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A grande imprensa e o profissionalismo. Profissionalismo?

Das críticas que se faz à grande imprensa, há sempre uma constante: a mídia teria abdicado de toda e qualquer imparcialidade, para cumprir o mandamento patronal de jamais conceder ao governo; ou à imagem que ela própria construiu do governo. Fala-se pouco ou quase nada de um problema cada vez mais crônico – a absoluta, a quase inacreditável falta de profissionalismo na composição do que cada dia se caracteriza mais em mais, como tão somente, armações jornalísticas. Ao que parece, aquele aforismo de Voltaire :"Menti, menti, algo restará" seria ainda aplicável num mundo informatizado e, bem pior, num país em que a cada ataque ao presidente Lula, mais e mais a sua popularidade aumenta.

Franklin Martins, quando ainda não era ministro, disse sobre a revista "Veja" (de quem ele ganhou um processo por injúria e difamação), que a "Veja era a maior inimiga da Veja". Seria de se lembrar a recente capa da revista em que à evidência de que o Itamaraty iria vencer a parada em Honduras, era insistiu em que a condução do "affair" pelo Ministério de Relações Exteriores do Brasil, era um rotundo fracasso? Será que algum jornalista ou editor da revista acha mesmo que sem o apoio expresso dos Estados Unidos, os golpistas de Honduras conseguirão se impor?

Nenhuma destas perguntas são respondíveis. Fica só a evidência de que não apenas a Veja mas os jornais e revistas do País, em sua esmagadora maioria, são mesmo inimigos de si próprios. O fato intriga. Para qualquer sujeito de meia idade que cumpriu boa parte de seus anos de jornalismo nos jornalões e revistonas brasileiras, nunca era evidente, que o que se queria seria, realmente, a verdade. Talvez seja especioso discutir se grande parte da população brasileira era a favor da ditadura militar; no entanto, era razoável que se admitisse o fato. Só que não eram poucos os jornalistas mais velhos, os decanos das redações, que, mesmo não sendo favoráveis à milicada e ao seu regime, insistiam na tese de que o povão bem que o tolerava. Vivia-se o pleno emprego: que diferença fazia que, além dos presos comuns de sempre, jovens militantes e velhos homens de esquerda, estivessem sendo massacrados nos presídios? Para quem trabalhou na mídia da época, era decepcionante, mas era isso mesmo. Não havia como escamotear o fato, a inventar uma revolta que o povo não sentia.

Digamos, então, que a pauta para investigar a grande imprensa hoje deva ser a seguinte: até onde os coleguinhas – fala-se daqueles mais velhos – acreditam no que escrevem? E por que mesmo que a todo o momento exigem a chancela patronal para exporem seus pontos de vista? A isso soma-se um fato ainda mais constrangedor: onde é mesmo que a palavra profissionalismo entra nesta história, se a dimensão da farsa é muito maior que as evidências que inventam o contrário?

São tantos os fatos, que é até fastidioso lembrá-los: não haveria memória para tanto. Pode-se, contudo, tomar qualquer caso ao acaso. Até quando se os rememora, alguns são simplesmente estarrecedores. Na época em que os jornais e revistonas estamparam em letras garrafais a famosa compra do dossiê, em que o hoje governador Serra teria sido investigado, tudo circulou em torno do montante do dinheiro mobilizado. Teoricamente, o pagamento adviria de uma estatal ou de qualquer fonte nunca esclarecida. Até aí, porém, é de se perguntar se essa seria toda a questão.

Pois o inacreditável, em todo o caso, foi o fato certamente inédito na história do jornalismo mundial: eis que a compra do dossiê seria muito mais importante que o dossiê em si. Que jornalismo pode se explicar como tal, ao não se preocupar com as possíveis revelações contidas no tal dossiê, se isso sequer entrou em cogitação? Tudo bem: como disse o presidente Lula -o único que disse alguma coisa, aliás – não havia nada no tal dossiê que realmente pudesse interessar a quem quer que fosse. Mas afora a consideração presidencial, o interesse jornalístico impositivo pelo que o dossiê pudesse conter – esse não foi mencionado ou sugerido uma vez sequer. Era mentira, era irrelevante em princípio, ponto final.

