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A ocupação da UnB, a esfera pública midiática e a história

“Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador”. (Provérbio africano citado por Eduardo Galeano em “O livro dos abraços”)

Nos últimos dias, várias pessoas me procuraram em busca de informações a respeito da ocupação da reitoria da Universidade de Brasília (UnB). Sabedoras do meu apoio ao ato – participando das assembléias e discussões, divulgando notícias e contribuindo, pelo Intervozes, com demandas da comunicação –,estas pessoas me indagaram acerca dos objetivos, das causas e das controvérsias da mobilização.

Dois elementos em comum a praticamente todos os diálogos chamaram a minha atenção. Por um lado, todos os meus interlocutores demonstraram, explícita ou implicitamente, não confiar na cobertura da grande mídia sobre o episódio. Por outro, ouvi de forma quase unânime a referência ao “ressurgimento” do movimento estudantil.

Em relação ao primeiro elemento, a eleição presidencial de 2006 comprovou, com sobras, que os auto-proclamados “formadores de opinião” não mais detêm o poder de influência que outrora tiveram. Tal perda gerou muitos órfãos do “Grande Irmão” que costumava apontar a luz verdade – sem muitas vozes contestadoras – para todas as questões fundamentais. Já há vários anos, cada vez mais vozes se levantam contra a forte hegemonia daquilo que é chamado de PMB (Partido da Mídia Brasileira), de PIG (Partido da Imprensa Golpista), de “mídia gorda” ou simplesmente de grande mídia. Esta perda de credibilidade, porém, deve ser considerada, pelo menos por enquanto, um aspecto conjuntural, ainda que vários indicadores – como a perda crescente da circulação dos jornais tradicionais, a decadente audiência da Rede Globo, ao lado da explosão da “blogosfera” e da crescente proliferação de rádios livres e comunitárias – apontem uma tendência consolidada.

O segundo elemento, o suposto “ressurgimento” do movimento estudantil, pode estar vinculado a um aspecto mais estrutural da nossa comunicação: a capacidade da grande mídia de pautar o debate público, de dizer o que existe e o que não existe no mundo.

“Trata-se tão somente de poder, é claro. No fim. O poder que a mídia tem de estabelecer uma agenda. O poder que ela tem de destruir alguém. O poder que tem de influenciar e mudar o processo político. O poder de capacitar, animar. O poder de enganar. O poder de mudar o equilíbrio de forças: entre Estado e cidadão; entre país e país, entre produtor e consumidor. (…) Trata-se apenas de propriedade e controle: o quem, o quê e o como. E trata-se do gotejar da ideologia, como também do choque do evento extraordinário. Trata-se do poder da mídia de criar e sustentar significados; de persuadir, endossar, reforçar. O poder de minar e reassegurar. Trata-se de alcance. E de representação: a habilidade de apresentar, revelar, explicar; assim como a habilidade de conceder acesso e participação. Trata-se do poder de escutar e do poder de falar e ser ouvido. Do poder de incitar e guiar reflexão e reflexividade. O poder de contar contos e articular lembranças”. (Roger Silverstone, “Por que estudar a mídia?”.)

Se à mídia hegemônica não é possível esconder a ocupação na UnB, é necessário, então, enquadrar a cobertura sobre o movimento. Reduzir os seus pleitos à saída dos dirigentes corruptos, desviar o debate sobre o significado das fundações para a universidade pública, fingir esquecimento quanto às demandas estruturais.

A todas as pessoas que saudaram o “ressurgimento” do movimento estudantil, respondi com uma pergunta simples: mas quando foi mesmo que ele desapareceu? A provocação era necessária. A primeira imagem que nos vem à cabeça quando escutamos o termo “movimento estudantil” é uma passeata, um protesto, uma “ação direta”. Daí a ignorar a atividade cotidiana – e, em certo sentido, a própria existência – desse ator social, pelo fato de não ocorrerem mobilizações amplas e radicalizadas, é um equívoco imenso.

O mundo não é feito de fatos fragmentados e desconexos entre si, como apresenta, via de regra, a grande mídia. O mundo é feito de processos políticos e sociais, que se encadeiam, se sobrepõem e se acumulam no decurso da história. Se a História oficial é um emaranhado de datas, personagens célebres, heróis e mitos, o mesmo não se aplica à história real, construída cotidianamente. Esta é permeada de avanços, retrocessos, contradições, e acertos. Aparece esporadicamente nos registros – livros, mídia e outros –, mas no silêncio derruba muros, arranca grades e constrói barricadas.

