Reflexões sobre TV pública e a produção ficcional

[Título original: A Conferência Nacional de Comunicação, a TV Pública e os conteúdos ficcionais como fatores de transformação sócio-cultural]


No campo do audiovisual, a televisão, hoje, caracteriza-se como o espaço de excelência da convergência digital, numa espécie de piloto para todas as outras experiências das diferentes expressões da linguagem. Nada mais importante, pois, que tratar de forma democrática essas manifestações, quer artísticas, quer de comunicação, ou os dois ao mesmo tempo. A convergência, significando que todos os formatos de conteúdos existentes estarão disponíveis para os mais diferentes suportes audiovisuais, nos permitirá, entre outras coisas, criar novos paradigmas, sobretudo, para o cinema e a televisão, agora voltados, ambos, para a tecnologia digital.

Uma reflexão sobre linguagens se faz necessária, uma vez que um mesmo conteúdo produzido digitalmente poderá ser exibido nos mais variados tipos de mídia, apontando para uma convergência também de linguagens que, certamente, irá estabelecer outros conceitos de diferenciação. Necessitamos, portanto, pensar em uma nova televisão que, além das novas propostas voltadas para o caráter público, democrático e de bem social, deverá ter uma produção de conteúdos indicando novos caminhos semiológicos.

No caso das produções de ficção, um novo paradigma se coloca, aproximando cinema e televisão, dentro de novos conceitos. Na era da digitalidade e da convergência, poderemos ter, então, cada vez mais, conteúdos ficcionais em diferentes suportes mediáticos. Vale dizer que a democratização se faz necessária diante da abrangência total das novas tecnologias, onde o território audiovisual converge e dilui antigas fronteiras entre as linguagens.

Sem dúvida, uma nova semiologia se faz, aqui, necessária. Inclusive, vale ressaltar que atualmente é pauta de discussões nas Universidades e nas agências de fomento da Educação Superior, uma nova definição para as áreas e sub-áreas que aponta para um conceito mais abrangente, denominado agora como: Audiovisual. Sem dúvida, a partir deste momento, produziremos, em todos os setores, de forma convergente, conteúdos audiovisuais, com diferentes formatos, todos aptos para exibição em diferentes mídias.

Para a nova mídia televisiva, digital, democrática e pública, acreditamos, portanto, que é de grande interesse, além da produção de conteúdos com formatos jornalísticos, informativos, documentais, didáticos, esportivos e outros, a produção de conteúdos dramatúrgicos ou de ficção, uma vez que os dois conceitos englobam os mesmos aspectos que aqui tratamos: ficção e estrutura textual dramatizada, em linguagem audiovisual.

É inegável que as televisões comerciais e privadas atingem o grande público, sobretudo, pela linguagem da teledramaturgia, porém, muitas vezes, sem o caráter educativo e cultural que a televisão pública, ao democratizar a comunicação, pretende seguir. É, portanto, de interesse público que a linguagem ficcional e dramatúrgica esteja presente na nova TV Pública, de forma inovadora, na grade de programação e na produção de conteúdos próprios. Num país emergente como o nosso, marcado por ainda não resolvidas desigualdades sociais, nossa televisão privada e comercial, até hoje, contou com o monopólio da informação, produção e  transmissão. Como corresponder a essa expectativa de renovação de linguagem e também ao crescente apelo pela democracia no espaço da comunicação e da arte digital? Somente uma TV Pública, com compromissos sociais e culturais pode abrir esse espaço.

Desde o I FÓRUM DAS TVS PÚBLICAS, realizado em maio de 2007, em Brasília, um forte movimento pela criação de um pólo expandido de TVS Públicas que abrigasse as comunitárias, as universitárias, as legislativas e as educativas, numa malha popular e democrática de expressão digital, tomou forma e, hoje, contamos com um movimento expressivo nesse campo. Não só a criação da Empresa Brasileira de Comunicação-EBC, mas, outros fatos, como uma forte demanda pela Conferência Nacional de Comunicação, com data marcada para dezembro deste ano de 2009, que criará um marco regulatório para o setor, são alguns dos acontecimentos que podem garantir que haverá uma verdadeira e criativa revolução nos meios de comunicação.

Por isso abordamos, aqui, alguns aspectos, focando, sobretudo, a importância da produção de conteúdos ficcionais em mídia digital, apontando seu caráter inovador, dentro desse processo de criação de uma TV Pública com malha expandida, o que pode abrir uma perspectiva de transformação sócio-cultural no país. Já que a televisão pública ou a rede pública de televisão, convergente e digitalizada, tem como objetivo social a abertura de um novo espaço não comprometido com questões de audiência e comércio, publicidade paga e empresários interessados em vender para um cada vez maior número de espectadores, abre- se, então, um espaço crítico para a experimentação, pesquisa e inovação. Nesse caso, a ficção televisiva poderia, então, encontrar, na TV Pública, um espaço de excelência para afirmar seu papel crítico, educativo e cultural.

Aqui, faz-se necessário abordar uma importante questão: a antropologia da arte. Como significação de referentes culturais, a manifestação de conteúdos ficcionais carrega um complexo universo de valores, concepções, costumes, enfim, subjetividades inerentes à materialização significante e sensível do signo. Como expressão subjetiva e corpo, como significado e significante, como signo e fenomenologia da arte e da comunicação, a produção ficcional insere-se num importante tripé: arte, comunicação e educação.

