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Exercício de futurologia: O que esperar de 2009

Aproveitando a mudança de calendário e seguindo uma velha praxe, tenho feito um "balanço" seletivo do setor de comunicações quando o janeiro seguinte se aproxima. Na verdade, no final de 2007, exagerei na medida e cometi três longos textos cobrindo 16 áreas e dedicando um artigo inteiro a manifestações de lideranças internacionais sobre o papel da mídia [ver "Balanço 2007: As críticas de Gore e Blair à grande mídia", "Mais recuos do que avanços" e "Algumas novidades e poucos progressos"].

Depois de reler os balanços anteriores decidi que é hora de quebrar essa seqüência: eles começaram a ficar repetitivos. Apesar das intensas mudanças tecnológicas e, até mesmo, de alguns poucos avanços institucionais, não me parece que tenha havido alteração política significativa no setor.

No ano em que se celebraram (ou não?) os "200 anos da Imprensa no Brasil" e os "20 anos da Constituição", a reflexão crítica dominante foi exatamente de que a maioria dos atores que historicamente "dão as cartas" na formulação das políticas públicas e a maioria dos problemas das comunicações continuam basicamente os mesmos.

Ao invés de "balanço de final de ano" decidi, então, olhar para frente, fazer prospecção, futurologia. Claro, isso só é possível a partir de uma avaliação do presente. Claro também que se erra menos quando se avalia o que passou. No entanto, como o futuro do passado tem sido irritantemente parecido, talvez antecipar o futuro do presente não seja tão impossível.

De qualquer maneira, aí vão minhas primeiras especulações, listadas aleatoriamente. O que não acontecer, para o bem ou para o mal, fica apenas na conta de mais uma previsão que fracassou.

1. O futuro dos "jornalões"

É verdade: na contramão do que acontece em países como os EUA, houve entre nós um crescimento importante da chamada imprensa popular na esteira da vigorosa inclusão de setores das classes C e D ao mercado de consumo, nos últimos anos. No que se refere aos "jornalões" da grande mídia, no entanto, nunca foi tão verdadeira a frase de Bernardo Kucinski escrita anos atrás:

"…a elite dominante é ao mesmo tempo a fonte, a protagonista e a leitora das notícias; uma circularidade que exclui a massa da população da dimensão escrita do espaço público definido pelos meios de comunicação de massa".

Os "jornalões" estão, cada vez mais, falando para si mesmos. Daí a enorme perda do seu poder de "formar opinião".

Será possível prosseguir contando amanhã a notícia que todos já conhecem hoje? A mídia impressa terá obrigatoriamente que se reinventar e repensar seu papel na sociedade e, não há dúvida, a sua credibilidade passará a ser um fator determinante na batalha da sobrevivência.

2. O laboratório dos novos conceitos jurídicos

No ano que termina tornaram-se presentes no debate público conceitos como liberdade de expressão comercial e teses como a que desobriga o sistema privado de mídia de sua responsabilidade em relação ao interesse público. O atendimento deste seria tarefa apenas dos sistemas público e estatal.

O laboratório de "balões de ensaio" jurídico continuará a funcionar a todo vapor em 2009. O que seus patrocinadores desejam é transformar esses conceitos e teses em novas normas legais. Não é simples, mas também não é impossível que aconteça.

3. O avanço da internet

A inclusão digital continuará a surpreender positivamente. A informação online – de todo tipo – estará cada vez mais disponível a preços acessíveis tanto nos computadores como nos celulares que, aliás, já se transformaram em minicomputadores portáteis. Milhões e milhões de brasileiros(as) já fazem parte de uma geração socializada com a presença (dominante?) da internet: em casa, no vizinho, no amigo, no trabalho, nas lan-houses, nos centros de cultura, nas igrejas etc., etc.

Um exemplo: as notícias não chegam mais pelo jornal impresso no café da manhã ou pelo telejornal da TV, à noite. Escolhe-se o assunto e a operadora de telefonia móvel, diretamente ou através de parceria com uma agência noticiosa, envia para o celular do assinante torpedos SMS com as informações selecionadas, 24 horas por dia.

