Arquivo da categoria: Análises

A renovação de concessões das emissoras de TV

Artigo publicado pelo ministro das Comunicações, Hélio Costa, em resposta ao texto "Concessões de TV. Receita para superar a pizza", de autoria de Gabriel Priolli. Para ler o texto que originou a resposta, clique aqui.

*

O artigo do jornalista Gabriel Priolli, publicado no dia 15 de janeiro de 2008, sob o título "Concessões de TV. Receita para superar a pizza" merece uma série de reparos em benefício dos leitores deste conceituado site.

Em que pese a experiência profissional do Sr. Priolli, principalmente na área de radiodifusão pública, discordamos veementemente de sua manifestação no artigo publicado, que não corresponde à realidade.

De fato, como noticiou o Sr. Priolli, em outubro último, pelo menos 15 outorgas de televisão das mais conhecidas redes do país venceram.

Esclarecemos, de início, que a instrução e o encaminhamento desses processos sempre foram conduzidos pelo Ministério das Comunicações. Como a Constituição da República determina que compete ao Congresso Nacional deliberar em último caso sobre as renovações, cabe à Presidência da República, através da Casa Civil, analisar cada processo antes de seu envio ao Legislativo.

Ressalto em seguida que a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados, através do Ato Normativo Número 1, de 2007, alterou os critérios e condições de renovação das outorgas no âmbito da Câmara.

Assim sendo, entendeu por bem a Casa Civil que deveria devolver os processos de outorga ao Ministério das Comunicações para atendimento das novas exigências da Câmara e outras previstas na Constituição. Na prática, muitas das exigências já estavam atendidas nos processos. Outras foram incorporadas ou atualizadas.

Com isso, os processos estão sendo instruídos a fim de atenderem a todas as exigências e serem encaminhados novamente para a Presidência e posteriormente ao Congresso Nacional.

Manifestação ingênua

É importante esclarecer que o Ministério das Comunicações sempre seguiu rigorosamente todas as disposições do decreto de renovação (88.066/83) e já está em fase adiantada, no próprio Ministério das Comunicações, proposta de atualização dessa norma, a fim de compatibilizá-la com as novas exigências.

Assim, não vemos porque o jornalista se espanta pois não apenas as televisões mencionadas em seu artigo, mas todas as TVs e rádios do país deverão, a partir de agora, observar os mesmos critérios para terem renovadas suas outorgas, inclusive educativas e comunitárias, no que couber.

Basta uma simples leitura da norma e um pouco de conhecimento para se saber que não é mera formalidade uma renovação. As que não cumprem todas as exigências simplesmente não são renovadas ou têm declarada sua perempção.

Não é verdade que qualquer emissora tenha dito ao Ministério que não havia condições de reunir as documentações exigidas. Muito antes pelo contrário! Várias se dispuseram a fazê-lo o mais rapidamente possível. Não há, assim, qualquer protelação. Diariamente, o Ministério das Comunicações recebe vários protocolos nesse sentido. Aliás, o Ministério não pertence a quem quer que seja como insinuou levianamente o Sr. Priolli. É um órgão sério, composto por servidores dedicados e que merecem um mínimo de respeito.

O Ministério das Comunicações repudia terminantemente a expressão "jeitinho" também mencionada no artigo, pois não pode e não vai aceitar esse tipo comentário irresponsável. Foram feitos pareceres e debates jurídicos densos e ricos entre a Casa Civil e esta Pasta que conduziram a entendimentos técnicos e formais. Tudo oficial, juntado nos processos.

Chega a ser ingênua a manifestação de que "as emissoras terão apenas de declarar e não comprovar", pois uma declaração é um documento comprobatório válido, em que o declarante responde legalmente por suas informações. Não é um papel vazio.

Departamento atuante

Como dito anteriormente, algumas das exigências já estão previstas em lei, outras dependem de uma melhor tratativa que compete apenas ao Poder Legislativo. Uma simples leitura dos pareceres produzidos esclareceria o jornalista deixando-o melhor informado.