Expressar mundos atuais não é a única possibilidade da ficção, sobretudo, atualmente, da televisiva digital. É preciso transformar. Para isso, uma perspectiva antropológica da produção audiovisual é tão abrangente quanto a perspectiva brechtiana da dramaturgia. Ambas, apontam para a significação cultural do drama-ficção e sua transformação como reflexo e materialidade em si do corpo e da subjetividade do social. Disso, sabem perfeitamente os poucos donos da mídia conservadora e comercial, comprometida com ideologias contrarias, na verdade, à consciência, como pensava Brecht, das classes sociais retratadas, porém submersas em universos culturais que se tornam estagnados e fechados diante da invasão das telas e suas histórias, onde a produção dramatúrgica não educa, não transforma e aprofunda o vazio cultural, apontando como única saída: a ascensão a qualquer preço, a mobilidade de uma classe a outra.

Numa proposta de escalada social, comprometedora de consciências, a ficção transforma-se em escola de suspeita técnica de negação de valores de classe e de possíveis transformações críticas. Sem distanciamento brechtiano, numa lamentável catarse, crianças e adultos manipulados, sem singularidades, refletem os mesmos valores da classe dominante, numa escalada de cobiça, onde máquinas desejantes almejam uma materialidade capaz de violência social, desta mesma que aí está, sem proposta de transformação.

Outro aspecto importante é a idéia de que o espectro eletromagnético é um bem público. Portanto, poderíamos pensar que toda transmissão televisiva ou toda a radiodifusão parte de uma base pública, o espectro. Nesse caso, os mesmos critérios de gestão poderiam ser aplicados a qualquer emissora desde que as concessões fossem tratadas como questões de políticas públicas.

Outorgar uma faixa do espectro eletromagnético público permite que governo, população e movimentos sociais acompanhem, façam parte e discutam dentro de uma estrutura de gestão pública, com conselhos, reuniões e critérios claros as concessões e todas as questões consideradas de interesse da população, referentes à continuidade de uma outorga. Novos critérios educativos e culturais devem pautar a utilização e exploração do espectro, pois os critérios quantitativos e, portanto, não qualitativos, comerciais, pautados pela audiência ou por uma falsa representatividade podem ser insuficientes para que um bem público esteja nas mãos de uma empresa privada com seus interesses de lucro, dentro da lógica da economia de mercado.

Não há, aqui, necessidade de uma longa explicação sobre a evidente responsabilidade social de uma empresa de negócios particulares diante de uma concessão de direito público, o que até poderia ser inviável. Nesse caso, teríamos um conceito bastante ampliado de TV Pública, se pensarmos que sendo todo o espectro eletromagnético um bem público, automaticamente, toda TV deveria ser considerada pública. E mais, todo o setor de comunicação deveria ser considerado de interesse público e ser tratado dentro de uma perspectiva de políticas públicas e de direitos humanos fundamentais.

Finalmente, vale ressaltar que somente a realização da CONFERÊNCIA NACIONAL DE COMUNICAÇÃO poderá criar um marco regulatório capaz de definitivamente estabelecer novos paradigmas para nossa cultura. Revisitando a estrutura de conferência no sentido de contrato social, citamos Jean Jacques Rousseau que no seu genial tratado percorre os inúmeros aspectos que implicam num amplo debate, entre vários atores. Sem dúvida a Carta dos Direitos do Homem e do Cidadão, surgiu como marco regulatório dos Direitos Humanos, cuja carta de 1948, tem como referência a carta nascida das enormes contradições dialéticas do século XVIII. Como estrutura, carta e marco, conferência e contrato, possuem ligações paradigmáticas.

Portanto, a convocação da Conferência Nacional de Comunicação, onde haverá regulamentação, nos possibilitará uma clareza nos modos de gestão e financiamento para as TVS Públicas, ou malha estendida pública ou rede pública de televisão, para a convergência tecnológica e regulamentação de teles, radiodifusão, sinais, cabos, critérios para as concessões ou mesmo proposta de reforma constitucional para a comunicação, onde, inclusive, há a necessidade de uma nova idéia de complementaridade, mais exata, além de definições apropriadas para os conceitos de público, estatal e privado, hoje, bastante confusos. Ou seja, estamos em plena desregulação.

Os atores diversos por vezes tendem a propor sub-regulações, projetos de lei parciais e setoriais. Os movimentos sociais lutam porque lutar é preciso e acreditam que a conferência é fundamental. Porém, somente a convocação e, em dezembro de deste ano de 2009, a realização da CONFECOM, pelo Executivo que, juntamente com os movimentos sociais e a classe empresarial, acaba de assumir essa importante tarefa, na verdade, histórica, pelo seu referencial revolucionário, poderão nos tirar das trevas. É preciso luz, racionalidade iluminada, lógica social clara para trazer clareza ao setor, tirando os atores do palco sem iluminação ou do “set” sem foto definida.

A conferência é a luz que a área da comunicação necessita para que a idéia de rede pública de televisão digital cumpra seu papel inovador, convergente, capaz, inclusive, de iluminar a nova cena onde uma dramaturgia/ficção brechtiana estabeleça um fundamental distanciamento para que o povo possa se ver, se reconhecer, se buscar e se encontrar, criando um novo marco antropológico. Luz, povo e comunicação. Direitos Humanos, direito à comunicação, dramatização de nossas histórias. Luz, ação!

* Heloisa Toledo Machado é professora do Curso de Cinema e da Pós-Graduação em Ciência da Arte, da UFF – Universidade Federal Fluminense.

 

 

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