As coisas extrapolam o mínimo. No factóide que foi a denúncia da ex-secretária da Receita Federal que teria se encontrado com com a ministra Dilma Roussef , ocasião em que esta lhe teria pedido "pressa" na apuração de supostos crimes cometidos por José Sarney, a ninguém foi dado saber do princípio jurídico que o "ônus da prova" estaria com a acusadora e não com a acusada. E que quando o Planalto, enfim, encerrou a questão – justamente pela razão que a Justiça lhe dava – não faltaram professores a impingir à ministra a suspeita das irregularidades. Um professor da USP abandonou qualquer bom senso ao insistir, numa entrevista na rádio Cultura, que cabia à Ministra "dirimir as suspeitas".

Pois eram "evidentes", pela prova nenhuma, que a ex-secretária tinha apresentado, que a ministra era suspeita, em princípio. Uma comentarista da CBN, ao admitir que a tal ex-secretária não tinha conseguido convencer ninguém na CPI, nem por isso hesitou um só instante de reiterar, mesmo assim, que a ministra teria "de se explicar". Não é o caso de se exigir um mínimo de proficiência profissional – mas, convenhamos, o despudor tem limites.

Falar em despudor talvez seja de se supor que ele exista. E que a partícula de negação – des – só se aplicasse ao caso, excepcionalmente. Pois haveria ainda que rememorar a interpretação do famoso "top-top" do assessor especial do presidente, o professor Marco Aurélio Garcia, que teria sido flagrado a dirigir os gestos obscenos "às vítimas do avião da TAM" (sic). Nenhum jornalista minimamente probo assacaria que os gestos do assessor da presidência, feito na privacidade de seu gabinete, deveria ser lido como tendo sido endereçado aos passageiros mortos no desastre aéreo. As imagens diziam o que as televisões e as rádios quiseram ver, não o que era mais que evidente: que o sr. Marco Aurélio Garcia xingava justamente as interpretações da grande imprensa; que só faltou dizer que quem tinha derrubado o avião teria sido o presidente Lula. No entanto, propalada a versão mentirosa, tudo ficou ao vento. E aí sim, em conformidade com a máxima voltariana, de que a mentira, repetida muitas vezes, pode alçar vôos mais altos, principalmente para os incautos que gostam de se iludir.

Talvez se possa inferir que tudo da grande imprensa seja mentira -e então nada do que é veiculado pela mídia seria verdadeiro. É um evidente exagero – mas não parece um evidente exagero arriscar que a divulgação do conteúdo da prova do Enem, veio muito bem a calhar. obrigado. Eis que uma empresa jornalística que comanda a gráfica de onde foram surrupiadas as provas, não tem nada a ver com o fato, embora seja, como quase toda a mídia, "de oposição". O que até pode ser verdadeiro, ou seja, que o gráfica não tem nada a ver com o fato. Mas imaginar que alguém possa supor, tranqüilamente, que os autores do crime pensassem em tirar dinheiro do "Estadão"- para o qual foi revelado o conteúdo do Enem- e não de gente que, realmente, pudesse e tivesse interesse em comprá-lo, vai uma distância que só o delegado que presidiu o inquérito não quis ver. Mas que, de qualquer forma, adiou a questão da solução dos vestibulares para um futuro, que talvez contemple o governo Lula com "mais essa": ele não avançou em nada na questão dos vestibulares. E a rapidez com que algumas universidades descartaram se vincularem ao Enem, pode ser lida, sim, como o motivo para não dar ao governo federal qualquer mérito por mexer com o candente problema do vestibular. Ou seja, nada de inquirições para o caso – tão somente a aceitação dos fatos. Não é coisa de profissionais de jornalismo certamente : mas não o será de uma imprensa que a todo o momento se mostra inegavelmente golpista?

Quem tem cerca de 60 anos, já viu esse filme algumas vezes. E como se dizia antigamente, não passa de um tremendo abacaxi.

P.S. Talvez fosse o caso de se ressaltar que a grande imprensa tem o poder de ainda influir sobre a cultura do Brasil. E que os artistas são os primeiros a perderem com isso. Dói, mas é isso mesmo. Daí, entretanto, tantos intelectuais se jogarem à execração do futuro (não é preciso mencioná-los, eles estão nos jornalões a vociferarem contra o governo Lula) só se explica por não acreditarem em si mesmos. O que só confirma Beethoven na sua crítica aos poetas (que vale para todos os que trocam tudo por um espaço na mídia brasileira): eles amam em demasia as lantejoulas da corte para serem levados a sério. A começar pelo futuro.

* Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

A mídia como partido político

O jornalista Luiz Carlos Azenha transcreve em seu blog Vi o Mundo matéria publicada no The Nation no domingo (11/10) [ver aqui] repercutindo entrevista que a diretora de Comunicações da Casa Branca, Annita Dunn, concedeu à rede de televisão CNN e também declarações feitas a repórteres do The New York Times, nas quais ela afirma:

"A rede Fox News opera, praticamente, ou como o setor de pesquisas ou como o setor de comunicações do Partido Republicano" (…) "não precisamos fingir que [a Fox] seria empresa comercial de comunicações do mesmo tipo que a CNN."

"A rede Fox está em guerra contra Barack Obama e a Casa Branca, [e] não precisamos fingir que o modo como essa organização trabalha seria o modo que dá legitimidade ao trabalho jornalístico."

E disse mais:

"Quando o presidente [Barack Obama] fala à Fox, já sabe que não falará à imprensa, propriamente dita. O presidente já sabe que estará como num debate com o partido da oposição."

Em matéria sobre o mesmo tema publicada na revista Time [ver aqui] e também reproduzida no site do Azenha [ver aqui], Michael Scherer escreve:

"Em vez de facilitar a vida dos jornalistas, oferecendo-lhes fatos que os jornais e jornalistas usam em seguida como se fossem `prova´ do que escreveriam contra Obama, mesmo sem qualquer verificação ou sem qualquer prova, a Casa Branca decidiu entrar no jogo e criticar mordazmente o jornalismo de futricas, os políticos e os veículos que vivem de publicar bobagens, ou mentiras, ou invenções completamente nascidas das cabeças dos `jornalistas´(…)."

O que há de novo?

A rede de televisão Fox, como se sabe, faz parte da News Corporation de Rudolph Murdoch. Há quase cinco anos escrevi, aqui mesmo no Observatório:

"O comportamento conservador dos veículos do grupo News Corporation – um dos maiores conglomerados de mídia do planeta, controlado pelo magnata Rupert Murdoch – não é novidade para quem acompanha as análises sobre o jornalismo contemporâneo.

Recentemente foi lançado nos EUA um documentário intitulado Outfoxed: Rupert Murdoch´s War on Journalism, produzido e dirigido por Robert Greenwald. Baseado numa análise de vários meses dos noticiários da Fox – que já superou a CNN em termos de audiência – e em depoimentos de produtores, repórteres e escritores que trabalharam na emissora, Greenwald demonstra como a Fox tem servido de porta-voz dos grupos radicais de direita através da rotinização de procedimentos de propaganda e controle interno do seu jornalismo" [ver "Rumo ao monopólio da TV paga"].

O que constitui novidade, portanto, não é a posição da Fox. A novidade é a atitude do governo Barack Obama de enfrentar publicamente a Fox e nomeá-la com todas as letras pelo papel que realmente vem desempenhando, isto é, o papel de um partido político de oposição.

Mídia como partido político

Creio ter sido Antonio Gramsci (1891-1937), referindo-se à imprensa italiana do início do século 20, quem primeiro chamou a atenção para o fato de que os jornais se transformaram nos verdadeiros partidos políticos. Muitos anos depois, Octavio Ianni (1926-2004) cognominou a mídia de "o Príncipe eletrônico".

Na Ciência Política contemporânea, apesar de toda a resistência em problematizar "a construção coletiva das preferências" no debate teórico sobre a democracia, creio que já se admite que a mídia venha, historicamente, substituindo os partidos políticos em algumas de suas funções tradicionais como, por exemplo, construir a agenda pública (agendamento); gerar e transmitir informações políticas; fiscalizar as ações de governo; exercer a crítica das políticas públicas e canalizar as demandas da população [ver "Revisitando as sete teses sobre mídia e política no Brasil"].

No momento em que governos, em princípio democráticos, sobretudo na América Latina, propõem o debate (caso da Conferência Nacional de Comunicação, no Brasil) ou a regulação dentro das regras do Estado de Direito (caso da Argentina, do Equador, da Bolívia), ou enfrentam diretamente os grupos privados de mídia criando alternativas estatais e públicas (caso da Venezuela), o exemplo dos EUA significa um importante precedente.

