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O melhor e o pior das comunicações em 2007

Comecemos pelo lado positivo: 2007 foi um ano de expressiva inclusão digital para o Brasil. Quatro segmentos das comunicações e da tecnologia digital contribuíram de forma especial para esse resultado: telefonia móvel, banda larga, internet e computador popular.

O celular superou todas as expectativas, com uma expansão de quase 20% este ano. Com o desempenho, a rede brasileira deve quebrar a barreira dos 120 milhões de celulares em serviço – número que coloca o País em quinto lugar no mundo, atrás apenas de China, Estados Unidos, Índia e Rússia. Além disso, a telefonia móvel dá o salto tecnológico para a terceira geração (3G), após o leilão de freqüências que injetou quase R$ 6 bilhões no saco sem fundo do Tesouro Nacional.

A banda larga teve expansão notável em 2007 e fechará o ano com quase 8 milhões de acessos. Aliás, o Brasil praticamente dobrou o número de usuários de alta velocidade nos últimos 24 meses. O grande motor dessa expansão foram os novos projetos das concessionárias de telefonia – Embratel, Oi, Telefônica e Brasil Telecom – com suas ofertas de novas soluções do tipo triple play, ou seja, em pacotes de telefonia, banda larga e TV por assinatura. Com isso, a internet já alcança 40 milhões de usuários em todo o País.

Em todos os avanços registrados, não há nenhuma contribuição ou mérito do governo, pois o sucesso do celular, da banda larga e da internet tem sido resultado exclusivo do trabalho e dos investimentos das operadoras privadas. A única área beneficiada por ações positivas do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi a do computador popular, em que a isenção de impostos estimulou fortemente a aquisição da primeira máquina.

A venda de computadores portáteis ( laptops) este ano deverá crescer 27% em relação a 2006 e, pela primeira vez, vai superar o total de computadores de mesa (desktops) comercializados. O preço dos portáteis caiu a menos da metade em apenas um ano.

Frustração

A TV digital nipo-brasileira estreou no dia 2 de dezembro apenas na Grande São Paulo. Não há muito que comemorar com a inauguração de um sistema ainda incompleto, sem decodificadores a preços acessíveis no mercado, sem o middleware Ginga, sem interatividade e sem mobilidade. Só as emissoras de TV fizeram sua parte, investindo em equipamentos e tecnologia. Mesmo assim, faltam programas e conteúdos em alta definição.

Inaugurar obra inacabada é puro açodamento populista. A TV aberta, por ser uma paixão nacional, mereceria mais seriedade. Lula parece não perceber que, nas condições atuais, sem projeto industrial e sem preços acessíveis, a TV digital continuará sendo, ainda por muitos anos, privilégio da classe AA – a elite que o presidente tanto critica, embora também dela faça parte.

Como contrapartida à escolha da tecnologia digital, vale relembrar, o ministro das Comunicações, Hélio Costa, disse, no ano passado, haver negociado e conseguido do Japão uma grande indústria de semicondutores, a ser instalada no Brasil. De lá para cá, silêncio total. Onde está a indústria? O gato comeu.

A expectativa do ministro, de que o padrão nipo-brasileiro seria adotado por muitos países na América Latina, também não se concretizou. Até aqui, nenhum país aderiu. Nenhunzinho.

Retrocesso

A pior das notícias deste ano é, sem dúvida, a decisão do presidente Lula de ressuscitar as estatais Telebrás e Eletronet. Na contramão da história, elas só aumentam o risco de ineficiência, empreguismo e corrupção no governo.

Compare, leitor, o desempenho da velha estatal com os resultados do setor privatizado. Ao longo de 25 anos, a Telebrás investiu cerca de R$ 40 bilhões, instalando o total de 24,5 milhões de acessos telefônicos, entre fixos e móveis. As operadoras privadas, em apenas nove anos, investiram quase quatro vezes mais, R$ 150 bilhões, e implantaram cinco vezes mais acessos (147 milhões).

A tentativa de escolha do rádio digital tem sido um fiasco. O ministro Hélio Costa insiste em apoiar uma tecnologia ainda cheia de problemas, o padrão Iboc, da norte-americana Ibiquity. E ainda propõe a associação de uma indústria brasileira com essa empresa, com recursos públicos.

Sem lei

Do ponto de vista institucional, o maior problema das comunicações brasileiras continua sendo a legislação obsoleta. O Brasil precisa, com urgência, de uma lei geral moderna, capaz de harmonizar os diversos segmentos das comunicações. A sobrevivência da velha estrutura legal da radiodifusão, ainda baseada num capítulo do velho Código Brasileiro de Telecomunicaçõ es, de 1962, interessa apenas ao governo e aos beneficiários do chamado coronelismo eletrônico.

Em algumas circunstâncias, contudo, o interesse político não respeita nem a lei obsoleta, como no caso do bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, que obteve a terceira concessão de uma emissora de TV aberta no Estado de São Paulo. Conforme determina o decreto-lei 236, de 1967, em vigor, nenhum grupo ou pessoa física pode ter mais do que duas concessões no mesmo Estado.Uma prova de que a fé não apenas remove montanhas, mas até barreiras legais.

A nobre função de matar o tédio

"Nós estamos no negócio de matar o tédio", já dizia o apresentador de TV Howard Beale em 1976, em apoplético discurso no filme Rede de Intrigas (Network). O "profeta louco das ondas eletromagnéticas" , criado pelo roteirista Paddy Chayefsky e o diretor Sidney Lumet para o que é, ainda hoje, a mais aguda crítica já feita à televisão, suas práticas e seus valores, resumia nessa frase objetiva e franca a missão principal do veículo que fizera dele uma celebridade.