Os estudantes e as estudantes da UnB que despertaram a curiosidade ou a atenção da mídia e da sociedade brasileira não surgiram por acaso. Possuem histórico de militância. Suas lutas – sim, há diferentes lutas unificadas numa frente comum na ocupação da reitoria – não começaram com este ato, nem terminarão com ele. Os centros acadêmicos, os coletivos autônomos e os grupos das mais distintas e divergentes inspirações e orientações teóricas continuarão existindo e atuando diuturnamente quando a atual mobilização for encerrada. Os seus objetivos – pontuais e estruturais, táticos e estratégicos – continuarão sendo reivindicados, embora não estejam mais tão presentes nas manchetes de noticiários de imprensa, TV, rádio e portais. E os seus protagonistas continuarão existindo para além das páginas de jornais e Internet. Estarão se comunicando nas ruas, nas praças, nos corredores, nas reuniões, nas salas de aula… porque a grande mídia não é a única comunicação possível.

*Rogério Tomaz Jr. é jornalista, estudante do Mestrado em Comunicação da UnB e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

A reinvenção do cinema e os jurássicos

A digitalização e a internet podem transformar todo o processo cinematográfico, democratizando a produção e multiplicando as platéias. Mas, agarrada a seu monopólio, a indústria do audiovisual quer manter as tecnologias superadas e a idéia de que arte é para quem pode pagar.

O cinema mudou pouco até o advento das tecnologias digitais. O som, a cor, melhoramentos nas películas, na projeção, entre muitos outros, foram aperfeiçoamentos numa tecnologia básica que se consolidou no finalzinho do século 19, na famosa sessão dos irmãos Lumière. O modelo básico de produção, de circulação e de exibição permaneceu o mesmo. Já a digitalização das imagens e sons mudou tudo. Criou um paradigma novo, em que todas as etapas do processo cinematográfico se transformam: a captação, montagem, finalização; a difusão, que já nem precisa ser física; e a exibição, que gera novos formatos, espaços, relações. Essas mudanças implicam também, é obvio, em novas bases e condições econômicas para todas as etapas.

Este período – e processo – de adaptação do paradigma de cinema, que estamos vivendo, tem curiosas similitudes com o que aconteceu na época do surgimento do cinema. Durante um tempo, não se sabia muito bem o que fazer com ele. É certo que aquilo podia dar dinheiro, mas não havia um modelo de negócio (como se diz hoje) estabelecido. Que formato deveria ter o espetáculo; como devia ser negociado, distribuído, exibido? Os primeiros vintes anos do cinema foram de formatação do produto, com o desenvolvimento da linguagem e o estabelecimento de uma narrativa adequada ao consumo. Foi um período de formação de platéias, que evoluíram das feiras e teatros de variedades para as salas fixas proletárias e finalmente para um público mais "respeitável". Foram anos de uma verdadeira guerra, para que se estabelecesse um modelo de comercialização entre produtores, distribuidores e exibidores.

Hoje há interessantes analogias com aquelas situações. As novas tecnologias criam novas possibilidades, que se tornam formatos, que necessitam de novas formas de distribuição e consumo, engendrando novos mercados, que pedem novos modelos de comercialização. E quanto isto estará mexendo com a linguagem?

O fato é que essa etapa de grandes transformações está estruturada em um modelo. Um modelo que não é muito duradouro, que ainda não tem regras estáveis – apenas entendimentos comerciais mais ou menos provisórios. Uma situação que procura segurança, tão cara aos grandes negócios, mas que de momento trava batalhas complexas e violentas pela repartição dos mercados. Uma realidade que, para a quase totalidade da população e para os produtores e realizadores audiovisuais, é elitista, excludente, unilateral e concentradora.

Há trinta anos, o Brasil tinha pouco mais da metade da população de hoje e pouco menos de 5 mil salas de cinema. O número de espectadores, por ano, andava em torno de 300 milhões. Nos anos 70 e 80, o modelo foi se transformando, de um cinema barato e popular para o figurino atual. Houve um período de crise aguda, quando o número de salas caiu para cerca de 900 e o público para quase 70 milhões anuais. Foi o fim dos cinemas na grande maioria das cidades e o desaparecimento dos cinemas de bairro.

