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A mídia e os mitos que seguem de pé

No Observatório da Imprensa na TV deste 1o de abril o tema discutido foi a pesquisa de opinião realizada entre pessoas que vivem em favelas. O trabalho foi encomendado pela Central Única de Favelas ao Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS). Os convidados de Alberto Dines foram os jornalistas Vera Araújo (O Globo) e Antonio Carlos Rocha (Agora São Paulo), além do antropólogo Júlio César Tavares.

No editorial, o programa repetiu o tom da reportagem do Globo, que divulgou os resultados da pesquisa com exclusividade: mitos teriam sido derrubados pelos números, que representariam nua e cruamente a “Voz da favela” (título da matéria de 23 de março, um domingo). O principal deles, que foi destacado pelo jornal, foi o apoio de 47,9% dos entrevistados ao uso do Caveirão. Assim como o Globo afirmou nos subtítulos que “a maioria apóia o uso do Caveirão”, todos os convidados do OI na TV repetiram o mantra: “Sim, esse foi um resultado surpreendente”. E a partir daí passaram a analisar e a interpretar.

Entretanto, havia um dado crucial que os debatedores não enxergaram: o índice mais elevado desse apoio ao Caveirão foi constatado entre moradores de favelas que raramente – ou nunca – sofrem com a ação do carro blindado, sobretudo na Zona Oeste, que puxou a média para cima (61,4%), enquanto na Zona Norte, onde as incursões são muito mais freqüentes, o apoio foi de apenas 33,6%. Essa informação foi publicada – sem destaque – na própria reportagem do Globo.

O fato de um veículo das Organizações Globo manipular números e fatos de acordo com seus interesses político-econômicos e ideológicos não surpreende. A História recente do Brasil é fértil em exemplos, desde a manchete do Globo de 44 anos atrás (“Fugiu Goulart e democracia está sendo restabelecida”), passando pela tentativa de fraudar as eleições para governador no Rio em 1982, a omissão da campanha das Diretas em 1984 e a manipulação do debate entre Lula e Collor em 1989, apenas para ficar nos exemplos mais famosos. Entretanto, surpreende que um veículo com a proposta do Observatório da Imprensa simplesmente omita esse dado fundamental para a compreensão da realidade. A partir dele, poder-se-ia questionar quantos moradores da Zona Oeste e quantos da Zona Norte foram ouvidos e, a partir daí, chegar a uma média ponderada para se ter uma noção mais precisa da opinião de quem vive em favelas. E, sinceramente, é muito difícil encontrar alguém que apóie um carro de guerra que avisa por um megafone que “vai roubar sua alma”, sobretudo depois de viver esse susto. Nas favelas em que entrei e perguntei a respeito, todas na Zona Norte, ainda não encontrei.

Mídia sensacionalista

A pesquisa revela ainda dois outros números deixados em segundo plano pelo Globo, mas que foram muito bem enfatizados pelo professor Júlio César Tavares durante o OI na TV. São 65,4% os entrevistados que afirmam que a cobertura da imprensa (jornal, rádio e televisão) dos fatos que ocorrem dentro das favelas é "sensacionalista (distorce os fatos e usa preconceitos)". Esse dado, em que os entrevistados identificam a manipulação da mídia, por exemplo, simplesmente não aparecem no texto da reportagem. É relegado a um quadradinho entre outros oito iguais a ele, perdendo, assim, o impacto que poderia causar.

Outro item da pesquisa que teve a importância minimizada foi a afirmação de 73,2% dos entrevistados de que "a imagem que a sociedade tem da favela como 'reduto de marginais' é completamente distorcida, pois a grande maioria dos favelados é gente honesta". Essa questão está ligada à anterior, pois quem distorce essa realidade, em grande parte, são as corporações de mídia.