Os grandes grupos privados de mídia – como a News Corporation, de Murdoch – seus sócios e aliados em todo o planeta, por óbvio, vão continuar reiterando cotidianamente suas acusações de não democráticos, autoritários e/ou totalitários a esses governos.

Já não seria, todavia, a hora de se questionar – séria e responsavelmente – o discurso de que a grande mídia privada seria a mediadora neutra, desinteressada, imparcial e objetiva do interesse público nas sociedades democráticas? Como sustentar esse discurso diante de todas as evidencias em contrário, inclusive de partidarização, aqui e alhures?

Não avançaríamos no debate democrático se a grande mídia assumisse publicamente suas posições e reconhecesse que, sim, além dos editoriais, dos artigos e das colunas, a cobertura que faz – ou a ausência dela – é também opinativa e, às vezes, partidária?

A posição pública do governo Barack Obama em relação à rede de televisão Fox obriga, necessariamente, a uma reflexão sobre o papel da grande mídia nas democracias representativas. Inclusive, é claro, no Brasil.

Ou os Estados Unidos serão também incluídos, a partir de agora, na relação dos governos que a grande mídia considera não democráticos, autoritários e/ou totalitários?

* Venício A. de Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de "Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia", com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009).

Reflexões sobre TV pública e a produção ficcional

[Título original: A Conferência Nacional de Comunicação, a TV Pública e os conteúdos ficcionais como fatores de transformação sócio-cultural]


No campo do audiovisual, a televisão, hoje, caracteriza-se como o espaço de excelência da convergência digital, numa espécie de piloto para todas as outras experiências das diferentes expressões da linguagem. Nada mais importante, pois, que tratar de forma democrática essas manifestações, quer artísticas, quer de comunicação, ou os dois ao mesmo tempo. A convergência, significando que todos os formatos de conteúdos existentes estarão disponíveis para os mais diferentes suportes audiovisuais, nos permitirá, entre outras coisas, criar novos paradigmas, sobretudo, para o cinema e a televisão, agora voltados, ambos, para a tecnologia digital.

Uma reflexão sobre linguagens se faz necessária, uma vez que um mesmo conteúdo produzido digitalmente poderá ser exibido nos mais variados tipos de mídia, apontando para uma convergência também de linguagens que, certamente, irá estabelecer outros conceitos de diferenciação. Necessitamos, portanto, pensar em uma nova televisão que, além das novas propostas voltadas para o caráter público, democrático e de bem social, deverá ter uma produção de conteúdos indicando novos caminhos semiológicos.

No caso das produções de ficção, um novo paradigma se coloca, aproximando cinema e televisão, dentro de novos conceitos. Na era da digitalidade e da convergência, poderemos ter, então, cada vez mais, conteúdos ficcionais em diferentes suportes mediáticos. Vale dizer que a democratização se faz necessária diante da abrangência total das novas tecnologias, onde o território audiovisual converge e dilui antigas fronteiras entre as linguagens.

Sem dúvida, uma nova semiologia se faz, aqui, necessária. Inclusive, vale ressaltar que atualmente é pauta de discussões nas Universidades e nas agências de fomento da Educação Superior, uma nova definição para as áreas e sub-áreas que aponta para um conceito mais abrangente, denominado agora como: Audiovisual. Sem dúvida, a partir deste momento, produziremos, em todos os setores, de forma convergente, conteúdos audiovisuais, com diferentes formatos, todos aptos para exibição em diferentes mídias.

Para a nova mídia televisiva, digital, democrática e pública, acreditamos, portanto, que é de grande interesse, além da produção de conteúdos com formatos jornalísticos, informativos, documentais, didáticos, esportivos e outros, a produção de conteúdos dramatúrgicos ou de ficção, uma vez que os dois conceitos englobam os mesmos aspectos que aqui tratamos: ficção e estrutura textual dramatizada, em linguagem audiovisual.

É inegável que as televisões comerciais e privadas atingem o grande público, sobretudo, pela linguagem da teledramaturgia, porém, muitas vezes, sem o caráter educativo e cultural que a televisão pública, ao democratizar a comunicação, pretende seguir. É, portanto, de interesse público que a linguagem ficcional e dramatúrgica esteja presente na nova TV Pública, de forma inovadora, na grade de programação e na produção de conteúdos próprios. Num país emergente como o nosso, marcado por ainda não resolvidas desigualdades sociais, nossa televisão privada e comercial, até hoje, contou com o monopólio da informação, produção e  transmissão. Como corresponder a essa expectativa de renovação de linguagem e também ao crescente apelo pela democracia no espaço da comunicação e da arte digital? Somente uma TV Pública, com compromissos sociais e culturais pode abrir esse espaço.