As conseqüências dessa imensa revolução ainda não foram totalmente "digeridas" pela mídia impressa ou pela televisão (o rádio "corre por fora" e sobre ele falaremos depois).

4. A batalha das idéias

Os concessionários privados de radiodifusão continuarão a recorrer ao fantasma da censura e da ameaça à liberdade de expressão como forma de interditar o debate sobre os avanços necessários na democratização do setor. Essa tem sido a forma recorrente de se estabelecer a confusão sobre o que de fato está em questão.

Assistiremos, simultaneamente, a um revigoramento da defesa do status quo midiático que, aliás, já está em andamento. Porta-vozes intelectualmente sofisticados defendem bandeiras há décadas caducas, por intermédio de colunas, artigos e comentários. Claro, essa defesa continuará a proteger os interesses daqueles que resistem historicamente à democratização das comunicações entre nós.

5. O fator Obama

Se Barack Obama cumprir as promessas de campanha para o setor de comunicações, sua posse na presidência dos Estados Unidos, em 20 de janeiro de 2009, deverá ter repercussões positivas, inclusive, no Brasil. Espera-se que sejam criadas novas regras para (1) garantir acesso aberto à internet para todos os domicílios e empresas, urbanas e rurais, ricas e pobres; (2) impedir maior concentração da grande mídia e, ao mesmo tempo, incentivar e fortalecer a mídia local independente – jornais, emissoras de rádio e televisão; e (3) financiar a mídia pública e comunitária, assim como a outros grupos não-comerciais.

O "efeito demonstração" potencial que a adoção dessas políticas nos EUA teria no Brasil não deve ser subestimado. Os atores locais eternamente contrários às medidas democratizantes perderiam uma de suas principais referências

[Continua na próxima edição.]

* Venício A. de Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007).

MPF x Rede TV!: A liberdade de comunicação não é absoluta

O Ministério Público Federal (MPF), por intermédio da procuradora Regional dos Direitos do Cidadão, Adriana da Silva Fernandes, ajuizou na segunda-feira (1), na Vara Cível da 1ª Subseção Judiciária de São Paulo, uma Ação Civil Pública (ACP) contra a Rede TV!, em função da cobertura "jornalística" do seqüestro de Santo André (ver, neste Observatório, "As lições do caso Santo André" ).

Duas foram as razões básicas apresentadas: primeiro que, embora já tivesse sido advertida, a concessionária exibiu, sem autorização judicial, no dia 15 de outubro, entrevista "ao vivo" com a adolescente Eloá Cristina Pimentel, que estava sendo mantida refém pelo ex-namorado, transformando-a, junto com o seqüestrador, numa das atrações principais do programa “A Tarde é Sua”; e, segundo, que analisado o conteúdo da entrevista, verificou-se que a RedeTV! cometeu ato abusivo, explorando, durante quase uma hora, a situação em que se encontravam as adolescentes Eloá, sua amiga Nayara e Lindemberg Alves, ex-namorado da primeira, interferindo, indevidamente, em investigação policial em curso.

O MPF requereu que a Rede TV! seja condenada ao pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de 1,5 milhão de reais, acrescidos de juros moratórios e correção monetária, valor que deverá ser revertido ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos [o texto completo da Ação Civil Pública pode ser lido aqui ].

Noticia-se que a Rede TV! só se manifestará após ser notificada. A concessionária, no entanto, reafirmou que "sempre defendeu a liberdade de expressão e o não cerceamento do direito do jornalismo informar os telespectadores". Segundo sua assessoria de comunicação, "a iniciativa do MPF é uma forma velada de censura".

Reafirmação de princípios legais

Ao justificar sua competência para tratar do caso, o MPF lembra que a RedeTV! é concessionária de um serviço público federal e que faz parte de suas funções constitucionais "a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis". Além disso, a Lei Complementar que dispõe sobre as atribuições do MP lhe atribui expressamente "zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos da União e dos serviços de relevância pública e dos meios de comunicação social aos princípios, garantias, condições, direitos, deveres e vedações previstos na Constituição Federal e na lei, relativos à comunicação social".