É oportuno recordar a frase nesta época de festas em que as pessoas transbordam de afeto, reúnem amigos e familiares, buscam sofregamente o convívio com o próximo, mas não dispensam o televisor ligado junto à árvore de natal. Um breve olhar para a cena natalina – brasileira ou de outros países, não muito distintos nesse aspecto – é suficiente para demonstrar o quanto a televisão é importante como meio de entretenimento e como são equivocados os discursos que tentam desqualificar essa função em favor de um maior volume – indiscutivelmente necessário – de informação e de educação na tela.

Canal para bebês

A televisão é, sim, um negócio para matar o tédio, antes e acima de qualquer outra coisa que possa fazer pelos humanos. Ela preenche o tempo livre com maior eficiência e menor custo do que outras formas de diversão, o que é a razão da sua universalidade. Qualquer um, pequeno ou grande, pobre ou rico, inteligente ou burro, tem sempre à mão aquele botão redentor do aparelho de TV, para com um simples toque relaxar das tensões diárias, proteger-se da brutalidade circundante e deixar flutuar a imaginação. Ainda mais os solitários, que preenchem suas carências afetivas com os seres e os temas da tela, e que teriam natais sombrios, angustiantes, não fosse aquela luz amiga a cintilar diante de seus olhos.

Seja por interesse mercadológico, nas emissoras comerciais, seja por espírito público, nas educativo-culturais , a televisão se propõe a subsidiar os humanos de afeto e companhia em todos os momentos da vida. Literalmente do começo ao fim dela, como demonstram dois projetos que provocaram curiosidade e polêmica neste ano. Aqui, no Observatório, a colega Leneide Duarte-Plon comentou, no início deste mês, a celeuma causada na França pela introdução de uma emissora voltada aos bebês [ver "Cientistas franceses pedem moratória para canal"). Um pouco antes, em novembro, pipocou planeta afora a notícia de uma emissora lançada na Alemanha para se dedicar exclusivamente à morte e ao luto.

A TV para bebês intitula-se BabyFirst TV e é mais uma oferenda norte-americana aos deuses do consumo. Está no ar 24 horas por dia em 28 países, com um público estimado de 13 milhões de telespectadores, na faixa de 6 meses a 3 anos de idade. Surgiu da constatação de que muitos pais compram DVDs com programas voltados aos bebês, pagando até 20 euros por exemplar, o que configura um polpudo mercado. A emissora oferece 50 programas em sua grade, com conteúdos que pretendem estimular nos bebês o desenvolvimento da linguagem e o conhecimento da matemática, além das "destrezas sensoriais e do jogo criativo".

Fazer companhia e divertir

Os produtores norte-americanos garantem contar com a assessoria de pedagogos e psicólogos infantis, mas os colegas franceses desses profissionais, segundo Leneide, caíram de cacete na emissora, argumentando que na primeira infância a criança precisa mobilizar o corpo e a mente com brinquedos, e não prostrar-se diante da tela da TV. Seja como for, aí está reiterado o fato de que a televisão almeja acompanhar as pessoas desde o início de suas vidas, oferecendo a elas companhia agradável e incondicional a qualquer hora.

Agora e na hora de nossa morte, propõe a Etos TV alemã, "o canal do luto". Vitrine do mercado funerário de seu país, que reúne mais de 3.000 empresas, a emissora aborda sem assombro um tema difícil, convicta de que ele é mais um entre tantos que interessam às pessoas, sobretudo quando enfrentam a morte de parentes e conhecidos, ou a perspectiva da própria partida. É o que mostra sua insólita programação? "Cemitérios como lugares de memória cultural, porque o futuro necessita de origens." Obituários pessoais, "porque a memória conecta as gerações". Além de informações práticas sobre o que fazer diante de um óbito e dicas "de prevenção" porque, afinal, salvo os suicidas, ninguém quer despedir-se da vida antes da hora.

Entre os dois extremos da existência, a televisão procura entreter e confortar os humanos de todas as formas possíveis. Para a infância, já são muitos os canais, repletos de desenhos animados, seriados e shows. Para a adolescência, canais de música pop ou de videogames, como os dois que se defrontam na TV paga brasileira, a MTV e a Play TV. Para a vida adulta, quando os interesses se particularizam e a identidade se define de forma mais complexa, uma infinidade de canais segmentados por conteúdo, sexo, faixa etária, nível cultural. E todo esse amplo leque de opções identificado por um denominador comum: o desejo de fazer companhia e divertir. De matar o tédio.

Discurso confuso

A função de entretenimento da TV, por tudo isso, deveria merecer mais consideração. Mesmo, ou sobretudo, quando os programas têm forma e conteúdo que escapam ao padrão de gosto da elite. Uma boa atração televisiva não precisa ter, necessariamente, aspectos informativos e educacionais; pode perfeitamente oferecer apenas diversão ligeira, descompromissada. "Baixaria" não é o oposto de televisão inteligente; é a degeneração da televisão popular, dos produtos concebidos para as preferências culturais e o nível de cognição da grande massa telespectadora. É totalmente possível uma televisão popular de qualidade, sem baixarias e também sem maiores ambições intelectuais. É possível apenas entreter, sem querer mais do que isso, com ética, respeito e responsabilidade.