Depois de uma "recuperação", sob o novo modelo de consumo de elite, nos multiplexes de xópins, o número de salas chegou a 2.200. No entanto, essas salas são bem menores que as daquele tempo não tão distante (que tinham 500 lugares ou mais) e fica a dúvida de se houve efetivamente um aumento do número de assentos oferecidos. Porque o público cresceu pouco, e tem rondado em torno de 90 milhões de espectadores anuais.

O senso comum diagnostica rapidamente: "é por causa do vídeo, do DVD, da TV a cabo, da banda larga". No entanto, nos países onde há mais acesso a todos esses recursos audiovisuais, o cinema apresenta números muito mais significativos. Nos EUA, são quase 40 mil salas de cinema. Mesmo no México, com condições mais parecidas e a metade da nossa população, o número de salas de cinema é 40% maior.

Em outras palavras, segundo dados de uma distribuidora estadunidense, mais ou menos 10% da população "vai pelo menos uma vez por ano ao cinema". Ou seja, 90% não vão nunca. Mais de 60% dos jovens entre 15 e 29 anos, nunca foram ao cinema. Outro corte: 92% dos municípios brasileiros não têm sala de cinema. Aliás, quase a metade dos cinemas (48%) está concentrada nos estados de São Paulo e Rio. Sergipe, com 75 municípios, só tem cinemas em Aracaju; de fato, 17 estados brasileiros têm 15% das salas de cinema do País.

Do lado da produção, o Brasil hoje faz quase 70 filmes de longa metragem por ano. No entanto, pelo menos 30% desses filmes simplesmente não são exibidos. Dos que conseguem chegar aos cinemas, quase todos são exibidos em situações muito precárias – de salas, datas – raramente atingindo números minimamente significativos. Explicando melhor: os filmes brasileiros ocupam cerca de 10% do mercado de exibição, ou seja, atingem em torno de 9 milhões de espectadores por ano. Desse público, uns dois terços concentra-se em dois ou três filmes (geralmente os que têm participação financeira de distribuidoras hollywoodianas, ou estão associados a empresas de comunicação), conforme o ano. E os outros 30, 40 filmes "partilham" o restante do público. Resumindo: 10% de um mercado que mal atinge 10% da população, significa que o cinema nacional se relaciona com menos de 1% dos brasileiros.

Que não se confunda esta constatação com uma forma qualquer de xenofobia. O cinema mundial — quer dizer, europeu, asiático, latino-americano, e mesmo o dos Estados Unidos, quando não é produto das corporações daquele bairro famoso de Los Angeles — enfrenta uma situação ainda pior. Na verdade é o concorrente, por excelência, do cinema brasileiro na mesma estreita faixa de 10% do mercado. O cinema plural, mundial, é geralmente exibido num circuito ainda mais limitado, de menos de uma dezena de cidades brasileiras, que contam com um bom "circuito de arte". No ano passado, durante várias semanas, dois títulos apenas ocuparam mais de 70% de todas as salas do País. Logo em seguida esse número passou para três títulos, em cerca de 80% dos cinemas. Ou seja, mesmo com uma arquitetura multiplex, a exibição é cada vez mais simplex, concentrada. Hoje entra no Brasil um terço do número de filmes que vinha nos anos 80, inclusive norte-americanos. E 85% das bilheterias de cinema no Brasil estão concentrados em três distribuidoras de Hollywood.

As tecnologias digitais, associadas aos recursos propiciados pela internet, criam condições para uma democratização muito grande da produção. A distribuição elimina as cópias em película — que custam milhares de reais cada uma — e a própria instalação de salas e equipamentos de projeção diminuem muito de custo. Tudo aponta para a oportunidade e a necessidade de um modelo de circulação dos produtos audiovisuais em bases diferentes das atuais e, principalmente, com ingressos a preços compatíveis com o poder aquisitivo da população. É como um novo parto do cinema, na virada de outro século.