Por outro lado, quando apresenta as razões de direito, são reafirmados princípios normativos sempre presentes no debate sobre a regulação da mídia e recorrentemente questionados pelos representantes do sistema privado de radiodifusão (ver "Novo conceito jurídico para sistema privado de TV" ): os limites da liberdade de imprensa; o caráter de serviço público das concessionárias e sua conseqüente subordinação ao direito público; e a necessidade de controle democrático no interesse da sociedade. Vale a longa citação:

"A Constituição Federal garante plenamente a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento, de criação, de expressão e de informação, vedando qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística (art. 220, caput e § 2º). No entanto a liberdade de comunicação social não é absoluta, devendo estar em compasso com outros direitos inseridos na Constituição Federal, dentre eles o direito à privacidade, à imagem e à intimidade dos indivíduos (art. 220, § 1º e art. 5º, X), bem como os valores éticos e sociais da pessoa e da família (art. 221, IV).

Ademais, o art. 53 da Lei 4.117/62 declara que constitui abuso, no exercício da liberdade de radiodifusão, o emprego desse meio de comunicação para a prática de crime ou contravenção previstos na legislação em vigor no País, inclusive para incitar a desobediência às leis ou decisões judiciárias; comprometer as relações internacionais do País, ofender a moral familiar, pública, ou os bons costumes; colaborar na prática de rebeldia desordens ou manifestações proibidas.

É importante dizer que, ao contrário do que pensa o senso-comum, a Ré não é "proprietária" do canal em que opera. É, na verdade, uma concessionária do serviço público federal de radiodifusão de sons e imagens, e, como tal, está sujeita às normas de direito público que regulam este setor da ordem social.

Justifica-se o regime jurídico de direito público porque, diversamente do que acontece nas mídias escritas, as emissoras de rádio e TV operam um bem público escasso: o espectro de ondas eletromagnéticas por onde se propagam os sons e as imagens. Trata-se de um bem público de interesse de todos os brasileiros, pois somente por intermédio da televisão e do rádio é possível a plena circulação de idéias no país. A liberdade de comunicação deverá ser protegida sempre que cumprir sua função social, mas será submetida a controle quando incorrer em abuso. Referida liberdade é uma garantia instituída pela sociedade e para a sociedade, não se podendo admitir, portanto, que seja utilizada contra esta".

Certamente existem muitas outras razões para a regulação e a fiscalização democráticas do conteúdo e da programação das empresas concessionárias de radiodifusão, inclusive, de coberturas "jornalísticas" de episódios como o seqüestro de Santo André.

Mídia e violência

A BBC Brasil, por exemplo, divulgou em 20 de novembro passado, após o caso Eloá, os primeiros resultados de uma longa pesquisa realizada por professores da Rutgers University, nos EUA, que vincula a violência na mídia a agressividade em jovens. Esse vínculo tem sido reconhecido por especialistas nos últimos 40 anos.

No estudo, foram entrevistados 820 adolescentes do estado de Michigan. Destes, 430 eram alunos do ensino médio de comunidades rurais, suburbanas e urbanas. Outros 390 eram delinqüentes juvenis detidos em instituições municipais e estaduais, distribuídos equilibradamente entre os sexos masculino e feminino. Pais ou guardiões de 720 deles também foram entrevistados, assim como os professores ou funcionários que lidavam com 717 dos jovens.

A pesquisa revela que mesmo considerando outros fatores como talento acadêmico, exposição à violência na comunidade ou problemas emocionais, a "preferência por mídia violenta na infância e adolescência contribuiu significativamente para a previsão de violência e agressão em geral". E conclui: "você é o que assiste", quando se trata da população jovem (disponível aqui).

Reponsabilização legal

Não se sabe se o juiz da Vara Cível da 1ª Subseção Judiciária de São Paulo vai ou não acatar a ação proposta. A iniciativa do MPF paulista, no entanto, mostra – como já comprovado em outras poucas ocasiões – que, dentro do atual arcabouço legal, existe a possibilidade de ações em defesa de direitos fundamentais do cidadão.