O Ministério das Comunicações nos últimos anos vem adotando medidas duras e severas que contradizem as maldosas insinuações do Sr. Priolli de favorecimento à radiodifusão.

Só no final do ano passado, foram encaminhadas pela primeira vez cerca de 20 processos de outorga para cassação pelo Judiciário, como mais uma vez reza a Constituição. Esse fato é inédito e histórico. O Ministério também adotou uma postura rígida nas transferências de outorga, inclusive que envolvam retransmissoras. Tem combatido decisões judiciais que sustentam rádios e TVs ilegalmente no ar e alterações de características técnicas irregulares e sem fundamentos.

Finalmente, essa gestão, em especial, tem tido uma atuação exemplar em relação à outorga de emissoras educativas que não atendam ao que diz a lei, ou seja, transmissão de palestras, conferências, aulas e debates. O art. 13 do Decreto-lei n.236/67 é claro quando diz que a "televisão educativa não tem caráter comercial, sendo vedada a transmissão de qualquer propaganda, direta ou indiretamente, bem como o patrocínio dos programas transmitidos, mesmo que nenhuma propaganda seja feita através dos mesmos". O Minicom tem exigido das Fundações um vínculo formal e bem amarrado com instituições de ensino público a fim de atender o espírito da lei.

O Sr. Gabriel Priolli, por exemplo, integra a Diretoria Executiva na função de Coordenador de Núcleos de Conteúdo e Qualidade da Fundação Padre Anchieta, justamente uma das TVs educativas que teve sua renovação vencida no final do ano passado, junto com as grandes redes, ou seja, na mesma condição das que critica. Certamente, quando da apresentação dos novos documentos a Fundação Padre Anchieta, responsável pela TV Cultura de São Paulo, apresentará todas as declarações de que cumpre a legislação, inclusive a do art. 13. Certamente verdadeiras.

Consequentemente, tanto a Fundação Padre Anchieta quanto qualquer concessionário não pode fazer o que quer com suas outorgas como foi dito, pois a prestação de contas acontece de verdade, mais cedo ou mais tarde. Além do mais, o Ministério tem um departamento de fiscalização e apuração atuante. E não é o único órgão de fiscalização. A comunicação social passa pela atribuição de outros entes intra e extra-governamentais, cada qual com sua competência.

Termos legais

O jornalista exagera de forma desrespeitosa e confessadamente irônica ao falar de "festa" e, principalmente, "pizza". Promove uma série de opiniões pessoais sobre conteúdo e programação, fazendo afirmações sobre legislação sem apontá-la especificamente.

A grandeza disso tudo está justamente na possibilidade do debate. Muitas vezes são feitas manifestações pouco fundamentas como a do Sr. Priolli. Outras não. São fruto de informações precisas e de uma pesquisa bem-feita.

Contudo, todas servem para enriquecer a discussão. O Ministério das Comunicações tem participado diuturnamente de diversos fóruns espalhados no país, tendo juntamente com o Congresso Nacional promovido o primeiro grande passo para uma Conferência Nacional de Comunicação, através de seminário preparatório que organizou no segundo semestre do ano passado. Isso sim é democracia e cidadania.

Por fim, gostaríamos de esclarecer que todos os processos de renovação podem ser acompanhados nos termos legais no Ministério, inclusive pelo site www.mc.gov.br e certamente no Congresso Nacional, onde serão em breve submetidos à apreciação do Congresso brasileiro.

Falta regulamentação para normas da Comunicação Social

Neste ano a Constituição de 1988 completará 20 anos. Desde sua entrada em vigor assistimos a múltiplas modificações de seu texto, mediante 53 emendas constitucionais.