O discurso bem pensante a respeito disso, entretanto, é confuso. Quando aborda a TV de entretenimento, costuma jogar no mesmo saco programas razoáveis e grandes porcarias, rotulando tudo de baixaria. Shows de auditório, game shows, telenovelas, musicais sertanejos e programas humorísticos padecem desse preconceito, do qual estão isentos, por definição, os programas de debate, os telejornais, os documentários, os musicais de MPB e as minisséries de inspiração literária – todos avaliados, a priori, como programas sérios e úteis, mesmo que ocultem a mais sórdida baixaria, na forma de manipulação de dados, distorção, parcialidade, omissão, partidarismo etc.

Esforço e utilidade

Essa falsa oposição entre uma televisão de qualidade, identificada somente pelo caráter educativo-cultural, e uma televisão de baixo nível, assim considerada por privilegiar o entretenimento, transborda do pensamento crítico para o juízo comum dos telespectadores. E se expressa num discurso freqüentemente culpado, em que a pessoa clama por mais cultura e educação na TV, mas reconhece que não assiste às atrações que atendem ao clamor. É a culpa pelo entretenimento, culpa por assistir TV apenas para se divertir, passar o tempo, esfriar a cabeça ou pegar no sono.

Outra decorrência dessa percepção geral de que a boa televisão é apenas a que informa e educa – e à qual não se assiste porque, infelizmente, ela exige pensar e pensar dá trabalho, é chato… – está na conceituação da TV pública. Muita gente, incluindo especialistas, acredita que não cabe a ela oferecer entretenimento. Apenas "fazer a cabeça", estimular o raciocínio, prover informações. Essa visão só facilita que as emissoras comerciais descumpram seus deveres para com a educação e a informação e impede que as emissoras públicas definam melhor o seu enfoque do entretenimento. Não há, por exemplo, programas humorísticos na TV pública brasileira. Foram raríssimas as suas tentativas nesse sentido, ao longo da história. E por quê? Fazer rir não é coisa séria, talvez das mais sérias que existem, pela função profilática do humor?

A televisão de entretenimento é legítima. Não há nada errado em divertir o telespectador. Não é obrigatório instruí-lo e informá-lo quando se procura diverti-lo, embora seja conveniente que isso ocorra. Convém que nos lembremos disso nestes dias de festas em que as pessoas buscam estar juntas para celebrar a vida e se divertir. A TV procura fazer isso todos os dias do ano, todas as horas do dia, para todos os públicos, por toda a existência das pessoas. Errando ou acertando, merece reconhecimento pelo seu esforço e pela utilidade do serviço que presta.

Salvando duas estatais e o rádio digital Iboc

Por mais estranho que possa parecer, o governo Lula planeja ressuscitar duas estatais – a Telebrás e a Eletronet – e ainda investir no capital de uma empresa americana, a Ibiquity, proprietária da tecnologia de rádio digital In Band on Channel (Iboc). São três projetos polêmicos que caminham sem qualquer debate e sem a participação do Congresso. Façamos uma retrospectiva.

Privatizada em 29 de julho de 1998, a Telebrás já deveria ter sido extinta. Mas sobreviveu os últimos nove anos porque tem responsabilidades trabalhistas com 293 funcionários cedidos à Agência Nacional de Telecomunicaçõ es (Anatel), além de enfrentar outras questões na Justiça.

A Fênix renasce

A reativação da Telebrás interessa a três ministérios: Comunicações, Casa Civil e Comunicação Social. Seus defensores atribuem papel estratégico à empresa nos ambiciosos projetos de inclusão digital, que interligarão escolas e hospitais via internet de banda larga, e na operação do futuro Satélite Geoestacionário Brasileiro (SGB), planejado para prestar, entre outros, serviços de comunicações militares e segurança de vôo. É claro que todos esses serviços poderão ser prestados com a mesma segurança e confiabilidade – e por menores custos – pelas operadoras privadas de telecomunicaçõ es do País, como ocorre, aliás, em muitos países.

Os investimentos para os projetos de inclusão digital do governo Lula nos próximos três anos são da ordem de R$ 2,5 bilhões e R$ 3 bilhões, segundo prevê o ministro das Comunicações, Hélio Costa.

Para o PT e seus aliados, a recriação de uma estatal como a Telebrás é um prato apetitoso. Segundo observadores independentes, a criação de centenas de cargos nessa nova empresa, a começar pela diretoria, amplia o espaço para barganhas e para o aparelhamento do Estado.

A quase falida

Nascida em 1999, no auge da bolha da web, a Eletronet tem como sócias a Lightpar (Eletrobrás) e a AES Bandeirante. O começo de suas operações ocorreu no momento de refluxo dos negócios setoriais, logo depois do estouro da bolha. Seu desempenho, como se poderia esperar, foi catastrófico, resultando em calote de mais de R$ 400 milhões para seus fornecedores.

Paralelamente à reativação da Telebrás, o governo está decidido a recuperar a Eletronet e mantê-la na condição de estatal, pensando em usar intensamente sua rede de 16 mil quilômetros de cabos de fibra óptica instalada sobre as torres de transmissão de energia de alta tensão da Eletrobrás. O Ministério da Comunicação Social está de olho nessa rede para ampliar a cobertura da TV Brasil.

Mesmo enterrada em dívidas, a Eletronet não paralisou suas atividades. A Eletrobrás afastou a sócia AES e assumiu as operações, passando a prestar serviços a 20 clientes. Mas não assumiu as dívidas da empresa, que já devem ter ultrapassado R$ 550 milhões.