Esses dois pontos não mereceram destaque na primeira página do jornal e nem nos subtítulos das páginas internas, embora tenham sido mais expressivos que aqueles escolhidos pelos editores: "legalização das drogas, com 60,5% contra, e apoio ao uso do Caveirão e das Forças Armadas, com 47,9% e 48,9% respectivamente". Assim, abandonam-se dados extremamente impactantes para dar lugar a outros de menor impacto, mas que reforçam a linha editorial pretendida.

A divulgação dessa pesquisa, com esse grau de manipulação, é particularmente perigosa no atual momento pré-eleitoral. Há sempre a possibilidade de as Organizações Globo estarem trabalhando para pautar os candidatos de acordo com seus interesses – não seria um fato novo. Além disso, pode-se detectar uma tentativa de moldar a opinião dos moradores de favelas aos desejos desse grupo empresarial.

Seja como for, o fato é que os telespectadores do Observatório da Imprensa merecem um novo debate que contemple este outro aspecto da pesquisa – uma prova, inclusive, de que aqueles (e outros) mitos seguem firmes, de pé.

* Marcelo Salles é editor do jornal Fazendo Media (www.fazendomedia.com).

A fusão de concessionárias brasileiras pode estimular a competição

O modelo brasileiro de reforma das telecomunicações (MBRT) foi reconhecidamente um dos mais bem desenhados do mundo, reunindo elementos das principais experiências internacionais. Os indicadores de sucesso do MBTR são contundentes, incluindo a quase duplicação da teledensidade, que passou de 10,6 em 1997 para 20,6 em 2007. 

Um dos aspectos proeminentes do MBTR foi a reestruturação da Telebrás, prévia à privatização. A holding estatal brasileira foi desmembrada em quatro operadoras de telefonia fixa, uma de longa distância atuando em todo o país, a Embratel, e três regionais, atualmente Oi, BrT e Telefônica, além das oito operadoras móveis. Definiu-se um período de transição entre 1998 e 2002/2004, no qual as três operadoras regionais poderiam realizar chamadas de longa distância dentro, mas não fora, de suas respectivas áreas de concessão. Após o período de transição, as operadoras regionais seriam liberadas de tais restrições. Uma restrição ainda não removida, no entanto, foi a de que as três concessionárias regionais não poderiam se fundir entre si, tema que tem gerado polêmica com a anunciada intenção da Oi de aquisição da BrT e a discussão de revisão do Plano Geral de Outorgas.

Quais foram os fatores que, afinal, condicionaram a divisão das concessionárias regionais em três? Fundamentalmente, se desejava evitar que a empresa privatizada herdasse o poder de mercado da Telebrás. Este era um argumento mais forte no que diz respeito à possíveis práticas discriminatórias pela concessionária, seja por preços de interconexão excessivos, seja por deterioração da qualidade do serviço das entrantes. Considerando ainda que a Anatel engatinhava na implementação da regulação, a segmentação entre a Embratel, detentora da maior parte da infra-estrutura de longa distância, e o resto da Telebrás foi importante para evitar problemas concorrenciais. Isso, há dez anos.

A questão é se faz sentido hoje a manutenção do impedimento regulatório à integração entre as concessionárias regionais, concebidas antes da privatização? Primeiro, é fato que as concessionárias regionais permanecem como líderes nos mercados locais de suas respectivas áreas de concessão, detendo conjuntamente 90,3% dos acessos fixos em serviço. Adicionalmente, uma tese que chegou a ser utilizada por alguns reguladores no início do processo de fusões das Baby-Bells nos EUA a partir de 1996 foi a da “competição potencial”: mesmo não concorrendo de forma direta nos mercados locais, poderia-se considerar que as empresas regionais seriam, potencialmente, as candidatas mais prováveis a entrar nas áreas umas das outras. No entanto, no Brasil, as concessionárias regionais pouco investiram fora de suas áreas de concessão. Quando o fizeram, basicamente nas áreas mais rentáveis, foram acompanhadas de um contingente amplo de novos entrantes. Fora de suas áreas de concessão, as concessionárias ficam atrás de entre 9 a 12 outras autorizatárias.