Uma das primeiras alterações com reflexos no setor de Comunicação Social foi a Emenda Constitucional 8/1995 que modificou o inciso XII do artigo 21 da CF, para separar a disciplina dos serviços de telecomunicações em face dos serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens. Por sua vez, houve a Emenda Constitucional 36/2002 que tratou da propriedade das empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens, bem como permitiu a entrada de capital estrangeiro.

A par das apontadas emendas constitucionais, constata-se que importantes dispositivos relativos à Comunicação Social não foram regulamentados pelo Congresso Nacional. Vale dizer, o órgão legislativo não respeitou integralmente a vontade normativa da Constituição do Brasil, incorrendo em estado de omissão inconstitucional.

Primeiro, não foi ainda disciplinado no âmbito legislativo o parágrafo 3º do artigo 220 da Constituição que exige a edição de lei federal para “estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no artigo 221”. Acredita-se que é imprescindível um estatuto jurídico que contenha o catálogo de direitos dos usuários e consumidores dos serviços de televisão.

Segundo, não houve a edição de norma regulamentando o dispositivo que coíbe o monopólio e oligopólio nos meios de comunicação social, previsto no parágrafo 5º da CF. A regulamentação da referida norma é essencial para a defesa do pluralismo das fontes de informação e, conseqüentemente, para a consolidação do Estado Democrático de Direito em nosso país.

Terceiro, não foi aprovada uma lei disciplinando os princípios concernentes à produção e a programação das emissoras de rádio e televisão, conforme dispõe o artigo 221 da CF. Com isso, embora possa ser defendido que tais princípios sejam auto-aplicáveis, na prática, fica difícil a sua concretização sem a existência de uma lei que defina objetivamente o seu conteúdo mais detalhado.

Quarto, apesar de a Emenda Constitucional 36/2002 ter introduzido no ordenamento jurídico brasileiro uma nova noção, na medida em que alterou o artigo 222, qual seja, a expressão “meios de comunicação social eletrônica”, até o momento, não existe especificação legislativa a respeito de seu significado. Assim, na falta de clareza quanto ao alcance do apontado conceito, pairam dúvidas quanto à incidência dos princípios da produção de programação das emissoras de rádio e televisão.

Em outras palavras, em razão do fenômeno da convergência tecnológica, os sinais de televisão podem ser transmitidos por diversas formas técnicas: radiodifusão, cabo, satélite, MMDS, internet. Portanto, até que ponto os referidos princípios aplicam-se, por exemplo, à transmissão de sinal de televisão por internet ou por aparelhos celulares?

É fundamental uma nova lei geral de comunicações que discipline esta e outras questões importantes relativas ao marco regulatório dos serviços de televisão, eis que a tradicional Lei 4.117/62, alterada pelo Decreto-Lei 236/67, que ainda regula o setor de radiodifusão, está obsoleta do ponto de vista tecnológico, econômico, social e constitucional.

Quinto, a Constituição contém um princípio importante que garante a estruturação policêntrica do sistema de comunicação social consubstanciado no princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal, previsto em seu artigo 223. Contudo, apesar de sua força normativa, ainda não foi implantada em nosso país uma sólida televisão pública, inclusive não há a previsão de televisões comunitárias no sistema de radiodifusão.

De fato, a televisão comercial possui a hegemonia no cenário audiovisual brasileiro. Contudo, na prática, sequer é regulada, eis que inexistente um órgão regulador e um marco regulatório atualizado que a discipline.

Por sua vez, a televisão estatal foi criada pela MP 398/2007, estando em discussão no Congresso Nacional. Alerte-se para o fato de que, embora denominada de televisão pública, na verdade, trata-se de uma televisão estatal, eis que criada, mantida, operada e controlada pelo Estado.

Uma verdadeira televisão pública é aquela instituída, mantida, gerida e controlada pela sociedade civil e não pelo Estado. Lembre-se que existe a televisão pública nos serviços de televisão a cabo, porém não há no sistema de radiodifusão.

