Arquivo da tag: Publicado originalmente na Revista do Brasil

A morte súbita da Lei de Imprensa

O Brasil está sem Lei de Imprensa. O Supremo, sem esperar pelo Congresso, revogou 20 de seus 27 artigos, entre os quais três dos mais importantes – 20, 21 e 23, que punem crimes de injúria, calúnia e difamação. Essa foi a principal vitória da poderosa campanha dos donos da mídia contra a Lei de Imprensa, apoiados por alguns jornalistas de sua confiança e até por entidades que dizem defender a liberdade de imprensa.

A campanha é tão pesada que o senador Expedito Filho (PR-RR) retirou seu projeto de lei que ampliava as penas da Lei de Imprensa para crimes contra a honra praticados pela internet. Sentiu-se intimidado pela acusação de “atentar contra” a liberdade. Este é mote da campanha: taxar de “atentado contra a liberdade de imprensa” qualquer tentativa de enquadrar os abusos da mídia. Mesmo abusos contra a honra. É a extensão das teses neoliberais para a esfera da moral.

Sabemos que uma única manchete acusatória, mesmo falsa, destrói a mais sólida reputação, de pessoas, de empresas e até de marcas. Imaginem isso repetido 10, 20 vezes, um mês inteiro? Chama-se a essa estratégia editorial de “jornalismo de campanha”. A vítima é esmagada, tenha ou não cometido alguma malfeitoria. É condenada sumariamente pelas regras da mídia, não pelas regras da Justiça, que pressupõem a presunção da inocência, a prova da verdade, o contraditório e o direito de defesa. Assim foram as campanhas midiáticas do Estadão contra o Bolsa Família, da Veja contra Zé Dirceu, da Folha contra a Força Sindical. O objetivo é demolir reputações, não necessariamente informar a verdade e denunciar crime ou irregularidade, funções legítimas e insubstituíveis da imprensa.

O “jornalismo de campanha” surgiu há mais de 150 anos, quando a introdução das rotativas obrigou os novos “barões” da mídia a vender muito mais jornais para compensar os custos. A famosa rede Hearst de jornais lançou muitas campanhas, inclusive contra os abusos das ferrovias. Assim também legitimou a imprensa como porta-voz dos interesses da sociedade. Nascia ali o “poder midiático”, a percepção dos donos de jornais de que podiam influir no destino de pessoas, partidos, instituições e do próprio país.

Quando a Folha defendeu as Diretas Já, nos anos 1980, causa nobre e de interesse geral, elevou o status do jornal. Também defendem interesses gerais as campanhas do Estadão pela recuperação do Rio Tietê, pela preservação da Mata Atlântica, assim como a corajosa série de reportagens de fevereiro contra “Os matadores do 18º”. O jornal sacudiu a cúpula da Polícia Militar amedrontada frente ao poder de uma quadrilha de exterminadores, formada por policiais do 18º Batalhão da Capital, suspeita de executar o coronel da PM José Hermínio Rodrigues, que os estava investigando.

A mais típica campanha dos últimos meses foi a d’O Globo, em dezembro, contra o Estatuto da Criança e do Adolescente. Foram dez grandes reportagens, todas com chamadas na primeira página, algumas de página inteira e fotos de seis colunas. O objetivo verdadeiro estava oculto, mas todos os títulos e todo o tratamento eram direcionados para induzir o leitor a apoiar a redução da maioridade penal. Por exemplo: “Dos menores infratores, 80% fogem sem cumprir a pena”.

O Estadão lançou uma forte campanha em fevereiro contra a devastação da Amazônia. Foram nove grandes matérias, muitas delas com fotos gritantes e chamadas de seis colunas na primeira página. Mas o alvo das denúncias era mais o poder público do que os grupos econômicos que enriquecem com a extração ilegal de madeira e as queimadas para plantio de monoculturas, como a soja. Há muitas campanhas de jornais contra políticas públicas e contra leis, como essa pela derrubada da Lei de Imprensa, ou denunciando omissões do Estado. Mas poucas contra os abusos do poder econômico. Imaginem hoje uma campanha do Estadão ou da Folha contra as tarifas extorsivas dos pedágios em São Paulo? Nem pensar, depois que esses jornais entraram com tudo nas campanhas pela privatização das rodovias.