Desde o I FÓRUM DAS TVS PÚBLICAS, realizado em maio de 2007, em Brasília, um forte movimento pela criação de um pólo expandido de TVS Públicas que abrigasse as comunitárias, as universitárias, as legislativas e as educativas, numa malha popular e democrática de expressão digital, tomou forma e, hoje, contamos com um movimento expressivo nesse campo. Não só a criação da Empresa Brasileira de Comunicação-EBC, mas, outros fatos, como uma forte demanda pela Conferência Nacional de Comunicação, com data marcada para dezembro deste ano de 2009, que criará um marco regulatório para o setor, são alguns dos acontecimentos que podem garantir que haverá uma verdadeira e criativa revolução nos meios de comunicação.

Por isso abordamos, aqui, alguns aspectos, focando, sobretudo, a importância da produção de conteúdos ficcionais em mídia digital, apontando seu caráter inovador, dentro desse processo de criação de uma TV Pública com malha expandida, o que pode abrir uma perspectiva de transformação sócio-cultural no país. Já que a televisão pública ou a rede pública de televisão, convergente e digitalizada, tem como objetivo social a abertura de um novo espaço não comprometido com questões de audiência e comércio, publicidade paga e empresários interessados em vender para um cada vez maior número de espectadores, abre- se, então, um espaço crítico para a experimentação, pesquisa e inovação. Nesse caso, a ficção televisiva poderia, então, encontrar, na TV Pública, um espaço de excelência para afirmar seu papel crítico, educativo e cultural.

Aqui, faz-se necessário abordar uma importante questão: a antropologia da arte. Como significação de referentes culturais, a manifestação de conteúdos ficcionais carrega um complexo universo de valores, concepções, costumes, enfim, subjetividades inerentes à materialização significante e sensível do signo. Como expressão subjetiva e corpo, como significado e significante, como signo e fenomenologia da arte e da comunicação, a produção ficcional insere-se num importante tripé: arte, comunicação e educação.

Expressar mundos atuais não é a única possibilidade da ficção, sobretudo, atualmente, da televisiva digital. É preciso transformar. Para isso, uma perspectiva antropológica da produção audiovisual é tão abrangente quanto a perspectiva brechtiana da dramaturgia. Ambas, apontam para a significação cultural do drama-ficção e sua transformação como reflexo e materialidade em si do corpo e da subjetividade do social. Disso, sabem perfeitamente os poucos donos da mídia conservadora e comercial, comprometida com ideologias contrarias, na verdade, à consciência, como pensava Brecht, das classes sociais retratadas, porém submersas em universos culturais que se tornam estagnados e fechados diante da invasão das telas e suas histórias, onde a produção dramatúrgica não educa, não transforma e aprofunda o vazio cultural, apontando como única saída: a ascensão a qualquer preço, a mobilidade de uma classe a outra.

Numa proposta de escalada social, comprometedora de consciências, a ficção transforma-se em escola de suspeita técnica de negação de valores de classe e de possíveis transformações críticas. Sem distanciamento brechtiano, numa lamentável catarse, crianças e adultos manipulados, sem singularidades, refletem os mesmos valores da classe dominante, numa escalada de cobiça, onde máquinas desejantes almejam uma materialidade capaz de violência social, desta mesma que aí está, sem proposta de transformação.

Outro aspecto importante é a idéia de que o espectro eletromagnético é um bem público. Portanto, poderíamos pensar que toda transmissão televisiva ou toda a radiodifusão parte de uma base pública, o espectro. Nesse caso, os mesmos critérios de gestão poderiam ser aplicados a qualquer emissora desde que as concessões fossem tratadas como questões de políticas públicas.

Outorgar uma faixa do espectro eletromagnético público permite que governo, população e movimentos sociais acompanhem, façam parte e discutam dentro de uma estrutura de gestão pública, com conselhos, reuniões e critérios claros as concessões e todas as questões consideradas de interesse da população, referentes à continuidade de uma outorga. Novos critérios educativos e culturais devem pautar a utilização e exploração do espectro, pois os critérios quantitativos e, portanto, não qualitativos, comerciais, pautados pela audiência ou por uma falsa representatividade podem ser insuficientes para que um bem público esteja nas mãos de uma empresa privada com seus interesses de lucro, dentro da lógica da economia de mercado.