No sistema de radiodifusão não existe uma televisão pública, razão pela qual ela precisa ser criada pelo Congresso Nacional a fim de permitir a entrada de novos operadores públicos (associações de cidadãos e (ou) organizações não-governamentais) que não se confundem com o setor estatal. Com isso será atendido o princípio do pluralismo das fontes de informação.

Sexto, uma outra proposta reside na alteração do artigo 223 de modo a retirar a competência do Poder Executivo e do Congresso Nacional quanto ao ato de outorga e renovação de concessões e permissões do serviço de radiodifusão, atribuindo a uma futura agência reguladora independente. Esta deverá promover a efetiva fiscalização dos serviços de televisão em favor da realização dos direitos fundamentais, tais como: à comunicação, à educação, à cultura, à liberdade de expressão artística, etc.

Sétimo, o Conselho de Comunicação Social, previsto no artigo 224 da CF, apesar de ter prestado relevantes trabalhos, atualmente encontra-se paralisado, não cumprindo com sua missão institucional de servir como órgão auxiliar do Congresso Nacional em termos de comunicação social.

Enfim, observa-se que o constituinte fez um bom trabalho, o que não o isenta, por óbvio, de críticas, inclusive de eventuais ajustes no texto constitucional. Porém, ainda falta o Congresso Nacional cumprir com sua parte institucional, resolvendo as omissões acima relatadas, a fim de executar a força normativa da Constituição do Brasil e realizar os direitos fundamentais atrelados, principalmente, ao serviço de televisão. Caso continue não cumprindo com essas relevantes tarefas, cabe às partes interessadas e legitimadas da perspectiva constitucional o ajuizamento de ações diretas de inconstitucionalidade por omissão.

A concentração e o futuro da mídia

Neste mês de janeiro, há oito anos, os grandes veículos de mídia dos EUA festejaram, em vez de apenas noticiarem, a surpreendente compra da Time Warner Inc pela America Online (AOL) por uma cifra estimada então entre US$ 156 bilhões (cálculo do "Wall Street Journal") e US$ 183 bilhões (do "Washington Post"). Para os veículos, aquela fusão da velha mídia com a nova era a receita do futuro.

A cobertura foi totalmente acrítica e quase apenas congratulatória não fossem as reservas dos que temiam pelo futuro do jornalismo independente e da própria liberdade de expressão. Entre os poucos críticos, foram citados o professor Robert McChesney, da Universidade de Illinois, e um colunista do "Washington Post", Howard Kurtz, que também fazia programa na CNN (do império Time Warner).

O "New York Times" dedicou à transação, considerada a maior da história, nada menos de 12 textos, além de gráficos. O "Los Angeles Times", oito. O assunto foi manchete de todos os grandes jornais do país, que também deram à cobertura um tom promocional, com relatos atraentes e destaque especial para os personagens centrais da operação – Steve Case da AOL e Gerald Levin da Time Warner.

Valor igual ao PIB do México

Nos meses seguintes o governo daria sua aprovação final com base nas leis do país e regulamentos da área de comunicação. Esperava-se que a transação estabelecesse padrões para as corporações do ramo no futuro A surpresa maior era a companhia mais nova comprar a mais antiga e não o contrário. Especulava-se que viriam mais transações semelhantes, mas não veio nenhuma fusão com as mesmas caracteristicas.

Na mídia convencional, eram candidatas naturais a isso gigantes da velha mídia (TV, entretenimento) como a Disney-ABC, a Viacom (que comprara recentemente a CBS), a News Corp de Rupert Murdoch (que já tinha criado a Fox News); na indústria tecnológica e de telecomunicações, a Microsoft (avaliada então em US$ 579 bi), a AT&T, a MCI Worldcom; e na nova geração internet, Yahoo, Amazon.com, eBay.