Segundo, o mercado de telecomunicações mudou radicalmente após a privatização. O arcabouço regulatório brasileiro, montado com base na Lei Geral de Telecomunicações de 1997, estava centrado nas falhas de mercado específicas da telefonia fixa. Em 2008, o Brasil se defronta com um cenário completamente diferente. Os acessos à internet e telefonia móvel cresceram exponencialmente, havendo a perspectiva de forte incremento da associação dos dois a partir da recente licitação para 3G. O surgimento e crescente utilização do serviço de voz sobre a internet – VOIP –, por sua vez, representa ameaça muito concreta às concessionárias regionais em suas áreas de concessão, especialmente na longa distância. Trata-se da crescente convergência tecnológica.

O setor de telecomunicações atualmente constitui um exemplo de livro texto de um processo de “destruição criativa”, termo cunhado pelo economista Joseph Schumpeter para descrever o comportamento de setores em franca revolução do estado da técnica. Isso significa que as participações de mercado se constituem em indicadores pobres para avaliar posição dominante. A Comissão Européia (CE), inclusive, já em 2002 reduziu sua ênfase da variável “participação de mercado” na definição de agentes com Poder de Mercado Significativo (PMS), reconhecendo que o dinamismo tecnológico pode fazer desaparecer esta dominância em curto espaço de tempo.

Mais do que isso, a CE passou a regular o setor de “comunicações eletrônicas”, com alcance bem mais amplo que telecomunicações, reflexo claro da necessidade de adaptar a regulação aos ditames do processo de convergência. Cada vez mais, os serviços de telefonia fixa, móvel e TV por assinatura tendem a ser prestados a partir de uma plataforma comum baseada no protocolo de Internet (IP). No limite, cada um desses serviços passaria a ser tão somente uma aplicação particular do IP.

Com isso, a dinâmica competitiva dos segmentos que compõem as comunicações eletrônicas se transforma radicalmente. Cada vez mais o usuário dará preferência ao operador que for capaz de ofertar o chamado “triple play” (voz, dados e TV por assinatura), ou mesmo o “quadruple play” (o triple play mais telefonia móvel) levando a infra-estrutura de fibra óptica para mais perto quanto possível do usuário final. Nesse quadro, como se observou nos EUA, os operadores de TV a cabo podem passar a ter significativa vantagem competitiva frente aos operadores de telefonia, tornando totalmente anacrônica a regulação assimétrica entre os dois serviços (mais rigorosa com a telefonia). 

Por fim, no contexto de convergência enfraquece-se o argumento de riscos de discriminação pelas concessionárias. Há uma maior possibilidade hoje de contar com outras formas de acesso ao usuário local que não a concessionária. Em particular, a emergência do VoIP dificulta enormemente a estratégia de discriminação pela via da interconexão. Até porque a manutenção do princípio da “neutralidade da rede” na internet não permite interferências dos proprietários das infra-estruturas no conteúdo que circula na rede. Adicionalmente, a telefonia móvel constitui também outra forte alternativa.

Enfim, a inflexibilidade nas possibilidades de comunicação da época da privatização foi substituída por um mundo novo no qual o usuário possui um leque cada vez mais amplo de escolhas. Com isso, o fortalecimento e ganho de escala dentro de cada modalidade de serviço significa ganho de competitividade perante as demais modalidades ou maior capacidade de oferecer pacotes de serviços, o que estimula, em vez de reduzir a concorrência. O ideal é deixar que eventuais problemas concorrenciais decorrentes de integrações entre concessionárias de telefonia fixa sejam combatidos pela agência reguladora e pelos órgãos de defesa da concorrência, caso a caso. Uma restrição absoluta pode impedir avanços tecnológicos e mesmo a competição, ao contrário do que poderia indicar uma análise superficial.

