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Políticas Públicas, visão de longo prazo e responsabilidade

As notícias a respeito da proposta de decreto instituindo um Plano Nacional de Banda Larga formulado por representantes da Casa Civil e da Secretaria de Planejamento são animadoras, apesar de alguns aspectos nos causar insegurança, como, por exemplo, a minuta do decreto a ser editado não se referir a serviço de comunicação de dados e redes de troncos, como está previsto na Lei Geral de Telecomunicações – LGT e a falta de um debate mais amplo com os agentes interessados, inclusive os consumidores.

De qualquer forma, em respeito ao grande esforço que vem sendo feito pelos representantes do Governo responsáveis pela condução do processo, acredito que as diretrizes anunciadas nos permitem criar a expectativa de melhora significativa na qualidade do provimento e redução significativa dos valores praticados hoje no mercado, bem como no quadro de penetração de todos os serviços de telecomunicações nos diversos segmentos sociais.

E isto porque a finalidade de diversos mecanismos regulatórios que a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL não editou – o que já deveria ter feito há anos para estimular melhoria na qualidade, modicidade tarifária e ampla competição entre os agentes que atuam no mercado não ocorreram, poderão ser atendidos pelo novo Plano Nacional.

O que a ANATEL não fez durante os últimos onze anos decorridos desde a privatização – julho de 1998? Não estabeleceu modelo de custos para poder regular de forma eficiente as tarifas de varejo e de interconexão (inclusive do backhaul – rede de suporte para o serviço de comunicação de dados); não  definiu regras de compartilhamento das redes públicas;  não definiu o Plano Geral de Competição; entre outras medidas que proporcionariam competição efetiva, estimulariam mais eficiência por parte das concessionárias e demais operadores dos serviços, mais qualidade e mais eficácia da própria agência na tarefa de regular e fiscalizar, pois haveria mais garantias de segurança.

Por compromisso com a justiça, devemos reconhecer que também o Ministério das Comunicações deixou de cumprir seu papel de formulador de políticas, pois nada fez de relevante durante os últimos anos, no sentido de criar um ambiente institucional propício para as prementes demandas da sociedade e do mercado no que diz respeito à necessidade de ampliação da infraetrutura e de redes de suporte aos serviços de comunicação de dados e garantias de acesso a preços módicos, criando condições para a promoção da tão almejada inclusão digital.

Ao contrário de garantir estes objetivos, durante os últimos anos o Ministério das Comunicações ocupou-se de alterar o Plano de Metas de Universalização colocando nas mãos das concessionárias o presente de poderem implantar o backhaul, estimulando maior concentração do mercado e utilização de recursos públicos em benefício do patrimônio privado. E essas circunstâncias pioraram com a alteração do Plano Geral de Outorgas, que autorizou a fusão entre duas concessionárias, em virtude do que restaram apenas três grandes empresas, sendo que a BROI – resultado da incorporação da Brasil Telecom pela Oi, atuando em 97% do território nacional, sem esquecer que essas concessionárias são também controladoras das empresas que prestam a telefonia móvel – Telefônica – Vivo; Embratel – Claro; Oi – Oi e, portanto, também fazem o provimento da banda larga móvel – 3G.

Tudo isso em 2008 quando já estava gritante há anos a urgência da inclusão do serviço de comunicação de dados no regime público e a da imposição de metas de universalização e continuidade para o serviço de comunicação de dados (denominado de banda larga e regulamentado pela ANATEL como serviço de comunicação multimídia – SCM). O Ministério das Comunicações ignorou a necessidade de um Plano Nacional de Banda Larga, instituído com a veste legal de política pública!

Na verdade, já em 1998 – ocasião das privatizações – as tendências dos mercados internacionais já apontavam para que se desenhasse um modelo mais flexível para as telecomunicações, passível de se adaptar à pujante dinâmica do setor e de seu desenvolvimento tecnológico, bem como à demanda por novos serviços por parte das sociedades. Entretanto, interesses privados e partidários pautaram a definição do marco institucional sobre o qual se deu a desestatização da Telebrás, cuja legalidade vem sendo questionada pelo aspecto público e criminal até hoje.