Devido às grandes dívidas assumidas pela nova companhia resultante da transação, a AOL Time Warner sabia de um risco. Poderia passar décadas antes de começar a registrar lucros. Ela tinha à frente Steve Case como chairman, Gerald Levin como CEO (chief executive officer) e Ted Turner (criador da CNN e outras redes, compradas anteriormente pela Time Warner) como vice chairman.

Em compensação, a avaliação feita pela seção de economia do "New York Times" era de que a nova companhia seria a quarta maior do país, com um valor em ações igual ao Produto Interno Bruto de um país como o México. Apesar do fascínio exercido pela transação, o "Times" publicou ainda análise de especialista em mídia, Felicity Barringer, sobre possíveis efeitos negativos para o jornalismo do futuro.

Mau jornalismo é bom negócio

Citando o livro "Rich media, poor democracy", de Robert McChesney, Felicity Barringer referiu-se à previsão dele (e de outros) de que boa parte de tudo o que as pessoas viam, liam e ouviam nos EUA estaria sob o controle de apenas oito companhias – Time Warner, Disney, Sony, General Electric (dona da NBC), News Corp, Seagram-Universal (música e filmes), Viacom e Berteslmann.

Sobre a nova fusão, McChesney disse a Barringer que "a tradicional autonomia do jornalismo, que se supõe ter existido das décadas de 1940 e 1950 à de 1980, passou a ficar sob ataque". Para ele, tinha virado negócio. "Não se trata de ideologia. É que o bom jornalismo é mau negócio. E o mau jornalismo, lamentavelmente, às vezes é bom negócio."

A internet, segundo McChesney, "estava sendo levada inteiramente para o círculo da mídia comercial das corporações". Mesmo havendo na internet um bilhão de websites a contemplar todos os pontos de vista, disse ele, ela não daria origem a uma nova geração de empresas de mídia comercialmente viáveis. "As poucas que ainda sobram estão destinadas a serem compradas", assinalou.

No Congresso, o senador democrata de mais alto nível na Comissão de Justiça, Patrick Leahy, também manifestou dúvidas sobre aquela transação e as que ainda podiam vir na mesma linha. "A grande promessa da internet era de que as pessoas teriam ampla variedade de fontes e opções. O que temos de fazer é nos certificarmos de que a informação não será afunilada e controlada apenas por umas duas ou três fontes".

Murdoch à frente de todos

No "Washington Post", o colunista Kurtz estendeu-se sobre a questão dos inevitáveis conflitos de interesse em corporações gigantes como a AOL Time Warner. "Virtualmente qualquer empresa sobre a qual se vai escrever alguma reportagem ou é uma parte da nova corporação ou então uma competidora dela", afirmou, citando o editor em Washington de uma revista especializada em economia.

A transação AOL-Time Warner, segundo Kurtz, fazia com que Steve Case, cuja única experiência jornalística tinha sido no jornalzinho da escola, fosse transformado de repente em um grande imperador da mídia. "Como aconteceu antes com Jack Welch da GE, Sumner Redstone da Viacom e Michael Eisner da Disney, a fusão deixou a cargo dele algumas das mais conhecidas organizações de mídia do mundo".

Apenas três anos depois da transação, a bolha da Internet tirou o poder de Case e ainda removeu as três letras, AOL, do nome da companhia, agora Time Warner outra vez. Depois Levin e Turner perderam os cargos, Welch deixou a GE e Eisner a Disney. Os impérios de mídia que tudo controlam, antes nove, são hoje cinco, com a News de Murdoch acima do resto, inflada pela Dow Jones-"Wall Street Journal".

O preconceito contra Lula no jornalismo brasileiro

Um dia encontrei Lula, ainda no Instituto Cidadania, empolgado por um livro de Câmara Cascudo sobre os hábitos alimentares dos nordestinos. Lula saboreava cada prato mencionado, cada fruta, cada ingrediente. Lembrei-me desse episódio ao ler a coluna recente do João Ubaldo Ribeiro, "De caju em caju", em que ele goza o presidente por falar do caju, "sem conhecer bem o caju." Dias antes, Lula havia feito um elogio apaixonado ao caju, no lançamento do Projeto Caju, que procura valorizar o uso da fruta na dieta do brasileiro.