A verdade é que a remoção do impedimento à fusão entre concessionárias já deveria ter sido efetuada há mais tempo, para estimular a competição, pois o novo padrão de concorrência no mercado já se encontra delineado no Brasil. Assim, o simples anúncio da fusão entre a Oi e a BrT, veio em boa hora, pois finalmente trouxe à pauta, no país, a discussão de uma revisão regulatória fundamental, que já ocorreu em outros países, trazendo estímulo à competição, desenvolvimento tecnológico e benefícios aos consumidores.

* César Mattos é doutor em Economia pela UnB (Universidade de Brasília) e pesquisador Associado do CERME/UnB (Centro de Estudos em Regulação da Universidade de Brasília).

Conselho de Comunicação Social: não existe “buraco negro”, está tudo muito claro

Depois da última edição televisiva do Observatório da Imprensa (25/3) [ver "A quem interessa o Conselho de Comunicação Social"], o imortal Arnaldo Niskier tornou-se candidato a concorrer ao título de cara-de-pau do ano. 

Niskier foi indicado pelo senador José Sarney para presidir o Conselho de Comunicação Social no mandato 2005-2006. O senador José Sarney é proprietário de um grupo de comunicação no Maranhão e obedece, estrita e devotadamente, aos interesses do empresariado da mídia eletrônica.

A incrível desculpa apresentada por Niskier para o esvaziamento do CCS (que não se reúne há mais de 16 meses e até agora não foi reconstituído) é que se tratou de manobra dos grandes grupos de mídia eletrônica para evitar uma discussão pública sobre a questão da convergência tecnológica. "É um buraco negro" explicou o acadêmico didaticamente.

Niskier era o representante dos grandes grupos de mídia eletrônica e aceitou a incumbência de presidir o Conselho para esvaziá-lo no mandato seguinte – essa é a verdade. Não existe buraco negro, está tudo muito claro.

Acerto prévio

O ex-presidente do CCS, o jurista José Paulo Cavalcanti Filho, participou ao vivo do programa e não deixou nenhuma dúvida quando afirmou que "faltou um pouco de fibra ao Conselho". Quando se encerra o mandato dos conselheiros, ele é prorrogado automaticamente até a posse os próximos. O mandato de 2002 terminou em junho de 2004, e a posse dos novos titulares só ocorreu em fevereiro do ano seguinte. "Do ponto de vista técnico, o conselho não está funcionando porque não quer. Porque, tecnicamente, enquanto não houver a indicação dos novos membros, continua sem nenhum problema, como é a regra no Brasil para os conselhos", completou Cavalcanti.

Arnaldo Niskier dissolveu o CCS antes de empossar os novos conselheiros seguindo um script previamente acertado. O ex-presidente do Senado, Renan Calheiros, não indicou os substitutos porque obedecia inicialmente ao mesmo script e depois, quando estourou o escândalo que o obrigou a renunciar, sentiu-se de desobrigado de fazer as indicações.

Inatividade encomendada

O atual presidente da Câmara Alta, senador Garibaldi Alves, prometeu um depoimento gravado para ser apresentado no programa – mas fugiu da raia e nem deu satisfações.

Com os inevitáveis desdobramentos da crise dos cartões corporativos e, em seguida, o início da campanha eleitoral, o Conselho de Comunicação Social corre o risco de ficar mais um ano no estaleiro. O tal buraco negro que Niskier mencionou no seu depoimento foi feito sob medida e ele o executou com maestria.

Os tempos modernos e o colapso da razão ética

O que leva um jovem profissional ou um aluno de pós-graduação a considerar "normal" que uma empresa de comunicação se alie a um governo ou aos interesses de um poderoso grupo de anunciantes e que seu jornalismo deliberadamente omita, distorça e manipule informações? 

Por que as constatações de que "todos fazem do mesmo jeito", "se não fizer assim não sobrevive", "esse é o jogo jogado" etc. se tornam suficientes para que profissionais se ajustem inteiramente ao "sistema"?