Segundo estudo elaborado por J. P. Martinez, consultor e analista de telecomunicaçõ es, "estatais como a Petrobrás, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, apoiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), vêm bancando a operação dos serviços e podem negociar a aquisição da empresa".

Apoiar a Ibiquity?

O terceiro e mais surpreendente projeto em gestação no governo visa à introdução do rádio digital no Brasil. Foi anunciado há duas semanas pelo próprio ministro Hélio Costa. O padrão de rádio digital Iboc (conhecido também pelo nome comercial de HD Radio), criado pela empresa americana Ibiquity, ainda não está plenamente amadurecido do ponto de vista tecnológico para ser adotado pelas emissoras brasileiras.

Como saída para essa dificuldade, o ministro Hélio Costa sugere que o governo brasileiro faça uma parceria estratégica com a Ibiquity, para ajudá-la a concluir o desenvolvimento da tecnologia. E faz uma proposta realmente criativa, leitor: o governo ajudaria uma empresa brasileira, privada ou estatal, a associar-se à Ibiquity, com recursos do BNDES.

Todo esse apoio na expectativa de que a empresa americana conclua o desenvolvimento do padrão digital Iboc e, em contrapartida, se instale no Brasil, para fabricar e exportar equipamentos digitais para a América Latina. Para alguns analistas, a Ibiquity precisa de, no mínimo, US$ 100 milhões.

Se concretizado, o generoso projeto de Hélio Costa pode ser providencial para a empresa americana, mas traz sérios riscos ao Brasil.

Vale lembrar que o padrão de rádio digital Iboc tem quatro problemas não resolvidos: 1) atraso (delay) de oito segundos entre o sinal analógico e o digital, com a repetição ou a eliminação de palavras essenciais ao entendimento de notícias ou à audição de música; 2) ruídos e interferências em canais vizinhos, tanto em AM como em FM, especialmente à noite; 3) diferença de alcance das transmissões analógicas e digitais, com problemas de instabilidade nos pontos de limite das transmissões digitais; 4) excessivo consumo de energia, que impossibilita a produção de receptores portáteis, por esgotamento das baterias em poucas horas.

Balanço do ano para a democratização da comunicação

O ano de 2007 foi intenso na área da comunicação brasileira. Ocorreram as implantações da nova TV pública, da TV Digital, a discussão da Classificação Indicativa, entre outros fatos. As ações foram acompanhadas de perto pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), sempre com o propósito de incidir nas formulações. No âmbito geral da luta pela democratização da comunicação, o FNDC pautou-se pela construção da Conferência Nacional de Comunicação, em ações que tiveram grande ressonância nos movimentos sociais e no Congresso Nacional. Mas foi na TV Pública, porém, que o Fórum teve sua ação mais incisiva.

A questão da Conferência Nacional de Comunicação, uma resolução da última plenária do FNDC, foi intensamente trabalhada em 2007, com grande ressonância nos movimentos sociais e depois no Congresso Nacional. "Isso nos toma bastante tempo, catalisa as ações de maneira geral. Acompanhamos os projetos da digitalização da TV na Câmara dos Deputados, tentando incidir de alguma maneira sobre isso. Na rádio digital também", destaca Celso Schröder, coordenador- geral do FNDC, que esteve acompanhando diversas audiências públicas. "Mas foi talvez a TV pública nossa ação mais concreta, na medida em que nos ocupou o final do ano passado todo com as reuniões dos grupos de trabalho, culminando com o I Fórum, em maio", avalia Schröder. A TV pública (TV Brasil), que encerra o ano com sua criação encaminhada pelo governo fefderal, teve um acompanhamento bastante intenso do FNDC, que contribuiu com formulações, críticas e defesas ao projeto.

A classificação indicativa teve um momento intenso de debate em 2007. "Houve uma tentativa do governo de incidir sobre esse tema, e foi demonstrada mais uma vez a força da radiodifusão, que refreou a iniciativa", avalia o coordenador do Fórum. Ele destaca que o fato demonstrou "mais do que nunca" a necessidade de se continuar constituindo forças na sociedade civil para enfrentar a visão meramente comercial que a radiodifusão implementa nas suas ações.

Em 2007, a grande dívida que o Congresso brasileiro deixa para a sociedade civil, na avaliação do FNDC, é a não ativação do Conselho de Comunicação Social (CCS). Num ano decisivo, de mudanças importantes no panorama brasileiro das comunicações, o CCS ficou inativo. "Por inoperância do Congresso, um Senado acéfalo e por incompreensão da Câmara, que poderia ter assumido esse papel de convocar e instrumentalizado o CCS. Essa falta é uma enorme traição inclusive à Constituição, que o criou", denuncia Schröder.

Quanto às rádios comunitárias, o FNDC avalia que o governo não conseguiu ainda equalizar suas políticas e incidir sobre a criminalização que esse segmento sofre, seja criando políticas específicas, ou relativizando sua política quanto ao fechamento dessas rádios. "O governo sucumbe a uma pressão das rádios comerciais nesse sentido".

"Por fim, encerramos o ano discutindo a aplicação do modelo de TV digital, tentando garantir aquilo que a tese anterior apontava, a universalizaçã o do serviço, a inclusão digital", esclarece Schröder. Isto é o que está sendo debatido agora e examinado pelo FNDC, para dialogar com os relatores dos PLs em tramitação no Congresso.