No entanto, na transição de paradigmas, a chamada indústria do audiovisual tem procurado garantir um controle exclusivo do processo, garantindo suas "margens" através da manutenção de tecnologias superadas, pela restrição do acesso e com a preservação de uma situação geral de monopólio. Desta forma, o modelo não serve para o público, não atende às necessidades dos realizadores e impede uma verdadeira integração cultural com o mundo.

* Felipe Macedo assina a coluna Cineclubismo no Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique.

Isabella Nardoni: um caso para não esquecer

Horror íntimo ou vocação coletiva para envergar a toga? Catarse pessoal ou sumarização da justiça? Tragédia ou circo midiático? A morte da menina Isabella Nardoni toca na emoção do país inteiro, qualquer que seja a conclusão do inquérito.

O Brasil festeiro, erotizado, apressado, partidarizado e narcisado faz uma breve pausa para pensar. Pensar e sofrer, individuar-se e abandonar a manada equalizadora. Tal como aconteceu com o menino João Hélio, despedaçado nas ruas do Rio em fevereiro de 2007, uma criança incapaz de emitir mensagens cala a estupidez reinante e avisa que é hora de incomodar-se.

A dengue, a tremenda pressão mundial no preço dos alimentos, o narcotráfico, o genocídio no Sudão, a guerra religiosa no Iraque, a repressão chinesa no Tibete e o ódio solto no Oriente Médio certamente causarão a morte de milhares ou milhões de crianças pelo mundo afora.

Mas esta criança singularizada pela tragédia, subitamente emudecida por uma bestialidade insuspeitada, despertou nossa humanidade. Numa questão de horas, converteu em órfãos a imensa nação dos adultos.

Coração partido

Ninguém se importa com a prática do infanticídio em algumas tribos indígenas, defendida com empenho por antropólogos (Folha de S.Paulo, 6/4). A cada dez horas, uma criança é assassinada, o Ministério da Saúde contabiliza, em seis anos, 5.049 mortes de meninos e meninas até 14 anos (O Globo, 6/4). Normal. A pedofilia e a prostituição infantil são encaradas com naturalidade, parte da "vida moderna", incentiva o turismo.

A queda de Isabella deu um tranco nos bons costumes. Por alguns momentos sacudiu modos e modas. Ao contrário de João Hélio, seu companheiro de infortúnio e martírio, a menina não acionou nossa compulsão legiferante. Até agora não apareceu um político oportunista para propor alguma lei absurda contra tragédias.

Até mesmo a parvoíce das autoridades incapazes de compreender a questão do segredo de justiça ou as disparatadas suspeitas vocalizadas incessantemente pela mídia antes mesmo de investigadas não conseguem sobrepor-se à soturna perplexidade que, por milagre, infiltra-se nos espíritos.

Imunizada contra a solidariedade, desumanizada por um debate partidário que na realidade só responde à pergunta "o que é que eu ganho com isso?", a sociedade brasileira sempre se perfilou no bloco do "não-me-importa". Envergonha-se de exibir o coração partido, mas agora oferece sutis indícios de sensibilização.

Sentimentos contínuos

A dúvida sobre quem matou Isabella é tão dilacerante quanto a certeza de que alguém a matou. O filosófico e angustiante por quê? começa a equiparar-se ao policialesco quem?. Os enigmas serão desfeitos, culpados logo aparecerão – inevitável. A questão que deve permanecer e atazanar as almas e os espíritos relaciona-se com a mecânica da bestialidade. Desafio destinado a não consumar-se, exercício infindável, por isso salutar tanto para religiosos como para agnósticos, para céticos e idealistas, revolucionários e conservadores. Ignorar o animal que convive com o ser humano é próprio dos bárbaros.

Isabella é uma dolorosa oportunidade para questionamentos. Nações aturdidas, empurradas por sensações, são incapazes de maturar sentimentos contínuos, comprometidos com éticas espasmódicas.

A morte de Isabella é um caso para não esquecer e aguilhoar.

O que muda de fato com a nova regulamentação para a TV por assinatura?

No último dia 7 de abril, foi apresentada a segunda versão do substitutivo do deputado Jorge Bittar (PT-RJ) para o projeto de lei 29/2007, que modifica a regulamentação da TV por assinatura. Essa versão, que já entrou na pauta de votação da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados, é resultado da pressão dos vários setores interessados, o que fica evidente quando comparada com o substitutivo anterior.