Por que se considera que as empresas de comunicação "são empresas como quaisquer outras", "seu objetivo é ter lucro" e para isso "devem fazer o que for necessário que se faça ou ficarão fora do mercado"?

Por que os códigos de ética profissional são desconhecidos ou solenemente ignorados como documentos "fora da realidade" cuja aplicação levaria ao fracasso profissional e da empresa?

Por que esses jovens não se consideram parte do problema – "é assim que funciona" – e consideram "ingênuos" os que eventualmente se sentem indignados e buscam caminhos para alterar a situação?

Essas, por óbvio, não são questões novas e, certamente, não se restringem ao campo profissional das Comunicações. E, exatamente por essa razão, são questões que não podem ser ignoradas e sobre as quais temos o dever de retornar sempre.

Qual a diferença?

Em seu Jornalismo na era virtual: ensaios sobre o colapso da razão ética (Editora Perseu Abramo/Unesp, 2005), Bernardo Kucinski chama a atenção para o fato de que os jovens jornalistas rejeitam a possibilidade de uma ética"porque isso está em conflito com seus valores fundamentais, acima de tudo os valores individualismo e tolerância". Lembra também que…

"…o desemprego estrutural (…) fez da competição com o próprio companheiro uma necessidade de sobrevivência. (…) Nesse ambiente, as éticas socialmente constituídas cederam espaço a uma ética de cada indivíduo. (…) É também uma ética de muitos direitos e poucos deveres. Cada um tem o dever de pensar antes de tudo em si mesmo, em seu projeto de vida. Uma ética em que o dever é definido como negação do social, como celebração da individuação ética".

As ponderações de Kucinski certamente nos ajudam a compreender o que está acontecendo com os jovens estudantes e profissionais. É algo que vai muito além do próprio campo das Comunicações e – correndo o risco de parecer moralista – tem a ver com os valores e práticas que dominam o nosso tempo de pensamento único e capitalismo globalizado.

A impressão que muitas vezes se tem, no entanto, é que enfrentamos no Brasil questões que já foram experimentadas, debatidas e, sobretudo, superadas em outras democracias capitalistas há várias gerações.

Qual deve ser o compromisso básico norteador da formação dos jovens que buscam tornar-se jornalistas profissionais? O que diferencia uma empresa de comunicação de outra empresa qualquer? Qual é o paradigma dentro do qual o jornalismo deve ser avaliado?

Complexidades contemporâneas

Joseph Pulitzer, dono de jornal, modelo de jornalista e "pai" da famosa Columbia School of Journalism nos EUA, escreveu sobre formação profissional em 1904:

"É a idéia de trabalhar para a comunidade, não para o comércio, não para si próprio, mas primariamente para o público, que precisa ser ensinada. A Escola de Jornalismo é para ser, em minha concepção, não somente `não-comercial´ mas anticomercial". ("The College of Journalism", North American Review, cit. por J. Scheuer in The Big Picture, 2008)

Na edição anterior deste Observatório tratei aqui das conclusões do relatório da Hutchins Commission publicadas pela primeira vez em 1947 ("O velho (novo) paradigma faz 61 anos"). A prevalência do paradigma da responsabilidade social de jornalistas e empresários de comunicação foi celebrada pelos membros da Hutchins Commission e tem sido muitas vezes confirmada por decisões judiciais nos Estados Unidos ao longo dos últimos 60 anos.

Atravessamos no Brasil um período de profundas transformações que implicará importantes mudanças estruturais, regulatórias e em relação à natureza mesma do sistema de comunicações. Dessas transformações vai surgir um novo perfil (já em construção) de profissional e uma nova correlação de forças entre os principais atores do setor.

O que literalmente assusta e perturba aqueles que temos responsabilidades na formação de profissionais do setor e na observação da mídia é que essas transformações estejam a ocorrer dentro de um profundo "vazio ético", como diz Kucinski.