Há também campanhas de jornais para chantagear e intimidar. Era assim que Assis Chateaubriand pressionava o conde Matarazzo a dar dinheiro para o Museu de Arte de São Paulo e ao mesmo tempo intimidava os demais empresários. Como o gângster que manda dar uma surra no lojista que se recusa a pagar proteção, para intimidar os outros lojistas.

A campanha contra a Lei de Imprensa foi deflagrada depois que a Igreja Universal procurou os tribunais para se defender contra matérias publicadas pela Folha que considerava difamatórias e caluniosas. A Folha passou a acusar a Igreja Universal de “litigância de má-fé”, por abrir ações judiciais simultâneas em diversas partes do país. O Código Penal diz que existe litigância de má-fé quando uma das partes “altera a verdade dos fatos”, ou “procede de modo temerário durante o processo”. Isso pode se aplicar quase como uma luva à própria Folha, quando a reportagem de Elvira Lobato diz, sem se limitar aos fatos, que “uma hipótese é que os dízimos dos fiéis sejam esquentados em paraísos fiscais”. Uma coisa é suspeitar de uma irregularidade e investigá-la; outra é dar a uma suspeita o caráter de fato.

Esquentar dinheiro é crime. Ao lançar essa ilação, sem provas, a Folha pode ter cometido crimes de calúnia (acusar indevidamente alguém de cometer um crime capitulado em lei) e de difamação. Cabe à Justiça julgar se a Folha cometeu esses crimes. O jornal alega que a Igreja Universal quer intimidá-lo. Pode até ser verdade. Mas o jornal, por sua vez, não está intimidando a Justiça ao insistir em tratar em suas páginas de um litígio em que é parte interessada e ainda está sub judice?

Ilações pesadas também foram lançadas repetidamente contra Paulo Pereira da Silva, o deputado Paulinho (PDT-SP), e a Força Sindical, sempre sem provas de que algum crime foi cometido. Apenas ilações. Por que a Folha pode repetir uma ilação depois da outra contra a Força Sindical, e a Força Sindical não pode abrir processos, um atrás do outro, contra o jornal?

Um dos argumentos falaciosos contra a Lei de Imprensa é que este é o país em que mais se processam jornalistas. Isso acontece porque o Brasil é o país em que os jornalistas mais caluniam e difamam. Acusar virou padrão do nosso jornalismo de denúncia. Às vezes, simplesmente xingam, o que se chama crime de injúria. Leiam este parágrafo típico desse padrão de linguagem. Diz o jornalista sobre Paulo Pereira: “A central presidida por Paulinho mistura política retrógrada com a negação da política”. Até aí é um juízo de valor que o jornalista tem o direito de expressar. Mas logo em seguida ele parte para o insulto: “Este pequeno Lula paraguaio agora anuncia entre palavrões que vai entupir o Judiciário de ações contra jornalistas da Folha….” Numa única frase o jornalista insultou Lula, ao usá-lo como referência negativa, e os paraguaios, que não têm nada a ver com a história. E insultou o próprio Paulo Pereira.

São esses os jornalistas que querem imunidade. Alegam que para crimes de injúria, calúnia e difamação basta o Código Penal. Mas como diz o jurista Miguel Reale, na própria Folha, “o ataque à honra difundido em veículo de comunicação social alcança número indeterminado de pessoas, o que não sucede em difamação lançada em uma sala ou por carta”. O jurista Walter Ceneviva também opina na Folha que o direito comum não se ajusta aos problemas civis e penais da comunicação social.

Outro jurista, Victor Gabriel Rodriguez, mostrou também na Folha que os jornalistas foram engambelados pelos patrões e acabaram dando um tiro no pé. A Lei de Imprensa dá mais direitos de defesa ao jornalista – inclusive defesa prévia, que evita o julgamento. “No equilíbrio entre direitos individuais e liberdade de informação, o menor dos males é a Lei de Imprensa,” diz.