Síntese retrospectiva

Um novo sistema público de comunicação

O ano se iniciou com um anúncio surpreendente vindo do ministro das Comunicações, Hélio Costa, de que o governo federal preparava uma nova televisão pública. Mmontada com os canais vagos a partir da implantação da TV digital no país, seria uma rede nacional "bem mais ampla do que a Radiobrás" . À parte do trabalho que vinha sendo realizado por diversas entidades da sociedade e representantes do próprio governo federal no Fórum de TVs Públicas, o anúncio de Hélio Costa surpreendeu as entidades envolvidas nos debates que culminariam na realização do I Fórum de TVs Públicas, realizado posteriormente, em maio, em Brasília.

A polêmica gerada com a notícia do anteprojeto de criação da nova rede de televisão pública trouxe à tona discussões sobre o que é público e o que é estatal. Quatro entidades representativas das televisões públicas apresentaram em março, aos ministros Dilma Rousseff, da Casa Civil; Luiz Dulci, da Secretaria-Geral da Presidência da República; Hélio Costa, das Comunicações; Gilberto Gil, da Cultura; e à Presidência da República, um manifesto "Pela diversidade e complementaridade dos sistemas privado, público e estatal de TVs brasileiras" .

Ainda em janeiro, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) encaminhou à Comissão Executiva do Fórum Nacional de TVs Públicas uma série de propostas para a criação de um modelo de sistema público de comunicação. No documento, o FNDC defende a complementaridade dos sistemas público, estatal e privado, legitimado e sustentado pela reunião das forças da sociedade civil empenhadas na construção de sistemas democráticos de comunicação. Propõe formas de financiamento, controle público, integração de redes e serviços, entre outras contribuições.

Nova secretaria encabeça projeto

Em março, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou um novo organismo, com status de ministério, a Secretaria de Comunicação Social do governo federal. Quem assumiu a pasta foi o jornalista Franklin Martins. Ao empossar o novo ministro, Lula reafirmava a criação nova TV pública: "Vai ser educativa, que possa fazer o que muitas vezes a TV privada não faz", disse. A idéia viria integrar "uma série de medidas para reformular a comunicação do governo". Críticas pipocavam, pelo país, sobre a criação do que seria uma "TV chapa-branca" . O projeto foi entregue ao novo ministro, Franklin Martins.

Mesmo sendo o condutor de um processo de discussões acerca da TV Pública iniciado em 2006, o Ministério da Cultura não aparecia nas manifestações do governo acerca da nova TV. Também não interrompia os trabalhos e lançava, em abril, o "Caderno de Debates vol. 2 – Relatórios dos Grupos Temáticos de Trabalho" , do I Fórum Nacional de TVs Públicas. A publicação apresentou a síntese dos estudos que envolveram oito grupos temáticos na realização de um diagnóstico da televisão pública brasileira e na elaboração das pautas a serem levadas às plenárias do Fórum, já com data definida para ser realizado – de 8 a 11 de maio – em Brasília.

Evento qualificou a discussão, mas limitou o processo

A realização do I Fórum Nacional de TVs Públicas representou um avanço ao reconhecer a necessária existência de um campo público de televisão no país. Entretanto, se em sua preparação, o Fórum promoveu e viabilizou de forma inédita, discussões, grupos de trabalho, relatórios e documentos pensados por especialistas do setor, representantes da sociedade civil organizada, empresas e governo, o produto final dos quatro dias de debates em Brasília não correspondeu à altura os encaminhamentos necessários para dar forma a uma nova TV realmente Pública.

"Embora encontremos na Carta de Brasília a recomendação de que seja adotada uma estrutura horizontal para a TV Pública, ela permanece vertical ao sinalizar com uma difusão centralizada na Radiobrás e na TVE do Rio", avaliou Celso Schröder, coordenador- geral do FNDC, após o encontro de Brasília.

Ao final de todo o processo, a TV pública foi criada pelo governo por Medida Provisória, gerando protestos na sociedade civil e no parlmento. A MP 398, de 10 de outubro de 2007, autorizou o Poder Executivo a constituir a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), promovendo a extinção da Radiobrás e a incorporação de seu patrimônio. Para o FNDC, a TV Brasil poderá consolidar uma identidade brasileira marcada por valores populares e democráticos. Porém, o FNDC tem críticas quanto aos encaminhamentos finais que instituíram a nova TV pública nacional .

A construção de um espaço onde a sociedade civil possa participar efetivamente era uma condição da sociedade civil envolvida no processo de debates sobre a televisão pública brasileira e foi uma das reivindicações do FNDC acolhidas no Fórum de TVs Públicas. Porém, o governo decidiu nomear um conselho de notáveis, escolhidos pelo presidente Lula. Representantes da sociedade civil, em diversas manifestações, discordaram do governo em relação a esse Conselho. Em 26 de novembro, o presidente Lula nomeou os 15 representantes para o Conselho Curador da Empresa Brasileira de Comunicação (a TV Brasil).

A estrutura adotada para a TV Brasil desconsiderou, de acordo com o FNDC, a participação da sociedade civil e dos movimentos sociais, dos movimentos que lutam pela democratização da comunicação, dos pesquisadores e trabalhadores da comunicação.

TV Brasil e TV Digital estréiam juntas

No dia 2 de dezembro, a TV Brasil estreou, juntamente com a TV digital. Pouca gente, porém, já tem acesso à anunciada qualidade de uma e à programação de outra. As televisões inauguraram, mas as promessas de ganho foram adiadas até que o sinal da TV digital seja liberado para outras cidades e Estados e o preço dos aparelhos conversores e das próprias televisões sejam viáveis . A TV Brasil iniciou transmissões para São Paulo, Maranhão e Distrito Federal.