Indiscutível o desenvolvimento das telecomunicações nos últimos anos. Mas incontroversos também os bilionários investimentos públicos realizados nas subsidiárias da Telebrás durante o processo preparatório para a privatização, a partir de 1995, bem como os prejuízos decorrentes da inércia do Poder Executivo e da ANATEL, quando em dezembro de 2005 prorrogaram os contratos de concessão por mais vinte anos – até 2025, sem promover uma só mudança que fosse capaz de propiciar oxigênio regulatório suficiente para o fôlego do desenvolvimento das telecomunicações que a sociedade brasileira demandava desde então.

Prova disso são os apagões frequentes nas redes de comunicação de dados, a irrisória velocidade da banda larga ofertada no mercado e os preços escorchantes e desproporcionais à péssima qualidade dos serviços, inclusive da telefonia fixa, bem como os conflitos, inclusive judiciais, entre concessionárias, consumidores e o próprio Governo.

Diante desse cenário, tudo indica que os objetivos almejados pela sociedade hoje poderão ser alcançados com a retomada da Telebrás atuando como gerenciadora da rede nacional de acesso à internet. E, imprescindível, com a inclusão do serviço de comunicação de dados (chamado de banda larga) no regime público, como determina o § 1°, do art. 65, da Lei Geral de Telecomunicações e recomenda o bom senso.

Bem vindo, então, o novo Plano Nacional de Banda Larga, cujo foco está na garantia de ampliação de acesso às infraestruturas e redes públicas para novos operadores, com estímulo à competição, melhoria na qualidade do provimento dos serviços de rede, modicidade tarifária e aumento da penetração dos diversos serviços de telecomunicações.

As notícias veiculadas informam que a Telebrás, além de se incumbir da implantação e gestão de infraestruturas e redes, também proverá diretamente serviços para órgãos públicos e em localidades cujos mercados não despertem os interesses econômicos dos operadores privados, estimando-se  valores entre R$ 15,00 e R$ 35,00 para a oferta do acesso à internet na velocidade mínima de 1 megabit por segundo.

É evidente que a promessa dessa nova realidade abalou a gana das concessionárias que estão confortáveis há anos apropriadas indevidamente das redes públicas de tronco pelas quais não pagaram na época das privatizações, auferindo ganhos exorbitantes, obtendo financiamentos bilionários no Banco Nacional de Desenvolvimento Social, mas deixando de fazer os investimentos devidos, e impondo tarifas que impedem o crescimento da penetração de serviços básicos e de acesso à internet, pois vem interferindo de forma reprovável nos processos de fixação de regras e condutas da ANATEL e Ministério das Comunicações.

Tanto assim que a Telebrasil – entidade que as representa – já tratou de mandar carta a Casa Civil, solicitando reunião e participação na definição das novas bases regulatórias, depois de perceberem que a atuação do Ministro Helio Costa em favor delas no ano passado não surtiu os efeitos que esperavam.

Não podemos ignorar o poderio econômico dessas empresas e a importância que tem para garantia da continuidade dos serviços. Todavia, não podemos ficar reféns dos interesses privados de concessionárias pouco comprometidas com o interesse público e com os consumidores. Temos razões suficientes para buscar mecanismos de proteção, uma vez que estamos há anos o país está submetido aos preços abusivos praticados no mercado e pelo péssimo e desrespeitoso atendimento que as concessionárias vem dispensando aos brasileiros, como comprovam os históricos rankings de maus fornecedores divulgados pelas Promotorias de Defesa do Consumidor.

Vamos esperar que o Governo, que agora está cumprindo seu papel de elaborador e executor de planos nacionais para o desenvolvimento econômico e social, nos termos do inc. IX do art. 21 da Constituição Federal, não ceda às pressões das concessionárias e aos interesses eleitorais e se mantenha firme no propósito que vem sendo externado por aqueles responsáveis pela condução da importante proposta de um Plano Nacional de Banda Larga, assegurando dois pilares fundamentais para o sucesso do projeto: a reativação da Telebrás para atuar como gerenciadora da rede pública e a definição de regras para o provimento da banda larga de modo que o serviço possa ser prestado tanto no regime público quanto no regime privado, como autoriza a lei geral e já ocorre com a telefonia fixa contratada por meio de contratos de concessão e de autorização, respectivamente.