* A Revista do Brasil pode ser acessada no endereço eletrônico http://www.revistadobrasil.net/

O preconceito contra Lula no jornalismo brasileiro

Um dia encontrei Lula, ainda no Instituto Cidadania, empolgado por um livro de Câmara Cascudo sobre os hábitos alimentares dos nordestinos. Lula saboreava cada prato mencionado, cada fruta, cada ingrediente. Lembrei-me desse episódio ao ler a coluna recente do João Ubaldo Ribeiro, "De caju em caju", em que ele goza o presidente por falar do caju, "sem conhecer bem o caju." Dias antes, Lula havia feito um elogio apaixonado ao caju, no lançamento do Projeto Caju, que procura valorizar o uso da fruta na dieta do brasileiro.

"É uma pena que o presidente Lula não seja nordestino, portanto não conheça bem a farta presença sociocultural do caju naquela remota região do país…", escreveu João Ubaldo. Alegou que Lula não era nordestino porque tinha vindo ainda pequeno para São Paulo. E em seguida esparramou-se em citações sobre o caju, para mostrar sua própria erudição. Estou falando de João Ubaldo porque, além de escritor notável, ele já foi um grande jornalista.

Outro jornalista ilustre, o querido Mino Carta, escreveu que Lula "confunde " parlamentarismo com presidencialismo. ."Seria bom", disse Mino, "que alguém se dispusesse a explicar ao nosso presidente que no parlamentarismo o partido vencedor das eleições assume a chefia do governo por meio de seu líder…" Essa do Mino me fez lembrar outra ocasião, no Instituto Cidadania, em que Lula defendeu o parlamentarismo. Parlamentarista convicto, Lula diz que partidos são os instrumentos principais de ação política numa democracia.

Pelo mesmo motivo Lula é a favor da lista partidária única e da tese de que o mandato pertence ao partido. Em outubro de 2001, o Instituto Cidadania iniciou uma série de seminários para o Projeto Reforma Política, que Lula fazia questão de assistir do começo ao fim.Desses seminários resultou o livro de 18 ensaios, Reforma Política e Cidadania, organizado por Maria Victória Benevides e Fábio Kerche e prefaciados por Lula.

Se pessoas com a formação de um Mino Carta ou João Ubaldo sucumbiram à linguagem do preconceito, temos mais é que perdoar as dezenas de jornalistas de menos prestígio que também dizem o tempo todo que "Lula não sabe nada disso, nada daquilo". Acabou virando o que em teoria do jornalismo chamamos de "clichê". É muito mais fácil escrever usando um clichê porque ele sintetiza idéias com a quais o leitor já está familiarizado, de tanto que foi repetido.

O clichê estabelece de imediato uma identidade entre o que o jornalista quer dizer e o que o leitor quer compreender. Por isso, o clichê do preconceito "Lula não entende" realimenta o próprio preconceito. Alguns jornalistas sabem que Lula não é nem um pouco ignorante mas propagam essa tese por malandragem política. Nesse caso, pode-se dizer que é uma postura contrária à ética jornalística, mas não que seja preconceituosa. Aproveitam qualquer exclamação ou uso de linguagem figurada de Lula, para dizer que ele é ignorante.

"Por que Lula não se informa antes de falar?", escreveu Ricardo Noblat, quando Lula disse que o caso da menina presa junto com homens no Pará "parecia coisa de ficção" . Quando Lula disse, até com originalidade, que ainda faltava à política externa brasileira achar "o ponto G", William Waack escreveu : "Ficou claro que o presidente brasileiro não sabe o que é o ponto G".

Outra expressão preconceituosa que pegou é "Lula confunde". A tal ponto que jornalistas passam a usar essa expressão para fazer seus próprios jogos de palavras. "Lula confunde agitação com trabalho", escreveu Lúcia Hipólito. Ou usam o confunde para desqualificar uma posição programática do presidente com a qual não concordam. "O presidente confunde choque de gestão com aumento de contratações", diz José Pastore. Confunde coisa alguma. Os neoliberais querem reduzir o tamanho do Estado, o presidente quer aumentar. Quer contratar mais médicos, professores, biológos para o Ibama. É uma divergência programática.