O impacto dessa versão na atual configuração do mercado é consideravelmente menor que o da primeira. A pergunta que fica para quem observa o processo por detrás das lentes do interesse público é se terá sido muito barulho por nada, se teremos andado por meses para chegar em um lugar muito próximo de onde partimos. Para tentar responder a essa questão é preciso entender o que muda de fato no cenário da TV por assinatura se aprovada essa versão do projeto.

A gênese do PL 29 já explicitava as diferentes forças atuando sobre a questão. Desde o ano passado, a CCTCI tem discutido esse tema, a partir da demanda das empresas de telecomunicações em participar do mercado de distribuição da TV a cabo, o que é hoje proibido. Essa foi a motivação do primeiro projeto apresentado, que determinou uma abordagem pontual para a questão, sem abrir espaço para a discussão de uma lei geral de comunicações que pudesse tratar o tema de forma mais ampla. Obviamente que alguns dos interesses das teles conflitavam com os interesses dos radiodifusores, especialmente da Globo, já que hoje o sistema Net e Sky controla mais de 80% do mercado. Isso fez surgir um segundo projeto tratando do tema, que mantinha o espaço dos radiodifusores e segurava o avanço das teles.

Alguns meses depois, dois outros projetos foram apresentados, desta vez trazendo alguns novos elementos mais preocupados com o interesse público, buscando dar espaço para a produção nacional e independente na TV por assinatura. Todos esses projetos, contudo, mantiveram o foco nas questões de conteúdo da TV por assinatura – especialmente em relação a quem pode distribuir e que tipo de conteúdo pode ser distribuído – sem incidir sobre questões de infra-estrutura, o que parece contraditório em tempos de convergência tecnológica. A tramitação deles se deu em conjunto; a primeira versão unificada foi aprovada na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio, de onde seguiu para a CCTCI, onde a relatoria foi entregue ao deputado Jorge Bittar (PT-RJ).

A correlação de forças

A partir daí, acirraram-se as pressões. Bittar apresentou um primeiro substitutivo no início de dezembro, e recebeu 145 emendas, representando os mais diversos interesses. As teles buscavam garantir sua possibilidade de distribuir conteúdo, e queriam a aprovação rápida do projeto. A Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA) entrou em rota de colisão contra as cotas de produção independente e conteúdo nacional, alegando que o espectador perderia direito de escolha (qual direito de escolha é esse eles nunca deixaram claro). A Associação Brasileira dos Programadores de TV por Assinatura (ABPTA), que representa os principais canais internacionais, também se movimentou buscando derrubar a exigência de cotas de conteúdo nacional nesses canais. A Globo, que vinha quieta, passou a enfrentar especialmente a exigência de cotas para produção independente – apreensiva pelo risco de perder espaço no mercado de produção de conteúdo –  e contra o aumento de poder da Ancine – na prática, a emissora não aceita qualquer regulação que incida sobre o conteúdo. Produtores independentes e entidades da sociedade civil, por sua vez, se movimentaram em defesa das cotas de conteúdo nacional e independente, do papel da Ancine como agência reguladora e em favor da desverticalização plena do mercado. No final do processo, emissoras dos grupos Band e Abril perceberam que a posição da Globo beneficiava unicamente aquela empresa, e fizeram a opção tática de se alinhar aos que defendem as cotas.

O grande problema é que há um enorme desequilíbrio de força entre esses atores. As teles têm um enorme cacife econômico; os radiodifusores, um cacife econômico menor (mas ainda grande) e um enorme cacife político. Para os produtores independentes e aqueles que defendem interesses difusos, sem a estatura econômica dos dois primeiros, restava a esperança de que os deputados firmassem pé para equilibrar esse jogo. O resultado expresso nesse novo substitutivo, no entanto, não é nada equilibrado.

O que muda de fato?

Em relação ao primeiro substitutivo, a segunda versão trouxe recuos significativos, em meio a algumas mudanças pontuais positivas. Apontados como 'ajustes', esses recuos na verdade desvirtuam parte das intenções do projeto. Pois vejamos.