Fazer nascer uma nova ética profissional que leve em conta as complexidades contemporâneas talvez se constitua em um dos principais desafios do campo das Comunicações nos próximos anos.

O Estado contra a Lei Rouanet

Semana passada vimos publicar o mesmo artigo com duas versões, dois títulos e um só conteúdo. O primeiro, no Jornal do Brasil, retumbava: “O teatro não é inviável economicamente”. Seu autor, Celso Frateschi, presidente da Funarte.

O outro traz a assinatura conjunta deste com o secretário-executivo do Ministério da Cultura, Juca Ferreira, e é publicado na Folha de S.Paulo sob o título “Incentivo ao Teatro?”. O motivo é a comemoração do dia do teatro.

Com as mãos abanando diante do caos vivido pela produção teatral, vieram a público colocar a culpa pelos desmandos à Lei Rouanet, da falta de público à diminuição das temporadas. Só faltaram pedir o pescoço dos governantes, diante do descaso do mecanismo governamental em relação às necessidades das artes cênicas brasileiras.

Quase nos fizeram acreditar que o problema da lei é a própria lei, como se tivesse pernas próprias e não dependesse de governo para seguir o caminho correto, ou desejável. Cinco anos de poder foram necessários para descobrir verdadeiros exus: empresas e produtores culturais que lucram com a lei. A pena para a doença, matar o doente. Em português claro: acabar com a lei.

Mas como pode a Lei Rouanet ter esse poder todo se ela é tão-somente um mecanismo de estímulo ao investimento privado? Convenhamos que qualquer julgo além do seu campo de atuação constitui mera (ir)responsabilidade interpretativa de quem escreve, ou simplesmente assina, o petardo. O que espanta é o próprio poder público incitar uma visão equivocada da lei. Com que objetivo?

Vale lembrar que o teatro, assim como todas as outras artes, está órfão de políticas públicas. O MinC optou, já em 2003, por extinguir as secretarias chamadas finalísticas (música/artes cênicas, patrimônio/museus, livro e leitura), dando prioridade apenas para o audiovisual. No lugar, ampliou o escopo do Ministério e passou a dar prioridade para questões como Tv pública, propriedade intelectual, cultura digital, diversidade cultural. Apostou na transversalidade em detrimento da política setorial.

Amplamente aplaudida e reconhecida no Brasil e no mundo, as políticas propostas por Gilberto Gil carecem ainda de ações programáticas que as sustentem. Sem uma política transversal consistente (e que vá além do discurso) corremos o risco de perder o velho e não ganhar o novo.

Como pode o artigo do MinC vociferar: “não devemos propor o novo sem entender o velho”, se ele próprio não consegue dar conta do maior e mais eficaz sistema de financiamento à cultura que o Brasil já teve?

A Lei Rouanet tem problemas, todos sabemos. Já eram sérios e graves em 2002. Com a inabilidade deste ministério em resolvê-los, a Lei transformou-se numa bomba-relógio, pronta para estourar nas mãos do ministro Gilberto Gil. Como não está disposto a aceitar o fardo, o MinC quer colocar o problema da lei no colo do “mercado”, das empresas que se promovem e lucram com a lei. Como se o MinC não fosse o único órgão responsável por seu destino e gestão.

A Lei Rouanet é acusada de causar distorções no mercado cultural desde aquela campanha presidencial. Artistas carentes foram ao Canecão pedir socorro a Lula, pois a cultura estava sendo privatizada. Desde então o MinC realizou uma série de viagens com todo o seu gabinete para os quatro cantos, prometendo mudanças e ouvindo o que já sabíamos. Três anos depois, decretou mudanças cosméticas, sem efeitos práticos.