Durante o ano, a consultoria da Câmara Federal produziu um estudo e recomendou que o processo de implantação da TV digital no Brasil fosse submetido à aprovação do Congresso Nacional, o que não aconteceu. A Frente Nacional por um Sistema Democrático de Rádio e TV Digital (movimento criado a partir da organização de mais de cem entidades brasileiras na luta pela democratização dos meios de comunicação) promoveu encontro em março, no Rio de Janeiro, articulando ações para incidir quanto à implantação da TV digital . A TV digital nasce, entretanto, excludente, envolvida em contradições. Na pressa do governo, os preceitos contidos no Decreto 4.901/03 foram abandonados .

Cruzada pela Conferência

No ano de 2007, o FNDC pôs em prática a determinação de sua XIII Plenária e intensificou ações pela realização de uma Conferência Nacional de Comunicação. Acreditando que a solução para um novo marco legal para o setor está nesse grande encontro, deflagrou uma verdadeira cruzada pela construção da Conferência. Com cerca de 30 entidades, participou da criação do Movimento Pró-Conferência Nacional de Comunicação, que se reúne quinzenalmente em Brasília, definindo ações para realizar uma conferência plural e democrática.

Em abril, mobilizando- se pela Conferência, FNDC esteve com os ministros Tarso Genro (da Justiça) e Franklin Martins (da Secretaria de Comunicação do Planalto), encaminhando as reivindicações da entidade pela realização do evento. Também esteve com o ministro Hélio Costa (das Comunicações), acompanhando um grupo de entidades pró-conferência, que se mobilizaram a partir das preocupações expressas pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em suas várias iniciativas .

De 17 a 19 de setembro em Brasília, o Ministério das Comunicações em parceria com outros ministérios, o Senado Federal e a Agência Nacional de Telecomunicaçõ es realizou uma Conferência Nacional Preparatória de Comunicações, "Uma Nova Política para a Convergência Tecnológica e o Futuro das Comunicações". Do encontro, ficou marcada por unanimidade a conclusão de que um novo marco regulatório para as comunicações no Brasil é condição fundamental frente ao processo de convergência digital dos meios de comunicação. E que a Conferência Nacional de Comunicações será construída pela sociedade e o governo.

Classificação indicativa gerou polêmica

É dever dos pais ou do Estado, determinar a quais produtos as crianças e os adolescentes brasileiros assistirão? A publicação da Portaria 246/07 levou à fervura uma discussão que cozinhava em fogo brando desde 2000. A regulamentação da classificação indicativa das obras audiovisuais exibidas pelas emissoras de televisão trouxe um importante debate para a sociedade . Representantes do movimento pelo democratização da comunicação, entre os quais o FNDC, foram recebidos pelo Ministro da Justiça, Tarso Genro a quem entregaram uma Carta Aberta.

Governo apressa a digitalização do rádio

O sistema de digitalização do rádio se encaminha, ao que tudo indica, para uma definição pelo sistema americano de Rádio Digital AM Iboc (In Band on Channel), em fase de testes desde o ano passado. O FNDC repudia o processo, que não incluiu qualquer tipo de consulta. Em levantamento realizado em 2006, o FNDC estimou que a transição para o padrão proprietário Iboc poderá custar R$ 15,7 bilhões ao cidadão e mais de R$ 1,3 bilhão às emissoras . Apesar da escolha dada, os radiodifusores não se mostraram muito animados com os primeiros testes com o Iboc, por conta do delay. Tal como vai sendo conduzida, a digitalização do rádio no Brasil poderá aumentar a concentração dos meios de comunicação e o poder das grandes redes .

O I Fórum de Rádios Públicas aconteceu de 21 a 23 de novembro e teve na sua pauta a digitalização do setor.

Comissão revê concessões de rádio e TV

Ainda no primeiro semestre, a Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados, reinstalou a subcomissão especial para revisar as normas para concessão de rádio e de TV no país, formada por 14 parlamentares. A deputada Luiza Erundina (PSB-SP), presidiu a subcomissão, que propôs o acréscimo de um parágrafo ao artigo nº 222 da Constituição, estabelecendo: "não poderá ser proprietário, controlador, gerente ou diretor de empresa de radiodifusão sonora e de sons e imagens quem esteja investido em cargo público ou no gozo de imunidade parlamentar ou de foro especial". A emenda visa evitar o coronelismo eletrônico .

Em junho, publicamos neste e-Fórum um levantamento exclusivo revelando que 40% das televisões brasileiras operam com outorgas vencidas. A matéria constatava que a lentidão do Congresso contribui para caducidade das concessões e apontava algumas emissoras que não renovam sua concessão há duas décadas, e, mesmo assim, continuam funcionando.

Anatel completou 10 anos

Criada para ser um ente público com capacidade de mediar as relações na área de comunicação, a Agência Nacional de Telecomunicaçõ es (Anatel) comemorou seus 10 anos. As críticas do setor à agência, porém, são de que precisa retomar sua origem, recuperar sua história e modificar o próprio futuro .

CCS inerte

A renovação do Conselho de Comunicação Sócial (CCS), órgão auxiliar do Congresso Nacional não aconteceu, como deveria. O CCS reuniu-se pela última vez em dezembro de 2006, quando se extinguiu o segundo mandato. Sete conselheiros deveriam ter sido substituídos, uma vez que já completaram duas gestões no CCS, e os trabalhos retomados. Num ano cheio de decisões acerca das comunicações no país, o CCS não foi composto, não atuou .