Na primeira versão, os canais estrangeiros que no horário nobre veiculam majoritariamente conteúdo qualificado (como filmes, documentários, seriados e programas de debates e comentários) deveriam reservar 10% do tempo do horário nobre para veiculação de conteúdo nacional independente. Na nova versão, mantém-se a obrigação de 3 horas e meia semanais (o equivalente a 10% do horário nobre) de conteúdo nacional, mas apenas metade desse tempo é reservado para produção independente, o que significa 1h45 por semana.

A nova versão isenta de cotas os canais não direcionados ao Brasil (canais que não dublem nem legendem sua programação, por exemplo) e permite às programadoras que controlam mais de um canal intercambiarem cotas entre eles (a exibição na HBO de um filme nacional de 2 horas, por exemplo, dá conta das cotas diárias de quatro canais da programadora). Além disso, flexibiliza a cota para canais pan-regionais, cujo sinal único é transmitido para vários países (por exemplo, para toda a América do Sul), deixando a cargo da Ancine a avaliação sobre se a programadora tem ou não de implantar as cotas. O que isso significa na prática? Que se der trabalho cumprir a lei esses canais poderão ser isentos dela.

Mas a principal mudança ocorreu na cota que estabelece a obrigação de os pacotes vendidos conterem um certo número de canais nacionais. De 50%, na primeira versão, eles caíram para 25% na segunda. Desses canais, pelo menos 1/3 devem estar na mão de programadoras independentes. Todos eles devem veicular pelo menos oito horas diárias de conteúdo brasileiro, das quais quatro deverão integrar espaço qualificado. Dessas, pelo menos duas horas devem estar no horário nobre e uma hora deve ser de produção independente. Contudo, além de modificar o valor das cotas, o projeto impõe um 'teto de obrigações', que faz com que as cotas sejam válidas só para pacotes com até 40 canais. Com isso, as emissoras terão que garantir no máximo 10 canais brasileiros e 3 canais independentes.

Para entender o impacto dessas regras, vale pegar um exemplo. O menor pacote digital oferecido pela NET (Advanced Digital), além dos canais de veiculação obrigatória (os da TV aberta e os canais universitário, comunitário, legislativo etc.), tem os seguintes canais brasileiros: Futura, Shoptime, Canal Rural, SporTV, SporTV2, GloboNews, GNT, MultiShow, Canal Brasil, ESPN Brasil, e Record News. Ou seja, ele já carrega onze, quando o projeto obriga que sejam no mínimo dez. Shoptime, Canal Rural, ESPN Brasil e Record News podem ser considerados canais independentes. São quatro, e a nova lei obriga que sejam três. Assim, toda a base digital da NET já está conforme o PL e nenhum canal nacional (independente ou não) precisará ser incorporado.

Para completar, o projeto ainda determina que uma produtora independente não precisa ser totalmente independente. As empresas de programação, empacotamento e distribuição, assim como as concessionárias de televisão aberta, podem deter até 20% do capital votante da produtora, e ainda assim ela será considerada independente. No caso das programadoras independentes (responsáveis por pelo menos um terço dos canais nacionais veiculados nos pacotes), não há nenhuma restrição aos radiodifusores, o que significa que canais da Band e da Record serão, para todos os efeitos, independentes.

Regulação e Infra-estrutura

Do ponto de vista da infra-estrutura, o projeto também avança pouco. As teles poderão ter 100% das distribuidoras e empacotadoras, que são justamente as atividades nas quais eles querem atuar. A presença do capital estrangeiro é 100% liberada na atividade de distribuição, sendo restrita em até 30% apenas nas produtoras e programadoras nacionais. O serviço de distribuição será prestado em regime privado, o que isenta as empresas de qualquer obrigação de universalização da cobertura, de ter que seguir metas de qualidade ou de um controle mais rígido nos preços. Também não há nenhuma indicação de que essa rede instalada tenha que ter caráter público e único, como determina atualmente a lei da TV a cabo. Embora essas definições nunca tenham saído do papel, elas criavam condições para que as empresas fossem obrigadas a ceder capacidade excedente de sua rede para uso de outros interessados, num processo de unbundling.

O projeto avança na regulação das comunicações ao dar à Ancine o poder de regulação sobre a programação e empacotamento. Entretanto, ao contrário do anteriormente anunciado, a agência não poderá instruir o CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica em questões concorrenciais. A regulação da etapa de distribuição segue, por sua vez, nas mãos da Anatel.