O que os fogos de artifício escondem é que a causa de tais distorções não está na lei, mas sim na falta de políticas mais amplas, tanto para as artes quanto para o mercado, que quer e precisa crescer e exige um conjunto de ações mais adequadas ao empreendedorismo e ao lucro (sim, avisa lá que somos capitalistas).

Mas estamos longe de alcançar uma realidade em que o Ministério da Cultura comemore o crescimento e o sucesso econômico de empresas culturais, dando-lhes o suporte necessário para empregar gente, recolher impostos e ajudar a financiar a rica diversidade cultural do Brasil.

Um mecanismo de financiamento privado não pode ter a responsabilidade de compensar a falta do Estado, mais ausente do que nunca. Em termos de financiamento público, a própria Lei já abarca mecanismos de compensação, como o Fundo Nacional de Cultura, que sempre foi acusado de ser uma caixa-preta. Hoje continua na mesma situação, com um volume insuficiente de editais, que continuam sem transparência, geridos e definidos por grupos que sustentam o poder e a ideologia do MinC.

Parece haver um entrave ideológico a ser superado pelo MinC. A Lei foi criada com base num princípio liberal, de que a sociedade (incluindo o mercado) teria condições, por si, de regular a lei. Mas como pode a sociedade saber o que é bom para a sociedade, se existe um grupo de pessoas privilegiadas com esse dom supremo?

Então o Governo faz de tudo para exercer comando sobre os projetos, interferindo diretamente na comissão que os aprova, gerando burocracias para segurar o que não lhe convém e facilitar o que considera alinhado com a “atual política”. E faz de maneira inábil, truculenta. Mostra-se cada vez mais perdido com a situação, chegando a implementar e mudar diretrizes e procedimentos como quem troca de roupa.

O Estado foi incapaz de incorporar a Lei Rouanet como política pública, deixando-o ao prazer do mercado. A primeira reunião que o MinC fez com as empresas patrocinadoras foi em 2007. Ainda assim para cobrar, não para orientar, dar diretrizes, ou declarar uma política clara para o investimento privado. Isso é um contra-senso, já que a aplicabilidade da lei está intimamente ligada à ação das empresas.

Este governo trata a lei como um filho bastardo, fruto das andanças do Estado com o mercado. Não o reconhece como um potente instrumento de financiamento à cultura. E por não o acolher, age contra ele. E por ele é consumido, pois não consegue formular alternativas para o aniquilar, substituir ou complementar.

Por outro lado, a lei foi apropriada pelo mercado. Empresas a utilizam como estratégia de comunicação. Isso não é uma distorção em si, e não é um mal em si. É apenas conseqüência do abandono do mecanismo como ingrediente de política cultural que dialoga com o capitalismo em que está (indesejavelmente) inserido.

Vendo-se incapaz de atuar na lei pela via do diálogo, o MinC passou a criar um arsenal de regras e burocracias, desenvolvidas com o objetivo único de tornar o instrumento moroso e ineficaz. A estratégia é esvaziar a lei, como fez Celso Frateschi em sua gestão municipal em relação à Lei Mendonça. Repete a dose à frente da Funarte, responsável por conceder parecer técnico à Lei.

Como resultado disso, criou-se um mercado paralelo de aprovação de leis dentro do próprio ministério, que atuava (ou atua?) no sentido de quebrar os bloqueios criados por este governo. A ação resultou no final de 2007 na prisão de uma quadrilha pela Polícia Federal. Um tiro no pé.

O mercado agora prepara ofensiva. Vários movimentos estão se formando pelo Brasil afora em defesa dos direitos culturais e liberdade de expressão, consagrados por nossa Carta Magna e pela própria Lei 8.313/91.

* Aplacados pela censura e pela perseguição, os autores deste artigos protegem-se sob o codinome Julinho da Adelaida Sobrinho, um parente fictício de Julinho da Adelaide, heterônimo de Chico Buarque de Holanda, criado para fugir da censura dos tempos difíceis da ditadura, que insiste em nos rodear.