Balanço 2007: as críticas de Gore e Blair à grande mídia

Quem lançar um olhar retrospectivo para o ano que chega ao fim verá que avaliações de membros da elite política do Primeiro Mundo sobre o papel da mídia na democracia e sobre sua experiência no trato com jornalistas merecem um registro especial.

Refiro-me especificamente ao livro Ataque à Razão, do ex-vice-presidente americano Al Gore, lançado em maio nos Estados Unidos; e ao discurso do então primeiro-ministro britânico Tony Blair, no Reuters Institute for the Study of Journalism da University of Oxford em junho.

Ambas as manifestações foram objeto de ligeiras análises na mídia brasileira à época, inclusive aqui, neste Observatório. O "tom" predominante dessas análises foi, naturalmente, de crítica. Em geral, desqualificam-se, sem mais, os autores com argumentos do tipo "trata-se de políticos ressentidos que não gostam de ser fiscalizados e/ou criticados pela mídia livre e independente".

É interessante observar, no entanto, como algumas críticas que elites das democracias liberais hegemônicas têm feito à grande mídia guardam semelhança com aquelas que elites latino-americanas também fazem à mídia no nosso continente. Vale a pena, portanto, considerar o que disseram e/ou escreveram.

Lembro que nada substituirá a leitura do livro e do discurso aqui comentados (que recomendo enfaticamente ao eventual leitor deste artigo). Faço apenas um resumo parcial salientando os pontos que interessam ao meu argumento.

A TV e o declínio da esfera pública

Al Gore está presente na mídia global pelo Oscar de seu documentário An Inconvenient Truth (EUA, 2006, dirigido por Davis Guggenheim) e por ter recebido o Prêmio Nobel da Paz, ambos decorrentes de seu envolvimento com a questão do aquecimento global e da proteção ao meio ambiente. Mas o Ataque à Razão (Editora Manole, 2007) trata de outro problema.

Identificado, sobretudo, como um duro ataque à administração de George W. Bush, o livro é construído em torno de um argumento sobre o declínio da esfera pública nos Estados Unidos e o progressivo desaparecimento da razão como base para as escolhas dos cidadãos e fundamento primeiro da democracia americana. E quais seriam, para Al Gore, os responsáveis por essa situação?

Al Gore associa a Era da Razão com o predomínio dos jornais na comunicação dos EUA. Desde que a televisão passou, há 45 anos, a ser o meio definidor da esfera pública, elementos fundamentais da democracia começaram a ser colocados de lado até que se chegou a uma "ameaça" derivada da maneira dominante como a comunicação se dá hoje entre os cidadãos estadunidenses. Ele aponta três "regras" que regem a constituição da esfera pública contemporânea e que a diferenciam da "era da palavra imprensa":

1. "Os fluxos de informação de larga escala de hoje deslocam-se, de maneira geral, em uma única direção. O mundo da televisão torna praticamente impossível aos indivíduos tomarem parte do que se passa por uma discussão nacional";

2. "O alto investimento de capital exigido para a propriedade e operação de uma estação de televisão e a natureza centralizada das redes de televisão de sinal aberto (…) levou à crescente concentração da propriedade por um número ainda menor de grandes corporações que hoje controlam de forma efetiva a maior parte da programação televisiva do país". E mais, "as divisões de jornalismo são vistas como um centro de lucro planejado de modo a gerar receitas e, às vezes, a validar os planos mais abrangentes da corporação que é proprietária da rede de televisão"; e

3. "é importante diferenciar a qualidade da vivacidade experimentada por telespectadores daquela experimentada por leitores (…) um indivíduo que passa quatro horas e meia assistindo à TV provavelmente terá padrão de atividade cerebral bem diferente daquele de um indivíduo que passa quatro horas e meia por dia lendo."

Para Al Gore, a necessária reconstrução do espaço público passa "pelo restabelecimento do discurso democrático genuíno, em que os indivíduos possam participar de maneira significativa" e "isso significa reconhecer que é impossível haver cidadãos bem informados sem que haja cidadãos bem conectados."

A esperança, portanto, estaria na internet e também na integração entre internet e televisão que está sendo experimentada, desde 2005, pela Current TV, criada pelo próprio Al Gore em sociedade com Joel Hyatt. Ela já pode ser vista em 51 milhões de domicílios, tanto nos EUA como na Inglaterra.

[Registre-se que a Current TV foi ganhadora do prêmio Emmy 2007 na categoria "serviço de televisão interativa"].

Blair e a "fera selvagem"

Já o discurso do ex-primeiro ministro Tony Blair (ver íntegra aqui, em inglês), ao contrário do livro de Al Gore, trata de forma direta da cobertura que a mídia inglesa faz da política e dos políticos.

Depois de elogiar a imprensa, reconhecer que ela é essencial em uma sociedade livre e dizer que seu discurso não é uma reclamação, mas sim um argumento, Blair afirma que "faz parte da liberdade poder fazer comentários sobre os meios de comunicação". Selecionei, então, alguns de seus comentários, na seqüência em que aparecem no texto:

"(…) [O público] é a prioridade, mas ele não é bem atendido pelo atual estado de coisas.

"Uma grande parte do nosso [do governante] trabalho hoje – fora das decisões realmente maiores, mas tão importante como qualquer outra coisa – é lidar com a mídia, sua dimensão, seu peso e sua hiperatividade constante. Em alguns momentos ela literalmente subjuga você.