A inclusão do serviço de comunicação de dados no regime público é de importância fundamental, pois só nessas condições será possível a imposição de metas de universalização e continuidade e, principalmente, a garantia de que os investimentos públicos provenientes do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações – FUST  e outros do BNDES serão revertidos para a União ao final dos contratos; ou seja, que, encerrados os contratos, as redes  implantadas no bojo do novo Plano Nacional passarão a integrar o patrimônio do poder concedente.

Ou seja, caso não se inclua o serviço no regime público, haverá a apropriação de vultosos recursos públicos em benefício de empresas privadas, sem nenhuma garantia que a rede de dados mantenha sua exploração em benefício do interesse público.

Aliás, o Brasil já foi tungado na ocasião da privatização e depois dela com a inércia da ANATEL em formular os contratos da rede de troncos como determina a LGT, em razão do que este valioso patrimônio público foi ilegalmente apropriado pela Embratel, Telefônica e Oi. Não podemos repetir o mesmo erro.

Só assim poderemos olhar o futuro com alguma esperança de que a inclusão digital ocorrerá para todos os brasileiros, pois as redes estratégicas para o desenvolvimento econômico e social integrarão o patrimônio público e estarão administradas com foco no desenvolvimento social e econômico no longo prazo.

Empresas de comunicação e projetos educativos

A educação (e a formação, de um modo geral) dos indivíduos deve acompanhar o espírito da época em que estão inseridos, formando sujeitos com condições de ler (criticamente) a realidade. Isso é fato. Assim como é fato que uma das marcas centrais da época em que vivemos é a centralidade da mídia nas nossas vidas. A articulação destes dois fatos de forma natural é perigosa e tem conferido, quase que naturalmente, um novo poder às empresas de comunicação: o poder de educar também nas escolas.

Não satisfeitas com seus monopólios, audiências e “shares” de mercado exorbitantes, as grandes corporações de comunicação e tecnologia (como, por exemplo, o Grupo Abril, a Rede Globo, a Microsoft, os jornais Folha e Estado de São Paulo e a Telefônica) entraram nas escolas a partir de parcerias com secretarias e, muitas vezes, por intermédio de seus “braços sociais” (institutos, fundações etc). Também não satisfeitas com o fato de entrarem nas escolas como instrumentos, entraram também com conteúdos.

É certo que a escola precisa se modernizar e acompanhar as tendências da atualidade (ainda que sob diversos riscos). No entanto, é preciso discutir o projeto de modernização da educação, antes de entregá-lo nas mãos de empresários do ramo das mídias.

Em geral, o que observamos, é um processo de entrada que desrespeita o campo educacional, não ouvindo sequer quais são as reais demandas das escolas por instrumentos ou conteúdos midiáticos e tecnológicos. Ou seja: os campos midiático e político se articulam e decidem a vida do campo educacional em relação à suposta modernização. Suposta porque, convenhamos, equipar escolas em projetos milionários com multinacionais, deixando penetrar na educação pública a lógica das empresas de comunicação e tecnologia e em projetos executados “de cima pra baixo” não se trata necessariamente de modernização. Pelo contrário. Elementos de modernidade convivem com elementos tradicionais da política que ainda precisam de reflexão e solução.

Ou seja, em boa parte das iniciativas, o dinheiro investido em mídia e tecnologia vira discurso de políticos “benfeitores” da educação moderna, salas vazias e equipamentos ociosos por falta de um processo cuidadoso de implementação. Muitas vezes, a “culpa” recai, claro, sobre os profissionais da educação, em tese, despreparados para encarar o mundo novo que, ainda segundo o mesmo discurso, é dominado pelos jovens alunos.