Não há, aqui, necessidade de uma longa explicação sobre a evidente responsabilidade social de uma empresa de negócios particulares diante de uma concessão de direito público, o que até poderia ser inviável. Nesse caso, teríamos um conceito bastante ampliado de TV Pública, se pensarmos que sendo todo o espectro eletromagnético um bem público, automaticamente, toda TV deveria ser considerada pública. E mais, todo o setor de comunicação deveria ser considerado de interesse público e ser tratado dentro de uma perspectiva de políticas públicas e de direitos humanos fundamentais.

Finalmente, vale ressaltar que somente a realização da CONFERÊNCIA NACIONAL DE COMUNICAÇÃO poderá criar um marco regulatório capaz de definitivamente estabelecer novos paradigmas para nossa cultura. Revisitando a estrutura de conferência no sentido de contrato social, citamos Jean Jacques Rousseau que no seu genial tratado percorre os inúmeros aspectos que implicam num amplo debate, entre vários atores. Sem dúvida a Carta dos Direitos do Homem e do Cidadão, surgiu como marco regulatório dos Direitos Humanos, cuja carta de 1948, tem como referência a carta nascida das enormes contradições dialéticas do século XVIII. Como estrutura, carta e marco, conferência e contrato, possuem ligações paradigmáticas.

Portanto, a convocação da Conferência Nacional de Comunicação, onde haverá regulamentação, nos possibilitará uma clareza nos modos de gestão e financiamento para as TVS Públicas, ou malha estendida pública ou rede pública de televisão, para a convergência tecnológica e regulamentação de teles, radiodifusão, sinais, cabos, critérios para as concessões ou mesmo proposta de reforma constitucional para a comunicação, onde, inclusive, há a necessidade de uma nova idéia de complementaridade, mais exata, além de definições apropriadas para os conceitos de público, estatal e privado, hoje, bastante confusos. Ou seja, estamos em plena desregulação.

Os atores diversos por vezes tendem a propor sub-regulações, projetos de lei parciais e setoriais. Os movimentos sociais lutam porque lutar é preciso e acreditam que a conferência é fundamental. Porém, somente a convocação e, em dezembro de deste ano de 2009, a realização da CONFECOM, pelo Executivo que, juntamente com os movimentos sociais e a classe empresarial, acaba de assumir essa importante tarefa, na verdade, histórica, pelo seu referencial revolucionário, poderão nos tirar das trevas. É preciso luz, racionalidade iluminada, lógica social clara para trazer clareza ao setor, tirando os atores do palco sem iluminação ou do “set” sem foto definida.

A conferência é a luz que a área da comunicação necessita para que a idéia de rede pública de televisão digital cumpra seu papel inovador, convergente, capaz, inclusive, de iluminar a nova cena onde uma dramaturgia/ficção brechtiana estabeleça um fundamental distanciamento para que o povo possa se ver, se reconhecer, se buscar e se encontrar, criando um novo marco antropológico. Luz, povo e comunicação. Direitos Humanos, direito à comunicação, dramatização de nossas histórias. Luz, ação!

* Heloisa Toledo Machado é professora do Curso de Cinema e da Pós-Graduação em Ciência da Arte, da UFF – Universidade Federal Fluminense.

 

 

A falsa regionalização televisiva

O sistema Verdes Mares inaugura, no Ceará, sua nova afiliada, TV Verdes Mares (TVM) Cariri, canal 9, em Juazeiro do Norte, no dia 1º de outubro. A emissora assumirá a retransmissão da Rede Globo para a região Centro-Sul, Inhamuns e partes do Vale do Jaguaribe e sertão central. Deverá cobrir uma área com população de quase 2 milhões de habitantes.

A programação da TV norte-juazeirense não deverá ter muitas mudanças em relação à TVM Fortaleza, anteriormente responsável pela retransmissão do sinal da Rede Globo na região. De segunda a sexta-feira, a emissora fortalezense possui apenas três telejornais locais (Bom Dia Ceará, CE TV 1ª e 2ª edição), um bloco do Globo Esporte, um boletim informativo e inserções de propagandas nos intervalos comerciais. Somando tudo, não chega a três horas das 21 horas restantes geradas pela Rede Globo. No final de semana, só restam as duas edições do CE TV do sábado e o Nordeste Rural do domingo.