Mesmo que o sistema privado de radiodifusão prossiga na sua tentativa de confundir a questão evocando o fantasma da censura, é reconfortante saber que o MP está cumprindo o seu dever e pode, sim, responsabilizar legalmente os concessionários de radiodifusão pelos abusos que cometem.

* Venício A. de Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007).

Informação pública: Acesso difícil e sem regulamentação

Duas reportagens (ver aqui e aqui ) que abriram a seção "Nacional" do jornal “O Estado de S.Paulo” no sábado (29/11) noticiaram a promessa do governo federal de enviar ao Congresso, no início de 2009, um projeto de lei para regulamentar o acesso a informações públicas. Na segunda-feira seguinte (1/12), os jornais (ver aqui e aqui ) perseguiram o assunto.

A proposta, de acordo com reportagem [ver aqui] de 1º de dezembro da “Folha de S.Paulo” assinada por Letícia Sander, "terá duas vertentes: uma estabelecerá novas regras sobre o segredo de determinadas informações e outra regulamentará o acesso a dados de órgãos públicos em geral, algo inédito até então no país".

A reportagem da “Folha” dedica apenas dois parágrafos à segunda vertente, na segunda metade do texto. Na página que revelou o assunto, o “Estado” também privilegia a primeira vertente [ver aqui] , já que a matéria intitulada "Projeto reduz prazo de sigilo de documentos", assinada por Felipe Recondo, está no alto da página. No pé, "da Redação", vem o texto que trata do acesso a dados públicos em geral.

James Bond

Compreende-se que a possibilidade de se ter acesso a documentos altamente sigilosos é algo palpitante para jornalistas. Resta um quê de James Bond no ar quando são mencionados os termos "arquivos", "secreto", "sigiloso". Há também, evidentemente, um legítimo interesse historiográfico.

Porém, ao destacarem as regras sobre a classificação de documentos, os jornais deixaram de lado a porção mais importante da proposta. A regulamentação do acesso a dados públicos em geral é demanda antiga de diversos setores da sociedade. E fonte de inúmeras possibilidades de reportagens, que podem ser tão palpitantes quanto arquivos secretos. Porque são informações sobre o mundo atual, a respeito de fatos que afetam milhões de pessoas ainda vivas – potenciais fontes e potenciais leitores/ouvintes/telespectadores.

Dom Quixote

Fora do eixo Rio-São Paulo-Brasília, um jornal descobriu o potencial de boas reportagens a partir de dados públicos e luta quixotescamente para obter acesso às informações. Há mais de um ano, o jornal “O Estado”, de Mato Grosso do Sul, questiona a Assembléia Legislativa daquele estado e o Tribunal de Contas estadual sobre gastos com pessoas jurídicas terceirizadas, nas duas Casas.

Por conta da insistência no tema, o jornalista Humberto Marques foi expulso [ver aqui] da Assembléia Legislativa sul-mato-grossense pelo presidente da Casa, deputado Jerson Domingos, em novembro (dias depois o parlamentar se penitenciou e permitiu o acesso do repórter à Casa). No início de dezembro, foi a vez de o presidente do Tribunal de Contas se indispor [ver aqui] com o jornal. Isso depois de ter dito ao diário que fosse buscar com o cantor e compositor Roberto Carlos os "detalhes" dos gastos públicos [ver aqui] .

A importância do acesso a dados públicos é mais bem compreendida em países que têm tradição em prestação de contas por parte do poder público. Nos Estados Unidos, conhecidos por ter uma lei de acesso que é referência no mundo, não são admitidas recusas ao acesso a informações públicas.

Na quarta-feira (3/12),a Associated Press noticiou que as organizações MAPLight.org e California First Amendment Coalition processaram a Casa Legislativa da Califórnia por terem sido impedidas de obter dados sobre os parlamentares estaduais e sobre como eles se posicionaram em determinadas votações.

Futuro

Por aqui, enquanto a lei de acesso não vem, cabe às organizações e à imprensa exercer pressão sobre o poder público. Tanto no momento de solicitarem as informações públicas, como no instante em que se der início o debate sobre os contornos da nova lei.