Exemplos paulistas

Para não ficarmos no abstrato, vamos a alguns exemplos. Uma das iniciativas que podemos citar é a assinatura da revista Nova Escola, do Grupo Abril, para todos os professores da rede pública estadual de São Paulo. Sem ter passado por um processo de licitação ou por qualquer tipo de debate com os agentes e educadores da rede, o material passou a ser entregue na residência dos professores no mês de março de 2008 (leia mais em: http://www.observatoriodaeducacao.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=639:contratacao-de-revistas-e-outros-materiais-sem-licitacao-e-pratica-recorrente-do-governo-de-sao-paulo&catid=73:controle-social&Itemid=107). Alvo de processos (Leia mais em: http://www.ivanvalente.com.br/CN02/noticias/nots_07_det.asp?id=2177) e protestos por parte de organizações da sociedade civil, a secretaria estadual alegou que o material se trata de algo exclusivo.

A secretaria tem a prerrogativa legal de adotar materiais que sejam considerados únicos e cujos produtores tenham “notório saber” sobre a matéria a ser desenvolvida através do contrato. No entanto, são conhecidas pelo menos outras três publicações de outras editoras com a mesma proposta que a publicação da Editora Abril, como a Carta na Escola, a Revista Pátio e a Revista Educação.

Um segundo exemplo é o Telecurso TEC, parceria do Centro Paula Souza, instituto de ensino técnico e profissionalizante do Governo do Estado de São Paulo, com a Fundação Roberto Marinho (ligada às Organizações Globo) que, firmada em 2006, passou a oferecer cursos técnicos para jovens e adultos pela televisão. Entre os cursos oferecidos, estão os de Administração; Gestão de Pequenas Empresas; Assessoria/Secretariado; Vendas e Representação Comercial; e Turismo (Saiba mais).

Os laptops subsidiados pelo Governo do Estado por meio do programa Acessa São Paulo, fornecidos – neste caso, via licitação – pelas empresas Positivo e Brasoftware, é um outro exemplo de entrada das mídias (e da lógica midiática e tecnológica) nas escolas.

Além disso, em 2009, o Estado firmou parceria com a operadora de telefonia Telefônica, via sua fundação, para fornecimento de equipamentos a escolas de municípios do interior. É também da Telefônica a iniciativa EducaRede, portal de conteúdos educativos, que tem como um de seus objetivos oferecer subsídios para educadores.

A parceria firmada em outubro de 2008 pelo Governo do Estado com a multinacional Microsoft para ampliar o aceso à informática no sistema de ensino é uma outra iniciativa, desenvolvida para que alunos e professores da rede estadual tivessem acesso a e-mails gratuitos e uma série de ferramentas fornecidas pela multinacional. Abrange o ensino fundamental, médio e tecnológico. Trecho da matéria  publicada no site da empresa diz que a parceria se trata “do maior projeto da América Latina nesse segmento com participação da iniciativa privada”.

Em abril de 2009, outras duas iniciativas foram anunciadas: a Secretaria Estadual de Educação – SEE fez mais de 5 mil assinaturas dos jornais Folha de São Paulo e Estado de São Paulo para as escolas da rede.

Processo atravessado

Esta entrada das mídias e das tecnologias nas escolas, ilustrada pelos exemplos acima citados, é feita com alguma transparência (publicação no Diário Oficial, anúncio oficial com celebração e presença do governador em alguns casos ou publicação nos sites das instituições e no site do Governo do Estado). No entanto, em grande parte delas, o processo de contratação do material, tecnologia ou ferramenta em questão 1. não passou por licitações; 2. não passou por qualquer tipo de discussão pública (inclusive via meios de comunicação da imprensa comercial, que, em tese, são os veículos de ampliação do debate político) ou com os agentes do campo educacional; 3. em geral, não propõe processos de formação dos educadores e alunos para lidarem com os novos materiais e dinâmicas, o que seria considerado um mínimo de diálogo com o ambiente educacional que vai receber novas ferramentas e dinâmicas de ensino.

A explicação parece simples. Ora, se precisamos modernizar as escolas, levando mídias e tecnologias para as salas de aula, porque não fazê-lo com quem “mais entende do assunto”?

Mas é preciso pensar que estamos diante de duas afirmações construídas social e culturalmente, com a “ajuda” preciosa de ninguém mais ninguém menos que os próprios veículos de comunicação, interessados diretos nas parcerias milionárias com as secretarias e sistemas de ensino.