A lógica da submissão vai além. A redação e a administração da TV Verdes Mares Fortaleza possuem profissionais vinculados ou indicados pela emissora carioca que garantem o "padrão" de qualidade "global". A situação demonstra não só a centralização e o autoritarismo das relações entre Globo e afiliadas, mas também o desprezo da maior rede de televisão do Brasil pela expressão das culturas locais. Pouco ou quase nenhum espaço o cearense possui para ver sua música, dramaturgia e arte local ou para discutir sua realidade na emissora que possui a maior audiência no estado.

Concentração e verticalidade

A centralização se reproduzirá de maneira mais acentuada na TV Verdes Mares Cariri. Apenas um bloco do CE TV 1ª e 2ª edição e as propagandas nos intervalos comerciais serão geradas pela emissora. O que não deve somar nem uma hora diária de conteúdo local. A estratégia revela uma falsa regionalização verticalizada que se concentra na descentralização da venda de inserções em detrimento da reprodução do conteúdo da geradora da Rede. Ao mesmo tempo, o grupo tenta criar a falsa idéia de uma emissora próxima, explora mercado local e tenta frear o crescimento das emissoras autóctones, como é o caso da TV Vale de Juazeiro do Norte, que ameaça a audiência e o faturamento da afiliada da Rede Globo na região.

O cenário confirma a idéia de monopólio em cruz, definida pelo professor Artur Venício Lima, da Universidade de Brasília, como a reprodução, em nível local e regional, dos oligopólios da propriedade cruzada que é o domínio, pelo mesmo grupo, de diferentes tipos de mídia do setor de comunicações. O sistema Verdes Mares reproduz, nesse caso, no Ceará, as relações de concentração e verticalidade entre suas emissoras, assim com sua afiliação à Rede Globo.

Pluralidade de vozes

O inexpressivo tempo destinado à exibição de conteúdo local revelaria ainda um possível desrespeito ao princípio constitucional da regionalidade do rádio e televisão. A Constituição prevê uma produção mínima de conteúdo regional que, no entanto, carece de regulamentação para definir o parâmetro de tempo. Os movimentos pela democratização da comunicação defendem, pelo menos, 25% de conteúdo local.

Outra possível irregularidade seria a quantidade máxima de canais para uma empresa. O grupo já era composto anteriormente por cinco emissoras: TV Verdes Mares Fortaleza, Verdes Mares AM, FM 93, Recife FM e TV Diário. Como o sistema Verdes Mares possuirá mais um canal de radiodifusão se a legislação limita a cinco? Ou será que possui emissoras integradas que não são de sua propriedade?

No final das contas, os prejuízos dessa concentração respingam na liberdade de expressão, condicionada na atualidade ao acesso às mídias e na democracia que depende da pluralidade de vozes para a participação no debate público.

* Ismar Capistrano Costa Filho é jornalista, professor de ensino superior e assessor de comunicação.

Limites mais que bem-vindos

[Título original: Condenação da Globo é exemplo pedagógico do controle público e social da mídia]

Em decisão de caráter liminar proferida na terça-feira, 15 de setembro, o juiz Gustavo Henrique Cardozo Cavalcante, do Fórum de Trairi(CE), condenou a TV Globo a não produzir e exibir cenas de provas do programa “No Limite” que envolvam animais.

A condenação é resultado de ação civil pública movida pelo Ministério Público do Estado do Ceará, a partir de representação da União Internacional Protetora de Animais (UIPA) na qual constam as denúncias de maus tratos a animais em quadros do programa, “mix de gincana com reality show”, segundo descrição da emissora.

Entre outras cenas que caracterizam os abusos, os participantes de “No Limite” foram submetidos a provas em que deveriam comer peixes vivos e ovos galados (com o feto do galo quase plenamente desenvolvido).

Os excessos veiculados motivaram protestos na Internet, manifestações públicas e denúncias ao Ministério das Comunicações, que afirmou não ter competência para tratar da questão.

Geuza Leitão, advogada cearense e presidente da UIPA, avalia a condenação como uma grande vitória do movimento de proteção aos animais. A ação baseou-se no artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais (lei 9.605/98) e no artigo 225 da Constituição Federal, que proíbem práticas de maus-tratos e crueldades com animais.