"É uma pena que o presidente Lula não seja nordestino, portanto não conheça bem a farta presença sociocultural do caju naquela remota região do país…", escreveu João Ubaldo. Alegou que Lula não era nordestino porque tinha vindo ainda pequeno para São Paulo. E em seguida esparramou-se em citações sobre o caju, para mostrar sua própria erudição. Estou falando de João Ubaldo porque, além de escritor notável, ele já foi um grande jornalista.

Outro jornalista ilustre, o querido Mino Carta, escreveu que Lula "confunde " parlamentarismo com presidencialismo. ."Seria bom", disse Mino, "que alguém se dispusesse a explicar ao nosso presidente que no parlamentarismo o partido vencedor das eleições assume a chefia do governo por meio de seu líder…" Essa do Mino me fez lembrar outra ocasião, no Instituto Cidadania, em que Lula defendeu o parlamentarismo. Parlamentarista convicto, Lula diz que partidos são os instrumentos principais de ação política numa democracia.

Pelo mesmo motivo Lula é a favor da lista partidária única e da tese de que o mandato pertence ao partido. Em outubro de 2001, o Instituto Cidadania iniciou uma série de seminários para o Projeto Reforma Política, que Lula fazia questão de assistir do começo ao fim.Desses seminários resultou o livro de 18 ensaios, Reforma Política e Cidadania, organizado por Maria Victória Benevides e Fábio Kerche e prefaciados por Lula.

Se pessoas com a formação de um Mino Carta ou João Ubaldo sucumbiram à linguagem do preconceito, temos mais é que perdoar as dezenas de jornalistas de menos prestígio que também dizem o tempo todo que "Lula não sabe nada disso, nada daquilo". Acabou virando o que em teoria do jornalismo chamamos de "clichê". É muito mais fácil escrever usando um clichê porque ele sintetiza idéias com a quais o leitor já está familiarizado, de tanto que foi repetido.

O clichê estabelece de imediato uma identidade entre o que o jornalista quer dizer e o que o leitor quer compreender. Por isso, o clichê do preconceito "Lula não entende" realimenta o próprio preconceito. Alguns jornalistas sabem que Lula não é nem um pouco ignorante mas propagam essa tese por malandragem política. Nesse caso, pode-se dizer que é uma postura contrária à ética jornalística, mas não que seja preconceituosa. Aproveitam qualquer exclamação ou uso de linguagem figurada de Lula, para dizer que ele é ignorante.

"Por que Lula não se informa antes de falar?", escreveu Ricardo Noblat, quando Lula disse que o caso da menina presa junto com homens no Pará "parecia coisa de ficção" . Quando Lula disse, até com originalidade, que ainda faltava à política externa brasileira achar "o ponto G", William Waack escreveu : "Ficou claro que o presidente brasileiro não sabe o que é o ponto G".

Outra expressão preconceituosa que pegou é "Lula confunde". A tal ponto que jornalistas passam a usar essa expressão para fazer seus próprios jogos de palavras. "Lula confunde agitação com trabalho", escreveu Lúcia Hipólito. Ou usam o confunde para desqualificar uma posição programática do presidente com a qual não concordam. "O presidente confunde choque de gestão com aumento de contratações", diz José Pastore. Confunde coisa alguma. Os neoliberais querem reduzir o tamanho do Estado, o presidente quer aumentar. Quer contratar mais médicos, professores, biológos para o Ibama. É uma divergência programática.