Um ponto positivo do projeto, talvez a principal novidade e que não tem merecido a devida atenção, é a injeção de aproximadamente 300 milhões de reais para estimular a produção audiovisual. Ela virá de uma realocação de parte da verba destinada ao Fundo de Fiscalização de Telecomunicações (Fistel), pago por todas as empresas de telecomunicações e radiodifusão. O projeto determina que 30% dessa verba deverá ser destinada para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e 10% para TVs universitárias e comunitárias. Isso cria, pela primeira vez, uma fonte fixa de recursos para esses canais, que são proibidos de veicular publicidade.

Em suma

Acima de tudo, o novo substitutivo é resultado claro das fortes pressões empresariais. Da maneira como está, ele contempla os interesses das teles, que conseguem entrar no mercado. Para os grandes grupos que controlam a TV por assinatura, especialmente a Globo, muda pouco. Com as pressões feitas, elas conseguiram diminuir sensivelmente as cotas, o que faz com que os avanços para a produção nacional e independente sejam tímidos. De toda forma, a definição dessas cotas abre uma janela importante. Pela primeira vez uma lei brasileira determina claramente a obrigação de veiculação de produção independente na televisão. Embora a Constituição também preveja essa obrigação para a TV aberta, há 17 anos os radiodifusores têm impedido a aprovação de uma lei que regulamente em que termos isso deve se dar.

Em resumo, o projeto melhora um pouco o atual quadro de verticalização, garante um espaço mínimo de produção nacional nos canais estrangeiros, abre uma janela (basculante, a bem da verdade) para a produção independente e dá incentivos financeiros à produção. Ainda assim, para quem acompanhou todo o processo, fica uma sensação de frustração. Mais uma vez opta-se por um projeto de lei fragmentado em vez de se enfrentar a necessidade de uma lei geral de comunicações. Mais uma vez, os interesses dos grandes grupos empresariais da comunicação se mostram muito mais fortes do que o interesse público. Para mudar essa lei, não parece haver PL que dê conta.

A demissão na TV Brasil e o jornalismo preguiçoso

O jornalismo mais preguiçoso que existe é o chamado jornalismo declaratório. O repórter não precisa nem levantar da cadeira; recebe um telefonema de alguém, que diz o que quer, geralmente sobre outro alguém. O repórter anota tudo, e em seguida, liga para o alvo do primeiro telefonema, dizendo que alguém está fazendo uma denúncia contra ele, e que precisa ouvir o que o segundo tem a dizer sobre isso. Pronto. Como o repórter "ouviu os dois lados da história", o dever dele está cumprido. Ele, então, aperta o "send" e manda o texto para o jornal.

Mas… e se o que o primeiro telefonema relatou for uma deslavada mentira? Uma história bem inventada, ardilosa, nascida de um coração partido? Arquitetada por um marido traído, namorado dispensado ou jornalista demitido?

Fica o dito e o contradito, palavra contra palavra. A verdade, o que aconteceu mesmo, é um mero detalhe. A mentira também. Mas, muitas vezes, um detalhe que achincalha reputações, mancha trabalho árduo. De um dia para o outro, a mentira vira verdade. Dois dias depois, vira editorial, embasa opiniões de outras pessoas. Até de colunistas muito sabidos, mas pouco conhecidos no mercado que eles insistem em comentar.

A série de reportagens envolvendo a TV Brasil, que começou na Folha de S. Paulo (justamente no Dia do Jornalista, 7 de abril) e espalhou-se sem reflexão por outros veículos, é exemplo típico de jornalismo declaratório – o mais preguiçoso que existe. A manchete deixa claro: "Jornalista acusa Planalto de interferir na TV Brasil". A fonte é um jornalista que se diz "sob pressão insuportável" acaba de sair da própria TV. Uau! É abre de página!

Quem é o jornalista? Luiz Lobo, o âncora, o editor-chefe. Deve ter pedido demissão, imolando-se pela causa do bom jornalismo. Não. Foi demitido. Sob alegação de que queria mandar sem estar presente. Detalhe, portanto. Chegava no fim da tarde e queria mudar os textos de um telejornal que começa a ser feito de manhã. Está na internet que ele é CEO e "founder" de uma produtora de vídeo nos Estados Unidos. Tudo isso deve dar muito trabalho. Há registro nas atas de reunião de pauta: entre 16 de janeiro e 04 de abril, dia em que foi demitido, o editor-chefe compareceu a sete (07) encontros, realizados às 11 da manhã. Neste período foram exatas 50 reuniões. Pouco mais de 10% de presença reprova qualquer um.