É preciso atenção para que as novas regras sejam claras sobre o prazo para que a informação solicitada seja entregue. A lei também deverá prever punição para o servidor que se recusar a fornecer os dados ou que repassá-los incompleta ou inadequadamente.

O jogo começou. Do outro lado, haverá gente disposta a promover pequenas mudanças para deixar tudo como está. Cabe à sociedade brasileira brigar para que a lei de acesso seja de fato um avanço. A imprensa, mais uma vez, terá papel fundamental.

* Fabiano Angélico é jornalista e coordenador de projetos da Transparência Brasil.

A quem pertence o direito do autor?

À frente do Ministério da Cultura, Gilberto Gil pautou, em vários ambientes e fóruns, a questão dos direitos autorais. As diretrizes do Plano Nacional de Cultura apontam para a reformulação da legislação. Órgãos recolhedores e sociedades de autor estão sob a mira dos artistas e especialistas no tema. A Organização Mundial da Propriedade Intelectual é questionada em relação à sua legitimidade. O Creative Commons surge como uma importante plataforma de defesa da chamada Cultura Livre, mas está longe de ser unânime, como aponta o artigo de Flavio Paiva, nesta edição. Especialistas em economia criativa dizem que o mercado da propriedade intelectual é bom para países “em desenvolvimento”, embora o Brasil sustente há anos os países mais ricos na exploração desses direitos.

O assunto é polêmico e merece uma discussão ampla, com espaço para vozes dissonantes. As várias nuances e dimensões da questão precisam ser confrontadas, pois está chegando a hora do país enfrentar as contradições do sistema de propriedade intelectual – que são contradições do capitalismo, diga-se – e optar por uma plataforma que contemple a diversidade cultural e o acesso amplo à cultura, que permita o desenvolvimento de suas indústrias culturais e que posicione o país em torno de um modelo de desenvolvimento sustentável, não somente para si, mas também para povos e nações menos favorecidas.

Do ponto de vista do criador é preciso dar mais autonomia para o autor decidir sobre a sua obra, muitas vezes tomadas unicamente em prol de interesses das indústrias culturais, apropriando-se via contratos de cessão de direitos patrimoniais. Desde que Walt Disney criou o Mickey e o licenciou para uma indústria de relógios que a indústria cultural vive dessa exploração, hoje de maneira muito mais sofisticada e voraz. Há ainda os sistemas de arrecadação e controle, que devem atuar em benefício do autor, mas não contra toda a sociedade que precisa acessar a sua obra.

Para um país e sua política interna e externa é preciso garantir ao autor a sua capacidade de criar e viver de sua obra, ao público o acesso a esta e de todas as outras obras produzidas pela humanidade. Ao mesmo tempo, pode permitir o surgimento de uma indústria de cultura local, que explore comercialmente as criações locais e distribua seus conteúdos pelo mundo, gerando empregos e divisas para o país. Pode também oferecer o seu mercado interno às indústrias culturais estrangeiras, que se beneficiam de infra-estrutura, benefícios fiscais e condições favoráveis à difusão de seus produtos de entretenimento, com remessas de lucro para seus países de origem, nos termos dos tratados internacionais. E pode ser tudo isso ao mesmo tempo, desde que o foco seja o bem estar social (de todos).

Como não estamos aqui para fechar nenhuma questão, perguntamos:

– Qual o modelo de gestão de propriedade intelectual mais interessante para o Brasil?

– Como lidar com o incentivo às indústrias culturais locais em relação às multinacionais?

– Como garantir acesso à população com um sistema proprietário, que eleva o preço dos conteúdos culturais?