Carlos Alberto Sardenberg diz que Lula confundiu a Vale com uma estatal. "Trata-a como se fosse a Petrobrás, empresa que segundo o presidente não pode pensar só em lucro, mas em, digamos, ajudar o Brasil". Esse caso é curioso porque no parágrafo seguinte o próprio Sardenberg pode ser acusado de confundir as coisas, ao reclamar da Petrobrás contratar a construção de petroleiros no país, apesar de custar mais. Não tem confusão nenhuma, assim como Lula também não fez confusão. Lula acha que tanto a Vale quanto a Petrobrás tem que atender interesses nacionais. Sardenberg acha que ambas devem pensar primeiro na remuneração dos acionistas.

A linguagem do preconceito contra Lula sofisticou-se a tal ponto que adquiriu novas dimensões entre elas a de que Lula tem até problemas de aprendizagem ou compreensão da realidade. Ora, justamente por ter tido pouca educação formal, Lula só chegou onde chegou por captar rapidamente novos conhecimentos, além de ter memória de elefante e intuição.

Mas na linguagem do preconceito, "Lula já não consegue mais encadear frases com alguma conseqüência lógica", como escreveu o Paulo Ghiraldelli , apresentado como filósofo na página de comentários importantes do Estadão. Ou, como escreveu Rolf Kunz, jornalista especializado em economia e também professor de filosofia: "Lula não se conforma com o fato de, mesmo sendo presidente, não entender o que ocorre à sua volta".

Como nasceu a linguagem do preconceito? As investidas vêm de longe. Mas o predomínio dessa linguagem na crônica política só se deu depois de Lula ser eleito presidente, e a partir de falas de políticos do PSDB e dos que hoje se autodenominam Democratas. "O presidente Lula não sabe o que é pacto federativo", disse Serra, no ano passado. E continuam a falar: "O presidente Lula não sabe distinguir a ordem das prioridades", escreveu Gilberto de Mello. "O presidente Lula em cinco anos não aprendeu lições básicas de gestão", escreveu Everardo Maciel na Gazeta Mercantil.

A tese de que Lula confunde presidencialismo com parlamentarismo foi enunciada primeiro por Rodrigo Maia, logo depois por César Maia, e só então repetido pos jornalistas. Um deles, dias depois dessas falas, escreveu que "só mesmo Lula, que não sabe a diferença entre presidencialismo e parlamentarismo, pode achar que um governante ter a aprovação da maioria é o mesmo que ser uma democracia no seu sentido exato".

O preconceito é juízo de valor que se faz sem conhecer os fatos. Em geral é fruto de uma generalização ou de um senso comum rebaixado. O preconceito contra Lula tem pelo menos duas raízes: a visão de classe, de que todo operário é ignorante, e a supervalorização do saber erudito, em detrimento de outras formas de saber, tais como o saber popular ou o que advém da experiência ou do exercício da liderança. Também não aceitam a possibilidades das pessoas transitarem por formas diferentes de saber.

A isso tudo se soma o outro preconceito, o de que Lula não trabalha. Todo jornalista que cobre o Palácio do Planalto sabe que é mentira, que Lula trabalha 12 a 14 horas por dia. Mas ele é descrito com freqüência por jornalistas como uma pessoa indolente.

Não atino com o sentido dessa mentira, exceto se o objetivo é difamar uma liderança operária, o que é, convenhamos, uma explicação pobre. Talvez as elites e com elas os jornalistas não consigam aceitar que o presidente, ao estudar um problema com seus ministros, esteja trabalhando, já que ele é "incapaz de entender" o tal problema. Ou achem que, ao representar o Estado ou o país, esteja apenas passeando, porque onde já se viu um operário, além do mais ignorante, representar um país?