Carlos Alberto Sardenberg diz que Lula confundiu a Vale com uma estatal. "Trata-a como se fosse a Petrobrás, empresa que segundo o presidente não pode pensar só em lucro, mas em, digamos, ajudar o Brasil". Esse caso é curioso porque no parágrafo seguinte o próprio Sardenberg pode ser acusado de confundir as coisas, ao reclamar da Petrobrás contratar a construção de petroleiros no país, apesar de custar mais. Não tem confusão nenhuma, assim como Lula também não fez confusão. Lula acha que tanto a Vale quanto a Petrobrás tem que atender interesses nacionais. Sardenberg acha que ambas devem pensar primeiro na remuneração dos acionistas.

A linguagem do preconceito contra Lula sofisticou-se a tal ponto que adquiriu novas dimensões entre elas a de que Lula tem até problemas de aprendizagem ou compreensão da realidade. Ora, justamente por ter tido pouca educação formal, Lula só chegou onde chegou por captar rapidamente novos conhecimentos, além de ter memória de elefante e intuição.

Mas na linguagem do preconceito, "Lula já não consegue mais encadear frases com alguma conseqüência lógica", como escreveu o Paulo Ghiraldelli , apresentado como filósofo na página de comentários importantes do Estadão. Ou, como escreveu Rolf Kunz, jornalista especializado em economia e também professor de filosofia: "Lula não se conforma com o fato de, mesmo sendo presidente, não entender o que ocorre à sua volta".

Como nasceu a linguagem do preconceito? As investidas vêm de longe. Mas o predomínio dessa linguagem na crônica política só se deu depois de Lula ser eleito presidente, e a partir de falas de políticos do PSDB e dos que hoje se autodenominam Democratas. "O presidente Lula não sabe o que é pacto federativo", disse Serra, no ano passado. E continuam a falar: "O presidente Lula não sabe distinguir a ordem das prioridades", escreveu Gilberto de Mello. "O presidente Lula em cinco anos não aprendeu lições básicas de gestão", escreveu Everardo Maciel na Gazeta Mercantil.

A tese de que Lula confunde presidencialismo com parlamentarismo foi enunciada primeiro por Rodrigo Maia, logo depois por César Maia, e só então repetido pos jornalistas. Um deles, dias depois dessas falas, escreveu que "só mesmo Lula, que não sabe a diferença entre presidencialismo e parlamentarismo, pode achar que um governante ter a aprovação da maioria é o mesmo que ser uma democracia no seu sentido exato".

O preconceito é juízo de valor que se faz sem conhecer os fatos. Em geral é fruto de uma generalização ou de um senso comum rebaixado. O preconceito contra Lula tem pelo menos duas raízes: a visão de classe, de que todo operário é ignorante, e a supervalorização do saber erudito, em detrimento de outras formas de saber, tais como o saber popular ou o que advém da experiência ou do exercício da liderança. Também não aceitam a possibilidades das pessoas transitarem por formas diferentes de saber.

A isso tudo se soma o outro preconceito, o de que Lula não trabalha. Todo jornalista que cobre o Palácio do Planalto sabe que é mentira, que Lula trabalha 12 a 14 horas por dia. Mas ele é descrito com freqüência por jornalistas como uma pessoa indolente.

Não atino com o sentido dessa mentira, exceto se o objetivo é difamar uma liderança operária, o que é, convenhamos, uma explicação pobre. Talvez as elites e com elas os jornalistas não consigam aceitar que o presidente, ao estudar um problema com seus ministros, esteja trabalhando, já que ele é "incapaz de entender" o tal problema. Ou achem que, ao representar o Estado ou o país, esteja apenas passeando, porque onde já se viu um operário, além do mais ignorante, representar um país?