Basta acompanhar por alguns dias as coberturas de jornais, revistas e telejornais para se deparar com matérias que afirmam a necessidade de as escolas se modernizarem. Mas não se trata de qualquer modernização. Os discursos são carregados de corporativismo.

Além da idéia de modernidade ser construída, é construída também a idéia de que ela deve chegar à escola pelas mãos de quem domina o assunto e de que este alguém são as empresas de comunicação.

Hegemonia transferida para a educação

A verdade é que a hegemonia moral, cultural e política de um determinado grupo social (as empresas de comunicação) adentra a escola travestida de consenso. Esta entrada nos espaços educativos se dá, objetivamente, carregada pelos materiais produzidos pelas empresas privadas de comunicação e, subjetivamente, pela adesão ao discurso e aos valores destas empresas.

Por exemplo, podemos afirmar que a adoção de softwares e ferramentas da multinacional Microsoft proporcionam um tipo de aprendizado diferente daquele que seria proporcionado por ferramentas de software livre ou mesmo de outra fabricante. E o que determina a opção da Secretaria de Educação por este material? Mais do que o material, o que leva a secretaria a firmar parcerias com a multinacional para que ela realize uma campanha contra a “pirataria” nas escolas? Em lugar disso, não seria a escola o lugar de reflexão sobre a propriedade privada, o conhecimento livre e as formas de patentes em softwares?

Afinal, o que está em jogo? O interesse público ou meia dúzia de interesses privados?

O fato é que são muitas as lógicas presentes nestas escolhas. Uma delas é a de não ouvir o campo educacional nas decisões político-pedagógicas colocadas para a educação paulista. Outra é a de reforçar vínculos políticos e de favorecimento com as grandes redes de comunicação e tecnologia do Brasil e do mundo. Outra é a da modernização das escolas a partir de valores construídos por estas próprias empresas na cena pública. Em, por fim, a da privatização, ainda que subjetiva, da educação. A entrada sorrateira da lógica empresarial nos espaços educativos.

Mais uma vez, é preciso afirmar que não se trata de defender o atraso e a precariedade das escolas. Trata-se, sobretudo, da entrada deste mundo de mídia no espaço educativo regulada pelo Estado e discutida com a sociedade, em especial, os atores da educação.

* Michelle Prazeres é jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), doutoranda em educação (FE-USP) e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Camaradas, eu vi!

Camaradas, eu vi a ex-prefeita Luiza Erundina chorando — não por causa da multa em dinheiro que lhe foi imposta por uma sentença judicial absurda, mas por pura felicidade, por legítima emoção, por testemunhar a aprovação de tantas medidas de democratização da mídia que há anos vinha defendendo ao lado de tanta gente.

Vi jovens de vinte e poucos anos de idade, moças e rapazes, abordando e destrinchando complexos temas da comunicação social com enorme sem-cerimônia, com enorme facilidade, com enorme coragem; e nesse passo destruindo falácias, desmontando discursos ignóbeis, ajudando a abrir, a seu modo, “as grandes alamedas por onde passará o homem livre para construir uma sociedade melhor” (Allende).

Vi Jerry Oliveira, coordenador da Abraço-São Paulo, dando cabriolas no auditório, qual criança, ao comemorar a anistia (isso mesmo, anistia!) concedida, sem votos contrários, às rádios comunitárias — “em espírito”, é claro, ainda sem força de lei, mas com todo o simbolismo e a legitimidade possíveis, numa Conferência, afinal de contas, comandada pelo Ministério das Comunicações…

Vi o vice-presidente da TV Bandeirantes, Walter Ceneviva, “reger” qual maestro de orquestra a bancada de delegados empresariais, mandando votar contra, a favor e se abster, e o vi correr de um lado para outro, a fazer articulações e conchavos…

Camaradas, eu vi Frederico Nogueira, vice-presidente da Associação Brasileira de Radiodifusores (ABRA), inscrever-se para falar contra a proposta 193 (“Garantia de mecanismo de fiscalização, com controle social e participação popular, em todos os processos como financiamento, acompanhamento das obrigações fiscais e trabalhistas das emissoras”) e declarar o seguinte: “Sou totalmente contra. A radiodifusão no Brasil é altamente fiscalizada”. E acrescentou: “Não pode haver controle social de forma alguma”. E fiquei estupefato diante de tamanha franqueza… (felizmente, a proposta foi aprovada por 51% a 46% dos votos).