A Queda da Bastilha e a nova ordem audiovisual

Se é verdade que "o poder se toma nas telas", como se gosta de dizer no meio cinematográfico, chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor. Nunca antes na história deste planeta houve ambiente tão favorável a isso. A nova ordem audiovisual vem em ondas, avassaladoramente, e já pode ser vista da praia. Chega carregada pelos ventos da popularização das câmeras de vídeo [embutidas nas máquinas fotográficas ou nos celulares], sem dúvida. Mas também pela multiplicação de janelas de exibição [do YouTube a soluções brasileiras como o Videolog], pelo alastramento de festivais dedicados a novatos [Favela é Isso Aí, de Beagá; Ver e Fazer Filmes, de Cataguases; FestFavela, do Rio] e a proliferação de ferramentas de edição simples e gratuitas e de cursos online. No conjunto da obra, trata-se de um movimento histórico, sim.

Que se reflete na abertura progressiva de espaços em canais tradicionalmente engessados, como a televisão. E vai levar, queira-se ou não, a uma Tomada da Bastilha audiovisual: uma derrubada de muros que abre à sociedade uma oportunidade concreta de que ela ocupe espaços e se sinta parte de um patrimônio que é seu: a televisão. Dois novos movimentos [complementares] ajudam a ilustrar isso. De um lado, a cineasta Laís Bodanzky e seu marido, o roteirista Luís Bolognesi, abrem nova frente na educação audiovisual com o início das operações do Tela Brasil, uma plataforma de oficinas à distância que disseca a engrenagem da realização de um filme. Laís e Luís pavimentam este caminho há 12 anos, desde os idos de Cine Mambembe, uma experiência de exibição de curtas-metragens em praça pública. O que começou com uma Saveiro e um projetor 16mm tornou-se, hoje, uma sala de cinema itinerante com 225 cadeiras, ar-condicionado, sistema de som surround e projetor 35mm, em cinemascope – em moldes parecidos com o padrão Universo Produções, na Mostra de Tiradentes.

A diferença entre o início do projeto e o seu upgrade em 2004 foi tanta que optou-se pela mudança de nome. É quando nasce o Cine Tela Brasil. Um e outro guardam uma característica comum: a realização de curtas-metragens a partir de oficinas produzidas com as comunidades dos locais de exibição. Que agora ganham este braço virtual, capaz de guiar neófitos pelos caminhos da produção, do roteiro, da fotografia, da direção, da trilha sonora e da montagem. São cursos de iniciação, evidentemente. Para curiosos em geral – e gente que gosta de aprender fazendo em particular. A diferença é de escala e geografia: é pra quem quiser e onde estiver, via www.telabr.com.br. A formação de jovens realizadores nas periferias e grotões do Brasil é um trabalho exercitado há duas décadas pela produtora Zita Carvalhosa e sua Kinoforum, de São Paulo. É ela uma das figuras-chave na segunda ação importante que nos bate à porta – a partir de hoje [www.teladigital.org.br].

Trata-se do festival Tela Digital, idéia gestada pelo intrépido cineasta baiano José Araripe Jr. e operacionalizada pela Kinoforum, sob demanda da TV Brasil. A palavra de ordem do festival é "desentube-se". Um convite explícito para que o realizador não-profissional corra o risco de ver seu vídeo na televisão, e não apenas na Internet. É um movimento semelhante ao que alimenta o canal FizTV, da editora Abril. Com uma diferença fundamental: agora na TV aberta, com exibição remunerada e R$ 60 mil em prêmios. A operação encabeçada pela Kinoforum une duas experiências bem-sucedidas no circuito formal: o Festival Internacional de Curtas de São Paulo e o Festival do Minuto. É deste segundo a tecnologia usada para a postagem de vídeos, que permitirá o recebimento e o julgamento online de todo processo.

A TV Brasil acenou para este caminho em dois momentos ao longo de 2008, com um sistema pioneiro de upload de vídeos no seu hotsite durante o Carnaval, reproduzido mais tarde nos festejos de São João. Os mais interessantes foram parar na televisão. É um movimento sem volta, este. Que deixa um recado claríssimo: ou a televisão se abre para a sociedade e estabelece uma nova dinâmica com ela, ou a sociedade vai migrar de vez [como já vem fazendo] para a internet. Não é apenas uma estratégia de sobrevivência, mas de renovação. E é de se festejar a infinitude de possibilidades que se abre a partir disso, de uma arejada nas idéias emboloradas da televisão que se faz hoje mundo afora.