"Nós gastamos muito tempo discutindo por que há tanto cinismo em relação à política e à atividade pública. (…) Minha consideração, depois de 10 anos, é que a verdadeira razão para o cinismo é precisamente o modo como os políticos e a mídia interagem. Nós, no mundo da política, porque temos medo de dizer as coisas, acabamos alimentando a noção de que somos os únicos responsáveis.

"O resultado [das mudanças no contexto em que a mídia opera neste século 21] é uma mídia, cada vez mais e perigosamente, impulsionada pelo `impacto´. Impacto é o que interessa. (…) Claro que a correção de uma reportagem conta. Mas ela é freqüentemente secundária ao impacto. É essa necessidade de devoção ao impacto que está destruindo os padrões de comportamento da mídia, jogando-os para baixo, fazendo da diversidade da mídia não a força que deveria ser, mas, acima de tudo, um impulso para o sensacionalismo.

"A audiência precisa ser capturada, mantida e suas emoções envolvidas. Qualquer coisa que seja interessante é menos importante do que algo que provoque irritação ou choque. As conseqüências disso são graves.

"Primeiro, escândalo e controvérsia se tornam muito mais importantes do que reportagens. Notícia raramente é notícia, a menos que gere controvérsia, tanto ou mais do que esclarecimento.

"Segundo, atacar um motivo é muito mais potente do que atacar um julgamento. Não é suficiente que alguém cometa um erro. Tem que ser venal. Conspiratório. O que cria o cinismo não são erros; são alegações de má conduta. Mas a má conduta é o que tem impacto.

"Terceiro, o medo de `ficar para trás´ significa que a mídia hoje, mais do que nunca, trabalha em bloco. Nesse modelo, ela funciona como uma fera selvagem, fazendo em pedacinhos pessoas e reputações. Mas ninguém se atreve a `ficar para trás´.

"Quarto, (…) a nova técnica é o comentário sobre a notícia que passou a ser tão importante ou mais importante do que a própria notícia. (…) Freqüentemente a mídia oferece a interpretação do que o político diz tanto quanto a cobertura do que o político realmente disse. Na interpretação, o que importa não é o significado do que o político disse, mas o que pode ser interpretado sobre o que ele disse. Isso leva [o governante] a gastar muita energia em refutar afirmações sobre os significados do que foi dito, que tem pouca ou nenhuma relação com o que se pretendeu dizer.

"Quinto, (…) a confusão entre notícia e comentário. Comentário é algo perfeitamente respeitável no jornalismo. Desde que seja separado. Opinião e fato deveriam ser claramente separados. A verdade é que uma grande parte da mídia hoje simplesmente não separa mais fato de opinião e se comporta como se isso fosse muito natural. Em outras palavras: isso não é exceção. É a rotina.

"A conseqüência final de tudo isso é que é raro encontrar equilíbrio na mídia hoje.

"Uma maneira precisa ser encontrada [para regular a relação mídia-atividade pública]. Realmente acredito que a relação entre vida pública e mídia se deteriorou, a ponto de exigir reparação. Esse dano corrói a confiança do país em si mesmo; ele solapa a avaliação do país, de suas instituições e, acima de tudo, reduz nossa capacidade de tomar as decisões corretas na direção do futuro."

Lições para o Brasil

Apesar das diferenças históricas existentes entre os sistemas de comunicação no Brasil, nos EUA e na Inglaterra, as opiniões de Gore e Blair envolvem questões de princípio e seus países são democracias referenciais, utilizadas de forma generalizada como modelo a ser seguido, inclusive nas comunicações.

Naturalmente, no Brasil não se pode falar, como faz Al Gore em relação aos EUA, de uma Era da Razão democrática fundada nos jornais. Só agora nossa população começa a atingir índices razoáveis de alfabetização, condição que Thomas Jefferson sempre considerou como necessária para que a imprensa universalizada desempenhasse sua função na democracia ("Onde a imprensa é livre, e todo homem é capaz de ler, tudo está seguro"). A nossa mídia impressa, ao contrário, continua elitizada como sempre foi. Por outro lado, não há qualquer dúvida sobre a televisão e sua unidirecionalidade como forma dominante de comunicação entre nós desde, pelo menos, a década de 1970.

Aqui também, como nos EUA, há uma concentração crescente da propriedade na mídia (não só na televisão) e o jornalismo "sitiado" padece das mesmas dificuldades decorrentes de sua vinculação com a comunicação comercial.

Já os duros comentários de Tony Blair sobre a cobertura que a mídia faz da política e dos políticos, sua relação com os governantes e as conseqüências implícitas para a governabilidade, poderiam certamente ter sido feitos por um governante brasileiro. Compromisso com o impacto da notícia, sensacionalismo, alegações infundadas, destruição de reputações, editorialização da notícia, desequilíbrio e necessidade de regulação existem na Inglaterra e no Brasil. Lá, como cá, "reparos" são necessários.

A esperança de uma comunicação interativa, integrando a internet e a televisão, restauradora de uma esfera pública democrática (Gore), resolveria as questões levantadas por Blair?

Será que a televisão já teria produzido no Brasil as conseqüências que Al Gore alega que ela causou na democracia estadunidense?

O modelo de TV digital que está sendo implantado entre nós – privilegiando os antigos grupos concessionários e impedindo o surgimento de novos – possibilitaria a solução desejada por Al Gore?

Certamente seria produtivo refletir sobre a realidade subjacente às questões levantadas por dois integrantes da elite dirigente de duas democracias consideradas maduras – e tão diferentes da nossa – que ousaram criticar publicamente a grande mídia em 2007.

O que está em jogo é, nada mais, nada menos, do que a liberdade e a democracia.