(Re)vi no aeroporto de Brasília, pouco antes de retornar a São Paulo, um delegado do segmento empresarial, na verdade funcionário de uma empresa de telecomunicações, com quem conversara em Cuiabá, na Conferência Estadual de Mato Grosso. Após cumprimentos, dele ouvi mais ou menos o seguinte: “Vim para cá representando os empresários, você sabe, mas gostei muito do debate e votei várias vezes nas propostas de vocês”.

Vi um veterano da luta pela democracia no Pará, o jornalista Paulo Roberto Ferreira, indignar-se no seu grupo de trabalho (GT 4) e esbravejar com um delegado malandro que, embora portador de um crachá da sociedade civil, pronunciava-se e votava como representante patronal tosco e reacionário…

"Otimismo da ação”

Camaradas, tudo isso eu vi, e mais ainda, e decorridos mais de 30 dias de sua realização, ao rememorar fatos, gestos e imagens marcantes, dentro do esforço de avaliar a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), só resta concluir que essa experiência foi bastante positiva e, de modo geral, favoreceu a população brasileira, os movimentos sociais que a representam e todos os que lutam pela democratização da comunicação social em nosso país. Obviamente, as etapas preparatórias foram parte indissociável da conferência, moldando sua configuração e seu desfecho.

Como negar, diante do teor da imensa maioria das 672 propostas aprovadas, que a 1a Confecom contrariou as expectativas iniciais pessimistas de um ponderável setor dos movimentos sociais, no qual este autor se incluía? A maior parte das principais propostas da “sociedade civil” foi aprovada, o que constitui importante vitória simbólica (política, ideológica) e referência fundamental para os embates futuros. No entanto, foi precisamente a combatividade dos movimentos populares organizados, grupos e entidades comprometidos com transformações, que garantiu esse resultado. Todos, mesmo os mais céticos, pautaram-se por Gramsci: “pessimismo da inteligência, otimismo da ação”.

Porém, igualmente, as medidas recomendadas pela Confecom não sairão do papel sem enorme e conseqüente pressão do movimento social. Basta ver como reagiu a mídia hegemônica diante do PNDH 3 (que inclui algumas diretrizes de democratização da comunicação social). Embora diversas avaliações tenham destacado o papel progressista dos segmentos do grande empresariado que toparam participar da Confecom (as teles, representadas pela Telebrasil, e a dissidência dos conglomerados de TV, representada pela ABRA), vale lembrar que também com esses segmentos persistem agudos antagonismos. (O pesquisador Venício Lima, em artigo recente, apontou para esta direção ao “nadar contra a corrente”, chamando atenção não para itens aprovados, mas precisamente para as propostas do movimento social derrotadas na Confecom por obra do setor do capital ali presente.)

A participação destes segmentos deu-se a um custo apreciável. A cada passo do processo de organização da Confecom o governo cedeu a sucessivas chantagens dos conglomerados “progressistas” (e a maioria das entidades da sociedade civil com assento na Comissão Organizadora Nacional-CON sucumbiu à pressão), fazendo diversas concessões. Assim, achatou a representação dos movimentos sociais, limitando-a a 40% dos delegados, e superdimensionou a delegação da chamada “sociedade civil empresarial”, dando-lhe idêntica proporção (fatos inéditos em conferências nacionais). Adotou o chamado “tema sensível”, dispositivo exorbitante mediante o qual um determinado segmento (adivinhe qual) poderia exigir, imediatamente antes da votação de uma proposta, maioria qualificada (60%) para sua aprovação. Depois, impediu as conferências estaduais de votarem propostas (!!!), atitude indefensável cujo subproduto foi entupir de propostas a Confecom (6 mil).

