imagem?
A TVD acaba com fantasmas, chuviscos, oscilações, todos os problemas da televisão analógica. Mas também tem lá os seus defeitos. Quem tem NET Digital em casa já os experimenta. Sabe aquele congelamento de imagens, aquele quadriculamento, que deixa a tela como se fosse um mosaico de quadradinhos? Pois é. Defeito digital.

** Quando serão introduzidas as demais funcionalidades da TV Digital?
A indústria eletrônica está prometendo dispositivos móveis e portáteis para o primeiro trimestre de 2008. Vamos ver se o preço, e não apenas o aparelho, cabe no bolso. Quanto ao celular com TV, não se anime muito. As teles comandam a produção desses equipamentos e, como não lucram nada com a TVD – ao contrário, porque fulano não telefona enquanto assiste TV, muito menos baixa vídeos, portanto não gera tráfego –, não haverá nenhuma farra de televisão no celular. É o que acontece no Japão, onde os dispositivos portáteis para recepção de TV abundam, mas não os celulares.

Quanto à interatividade, a melhor perspectiva é o final de 2008, quando estará pronto, supostamente, o navegador Ginga. Mas depende das emissoras se interessarem por oferecer produtos interativos em sua programação e não há maior entusiasmo nesse sentido. Elas acham que esse é um novo serviço, muito distinto do que fazem, e temem investir nele porque não têm modelo de negócio definido. Preferem fazer apenas o que sabem que dá dinheiro. Puro conservadorismo.

Já a multiprogramação poderia ser implantada rapidamente, se as emissoras tivessem interesse. Os investimentos não são muito altos. Mas as emissoras comerciais não querem, porque acham que haverá dispersão dos recursos publicitários por muitos canais e o cobertor será curto para todo mundo. Como apenas as emissoras educativas querem, para fazer canais de educação a distância, a indústria eletrônica não dotou os conversores de sintonia para multiprogramação. Também fica para o futuro. Indefinido.

** Os preços da TV digital não vão cair com o tempo?
Certamente vão, mas em quanto tempo? Talvez leve anos. A indústria eletrônica diz que precisa ter ganhos de escala, portanto precisa vender para os primeiros consumidores por preços mais altos, para que outros comprem mais barato no futuro. Atualmente, como vimos, só a turma do Rolex pode comprar.

Mas essa turma já não tem TV por assinatura, que já é digital e que oferecerá HDTV a partir de janeiro? Vai comprar conversores digitais para quê? E se ela não comprar, como a indústria terá os ganhos de escala?

É aqui que se explica a linha de financiamento de 1 bilhão de reais do BNDES, anunciada pelo presidente Lula na cerimônia de inauguração da TVD em São Paulo. O governo vai financiar as redes varejistas, para que elas ponham os preços dos aparelhos ao alcance da tigrada. Ou seja: o contribuinte é que garantirá o ganho de escala.

** Os aparelhos que forem comprados agora serão usados por muito tempo?
Só se o consumidor se contentar apenas com a melhoria do som e da imagem. Quando as outras funcionalidades da TVD forem introduzidas, os conversores lançados agora no mercado não servirão para sintonizá-las. Será preciso comprar novos aparelhos. Que não terão escala em sua produção, portanto serão caros, portanto necessitarão de uma ajudinha financeira do BNDES, portanto será mais uma conta para o contribuinte pagar.

** Enfim, o que fazer? Aderir ou não à TV digital?
Não foi o próprio ministro Hélio Costa, das Comunicações, que nos sugeriu aguardar, porque o governo segue trabalhando para que o conversor digital seja vendido a 200 reais? Então sejamos obedientes e pacientes, a menos que alguém aí tenha dinheiro para torrar. Mas, nesse caso, será provavelmente leitor de Exame ou de Caras, não deste Observatório da Imprensa.