E se havia tanta "interferência do Planalto", "pressão insuportável", por que o jornalista demitido não pediu demissão antes? Por que a redação não saiu toda junto com ele, como, em carta enviada à direção da empresa, ele tinha dito que iria acontecer?

Mais detalhes: a "vítima" alega que foi pressionanda por uma "interventora do Planalto". O repórter que ouve isso, então, faz o quê? Comprova as acusações, certo? Se houve pressão em favor do governo, é só ver as reportagens e como elas saíram. Os VTs estão no You Tube. Então dá pra verificar se a acusação é séria sem sair da cadeira. Ótimo, até para o jornalismo preguiçoso.

Mas que está nas matérias é só outro detalhe. Oposição falando que é dossiê, governo dizendo que é base de dados. O que faz a TV Brasil? Mostra as duas versões, sem tomar uma delas como definitiva. Não se apropria dos termos que denotam acreditar num ou noutro lado. Fraca a interventora, não? Lê todos os textos e não publica a versão do governo. E permite os dois lados darem suas versões…

E a história da CPMF? A pauta surgiu de uma entrevista do presidente do Conselho Nacional de Saúde na Rádio Nacional, na qual ele alertava: com aquele orçamento, depois do corte motivado pela queda da CPMF, o dinheiro acabaria antes que o ano. Pauta aprovada na reunião – neste dia, na presença do editor-chefe. No ar, a reportagem mostrou filas, gente chorando, hospitais aos pedaços. Dizia que o dinheiro acabaria em setembro, mas não citava a CPMF. Ora: matérias precisam responder, sempre, os tais "quem, que, como, onde, quando e por que". Faltava o último item. Logo, havia uma falha nela.

O que chegou ao telespectador foi uma reportagem com as mazelas da saúde sem falar no corte da CPMF. Virou prova de "censura" e "jornalismo chapa branca". Errado. Se foi ao ar (e foi), não houve censura. E não foi chapa branca; foi chapa preta. E como a chapa da TV Pública não tem cor, os responsáveis foram advertidos. Quem aprovou o VT não foi a "interventora". Foi o editor-chefe. Mas isso é só mais um detalhe.

A "interventora" tem mais de 15 anos de experiência em redações de TV em Brasília. É, sim, casada com um assessor do Planalto. Mas o que é que isso prova? James Carvile, famoso conselheiro de Bill Clinton (o que cunhou a frase "é a economia, estúpido") é casado com Mary Matalin, consultora política do partido republicano, adversário de Clinton. Casamento não é problema para gente que tem ética. Geralmente é para quem não tem.

Se há interferência, ela precisa aparecer em algum lugar. Além, claro, da cabeça do jornalista demitido e da manchete dos jornais.

O jornalista demitido alega que não tinha liberdade de sequer escrever manchetes. Pois bem: os veículos que publicaram a história se importariam de contar ao leitor como são escritas as suas próprias manchetes? Alguém faz isso sozinho? Ou passa por uma série de pessoas, num processo de revisão editorial? É assim em qualquer redação, por questão de controle de qualidade. Jornalismo é atividade conjunta, ainda mais numa emissora pública. Mais até num veículo em formação, no qual turnos de 12 ou 14 horas por dia, para as chefias, têm sido comuns. Menos para o editor-chefe.

A melhor resposta a qualquer acusação de partidarismo ou interferência na TV Brasil vai ao ar todos os dias, às oito da manhã e às nove da noite, nas duas edições do Repórter Brasil, nas emissoras públicas de 21 estados brasileiros. Também está nos noticiário difundido por mais de 500 emissoras de rádio, da Rede Nacional de Rádio. E no conteúdo da Agência Brasil, republicado por incontáveis jornais e na sua própria página na internet. Todos são veículos EBC. Não temos vergonha do jornalismo que praticamos. Não temos constrangimento. Nem preguiça.

* Eduardo Castro é gerente executivo de jornalismo da EBC – Empresa Brasil de Comunicação.