"Tema sensível”

O último capítulo desse jogo de pressões empresariais deu-se na plenária inicial da Confecom, que votou o regimento. A CON havia decidido, dias antes, que o “tema sensível” seria aplicável apenas à plenária final, mas não aos grupos de trabalho, caso contrário praticamente nada seria aprovado nestes. Então, ABRA e Telebrasil decidiram praticar a derradeira chantagem: sem “tema sensível” nos GTs, abandonariam a conferência, pois não tinham segurança de ver aprovadas as propostas que defendiam. Pressionaram diretamente o governo, que, por sua vez, passou a pressionar fortemente a CUT e outras entidades com assento na CON para que recuassem, o que ocorreu. Desta vez, contudo, as bases estavam por perto. E protestaram com veemência.

O impasse foi superado por iniciativa de Renato Rovai, diretor da revista Fórum: apoiado por Altamiro Borges, do portal Vermelho, ele costurou inteligentemente na plenária uma proposta de acordo que, aceito pela liderança empresarial, e depois ratificado pelo voto de ampla maioria dos delegados de todos os segmentos, salvou os GTs da morte precoce. O famigerado mecanismo do “tema sensível” foi substituído no regimento por um outro dispositivo, que permitiria à bancada empresarial enviar à plenária final pelo menos quatro propostas por GT, à sociedade civil enviar outras quatro, e ao poder público duas, desde que obtivessem entre 30% e 79% dos votos. (Propostas com 80% ou mais dos votos num GT seriam aprovadas diretamente, sem ir à plenária, e isso não mudou.)

Deletado dos GTs, o “tema sensível” foi mantido para a plenária final, onde permitiu às teles e radiodifusores vetar várias propostas importantes dos movimentos sociais, caso da 425 (“Promover a separação estrutural de redes, determinando o desmembramento das empresas de telecomunicações em empresas detentoras de redes e outras prestadoras de serviços”), rejeitada embora tenha conseguido 51% dos votos; da 427 (“Fortalecer a Telebrás utilizando, entre outros, recursos do FUST” — que vem a ser o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações — “para fornecer serviços de telecomunicações e coordenar a criação de infra-estrutura pública a partir de redes ociosas das empresas estatais, privilegiando o investimento em áreas de baixo IDH” etc.), rejeitada apesar de obter 54% dos votos; da inofensiva 440 (“Aprovar legislação que determine cotas crescentes nas emissoras de televisão de sinal aberto e fechado para a veiculação de animação produzida nacionalmente, garantindo participação majoritária de produções independentes” etc.), apesar de receber 53% dos votos…

A indignação dos movimentos sociais diante do uso, pelo empresariado, do “tema sensível” acabou provocando uma retaliação nos mesmos moldes. O feitiço voltou-se contra o feiticeiro, quando os delegados dos movimentos passaram a pedir “tema sensível” para propostas de interesse da ABRA e da Telebrasil! É notável que, embora nenhuma das propostas do empresariado para as quais os movimentos exigiram “tema sensível” tenha obtido sequer maioria simples, em várias votações os números foram preocupantes, na medida em que revelaram, pontualmente, maior adesão dos delegados do setor público (o fiel da balança) às teses empresariais. Assim, por exemplo, a proposta 192 ― “não bi-tributação nos serviços de telecomunicações, enquadramento no SIMPLES pela capacidade econômica e não mais pela natureza do serviço” ― foi rejeitada, tendo o “não” recebido 49% dos votos e o “sim” outros 49%!

Também a proposta 430, sobre um Plano Nacional de Banda Larga que contemplasse “a desoneração tributária dos serviços e investimentos”, foi rejeitada por 409 votos (51%) a 399 (49%). Outras propostas de desoneração tributária foram rejeitadas, como a 15, que reduzia as taxas do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações, o Fistel (50% a 49%).

Apesar desses reveses, os conglomerados presentes na Confecom viram aprovadas algumas propostas de seu interesse, como a 718, que garante “a distribuição dos conteúdos brasileiros, locais e regionais, com a proibição de controle por determinado grupo de programadores de conteúdo com mais de 25% da grade de programação em qualquer plataforma fechada de distribuição (MMDS, DTH, Tv a cabo, celular etc.)”. Essa medida tem endereço certo, pois ataca o monopólio que a Globo exerce atualmente na distribuição de conteúdos da TV por assinatura (microondas, satélite e cabo). Outras propostas mais avançadas do que esta foram aprovadas por unanimidade, com a cumplicidade da ABRA e Telebrasil, pois claramente criam mais dificuldades para a Globo do que para elas.