Ação de fiéis da Universal contra a Folha beira a má-fé

No dia 15 de dezembro passado, a Folha de S.Paulo publicou um artigo intitulado "Universal chega aos 30 anos com império empresarial", trazendo em seu teor informações sobre o poder econômico da Igreja Universal do Reino de Deus. Nesse sentido, nenhuma novidade. A simples existência de templos em todo país é prova disso — por maior que seja a fé, a manutenção dos locais de culto exige gastos vultosos. Também não é segredo a aplicação do dízimo dos fiéis nas atividades comerciais da Universal. Emissoras de televisão e de rádio, dentre outros empreendimentos, constituem o patrimônio angariado ao longo das últimas três décadas.

Em seu texto, a jornalista Elvira Lobato expôs dados coletados em uma pesquisa criteriosa, levantando questionamentos apenas sobre atividades administrativas do grupo, sem qualquer ofensa direta ou calúnia. Entre os pontos discutidos, há informações sobre algumas empresas administradas pela Universal, incluindo uma companhia de táxi aéreo, sediada em Sorocaba (SP). Sobre os fiéis, nada foi dito. Não houve, em nenhum momento, qualquer insinuação que colocasse em xeque a honestidade daqueles que freqüentam os cultos evangélicos, tampouco foi sugerida a ingenuidade do fiel que contribui através do dízimo.

O silêncio da Igreja Universal após a publicação demonstra, claramente, a inocuidade da matéria. Entretanto, vinte e oito fiéis espalhados pelo país, em atitude que beira às margens da má-fé e em completa ilegitimidade, pois não foram citados pela notícia, deram início a uma batalha judicial contra a Empresa Folha da Manhã S.A., que edita o jornal Folha de S. Paulo. Em seus argumentos, reclamam dos adjetivos que lhe foram imputados por seus semelhantes, logo após a publicação da matéria, tais como “tonto” e “safado”.

Nos últimos anos, em razão da ampliação do instituto da responsabilidade civil aos direitos não tutelados no passado, o volume das ações de indenização no país cresceu consideravelmente. Apesar do congestionamento causado ao Poder Judiciário, a ascensão vertiginosa do número de ações reparatórias deve ser considerada como uma vitória. A população, que em outros tempos amargava prejuízos por não confiar na Justiça, hoje busca a ressarcimento das diversas ofensas sofridas no cotidiano, contribuindo para o alargamento do conceito do mero dissabor.

Todavia, no que diz respeito aos seus princípios, a responsabilidade civil pouco flexibilizou na atualidade. Mesmo na responsabilidade objetiva, deve existir um dano comprovado e o nexo causal entre a ofensa e o ofendido. O motivo é simples: com a isenção destes “filtros”, a indenização perde a sua função, deixando de ser um instrumento de reparação e/ou compensação.

No caso aqui tratado, além do dano e do nexo de causalidade, deve estar presente a culpa do ofensor [1]. Quanto ao primeiro pilar, as supostas vítimas o vêem configurado nos comentários maliciosos feitos por pessoas de sua convivência. Contudo, ingenuidade dizer que o preconceito existente contra as igrejas evangélicas e seus freqüentadores surgiu somente após a publicação da notícia na Folha de S.Paulo. Apesar do crescimento da religião no país, não são poucos os que não se identificam com os procedimentos da igreja.

Ainda que o dano fosse comprovado, a barreira do nexo de causalidade demonstra ser instransponível. Por mais que alguns fiéis tenham sido ofendidos pelo teor da notícia, não há qualquer vínculo entre a publicação e o dano. Como foi dito anteriormente, o texto trata de questões administrativas da Universal, sem qualquer menção aos fiéis. É natural que o freqüentador fique indignado com notícias que levantem suspeitas sobre a igreja, mas isso não o legitima a litigar em prol da ofendida. A ofensa pessoal também não merece prosperar. O texto não trata dos fiéis, nem indiretamente. Foge ao bom senso culpar a matéria por interpretações adversas dadas por alguns leitores do jornal.

[1] “O dano moral, reparável pelo exercício da liberdade de informação, tem fundamento na violação de direito ou no prejuízo mediante dolo ou culpa” (RT 404/140).