Na realidade, o Ministério Público pediu a retirada do programa do ar, mas o juiz optou pela proibição da presença de animais nas provas do mesmo. O descumprimento da decisão acarretará o pagamento de multa de cinquenta mil reais por cada programa que desobedeça a sentença.

Neste caso, a condenação foi o preço da arrogância e da soberba. A decisão só foi concretizada devido à recusa da Globo em assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) – acordo judicial mediado pelo Ministério Público – para cessar os abusos contra os animais.

Controle público e social

O fato concreto é que o episódio ilustra muito didaticamente os princípios e possíveis mecanismos de aplicação do conceito de controle público e social da mídia.

Longe de significar censura, o controle público e social é a prerrogativa da sociedade em monitorar, reclamar, denunciar e reivindicar adequações, correções, mudanças – nas legislações e demais políticas públicas, nos programas – e até sanções por conta de situações que, no âmbito dos meios de comunicação, sejam consideradas violadoras de direitos consagrados e/ou de leis.

O controle público e social pode ser traduzido e sintetizado, em boa medida, como participação e partilha de poder nos espaços decisórios.

O caráter público do conceito possui duas dimensões complementares: (1) é promovido em público, de forma transparente e aberta, usual, mas não exclusivamente, através de instituições públicas; e (2) realizado pelo público atento e ativo na defesa dos seus valores e interesses. E o caráter social reside nas consequências para o universo das relações sociais que tais ações geram.

A tradição sociológica sedimentou o conceito de controle social como o conjunto de ações do Estado que denotava e perpetuava o seu controle – pela coerção ou pelo convencimento ou cooptação – sobre a sociedade.

O atual conceito, revitalizado pelas experiências de accountability no mundo inteiro e consolidado – no Brasil – no campo da saúde por conta da constituição do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), nas últimas duas décadas, inverte o sentido do tradicional e vai ao encontro de um cânone da democracia: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”.

As conferências e conselhos setoriais, as iniciativas do Orçamento Participativo e similares, a atuação vigorosa – embora não livre das contradições presentes na sociedade, registre-se – do Ministério Público e os cada vez mais numerosos projetos de monitoramento e crítica (como os observatórios, as ouvidorias e os ombudsmen, entre outros) aos diversos entes preponderantes nas relações de poder (públicos, como os órgãos e agentes dos três poderes, ou privados, como a mídia, as empresas, os partidos políticos etc.) compõem este imenso e complexo mosaico de mecanismos que conferem à sociedade capacidade de promover concertações pontuais ou mais ou menos amplas.

A construção de uma mídia democrática, politicamente plural, que deixe de violar os direitos humanos e passe a respeitá-los e promovê-los, é um dos objetivos da I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), a se realizar em dezembro. Para isso, não é possível prescindir do debate sobre o controle público e social, algo muito mais concreto e palpável, aliás, do que a invencionice – proposta pelo governo – dos “temas sensíveis” que necessitarão do “quórum qualificado” de 60% para terem propostas aprovadas na Confecom.

Nesse debate, a única censura existente é a práticada pela própria grande mídia, que foge da discussão pública desqualificando a priori as reivindicações e os atores sociais, como se isso fosse suficiente para evitar o aprofundamento das transformações positivas a que assistimos no campo da comunicação. Como demonstra o professor Edgard Rebouças [1], essa tática de associar a idéia de controle público e social à censura faz parte da estratégia retórica dos donos da mídia para impedir a viabilização de qualquer ação que represente a mínima ameaça à sua hegemonia.

O fosso que circunda a velha cidade, para usar uma figura de Gramsci, não mais se apresenta tão intransponível como outrora, embora isso não signifique a proximidade da superação das contradições centrais da nossa sociedade, relacionadas a outro conceito tão atacado pelos novos cães de guarda do sistema, aquele conhecido como luta de classes.

*Rogério Tomaz Jr. é jornalista, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e mantém o blog Conexão Brasília Maranhão (http://brasiliamaranhao.wordpress.com).

NOTAS:
1 REBOUÇAS, Edgar. Estratégia retórica dos “donos da mídia” como escudo ao controle social. Revista Líbero, Ano IX, nº 17, p. 41-49, Jun. 2006.