Conquistas

Para encerrar este balanço, apontamos algumas das medidas conquistadas na Confecom e cuja implantação concreta certamente pautará as próximas lutas:

*712: “Criação de Conselhos de Comunicação nos âmbitos federal, estaduais e municipais, de caráter paritário, com membros eleitos”. Entre suas atribuições deverão constar “a regulação de conteúdos, política de concessões, mecanismos de distribuição”.

*79: Nos processos de outorga de emissoras de rádio e TV, estabelecer como quesitos a “preferência aos que ainda não têm meios de comunicação, o fortalecimento da produção cultural local e a ampliação de empregos diretos”, bem como “a maior oferta de tempo gratuito disponibilizado para organizações sociais e produções independentes”. Na renovação das outorgas, “deve ser observado a) o respeito à diversidade e o tratamento dado à imagem da mulher, da população negra e indígena e da população LGBT; b) a regularidade trabalhista, fiscal e previdenciária; e c) o cumprimento do disposto no artigo 221 da Constituição Federal” (“preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente; regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”).

* 199: “Criar mecanismos de fiscalização, inclusive com ações punitivas, para emissoras de rádio e TV que veiculem conteúdos que desvalorizem, depreciem ou estigmatizem crianças e minorias historicamente discriminadas e marginalizadas (negros, LGBTs, comunidades de terreiro, mulheres, pessoas com deficiência, idosos, indígenas)”.

* 788: “Reparação e anistia para os comunicadores processados e ou punidos por operarem rádios comunitárias sem outorga”.

*Lei de Imprensa, diploma de jornalista, “cláusula de consciência” para comunicadores profissionais (jornalistas e radialistas).

* 28: “Que a EBCT (Correios) ofereça tarifas diferenciadas de serviço para as pequenas empresas de comunicação e que crie uma operação para romper o atual monopólio existente no setor de distribuição de periódicos (jornais, revistas, livros e produtos culturais em geral)”.

*417: “Criação do serviço de banda larga a ser prestado em regime público, por meio de diversas tecnologias, com metas de universalização do acesso, metas de qualidade, controle de tarifa e garantia de continuidade”. 421: “O acesso à Internet banda larga é um direito fundamental e deve ser garantido pelo Estado”, “garantindo a gratuidade do serviço sempre que necessário”.

* 745: “Desenvolver políticas para a criação de núcleos comunitários de comunicação com a perspectiva de fornecer os aparatos técnicos e instrumentais permitindo que a sociedade construa, socialize e discuta suas próprias pautas e produções”.

* 716: “Que os meios de comunicação veiculem conteúdos de caráter educativo, cultural, informativo e ambiental de países latino-americanos, estabelecendo a política de integração da América Latina”.

*Pedro Estevam da Rocha Pomar, jornalista e doutor em ciências da comunicação, foi delegado à Confecom pela sociedade civil de São Paulo. O presente artigo é uma versão revisada de texto originalmente publicado no jornal Página 13 edição eletrônica, n. 6, 1/2/2010.

Dois pesos, duas medidas

Na quinta-feira (28/1), o Jornal Nacional protestou contra a utilização de dois pesos e duas medidas na política externa brasileira. Segundo o telejornal, o Brasil apoiou o golpista Manuel Zelaya e se recusa a atacar o autoritário Hugo Chávez. Os jornalistas globais silenciaram sobre o Plano Nacional de Direitos Humanos porque os telespectadores ficaram cansados da ladainha acerca de uma suposta violação da liberdade de imprensa.

Quem usa dois pesos e duas medidas: o governo ou o Jornal Nacional?

Apesar das lamentações, a política externa brasileira tem sido absolutamente consistente. Zelaya foi regularmente eleito e seu mandato foi interrompido por um golpe militar. O Brasil não poderia deixar de dar-lhe apoio. Tanto a ONU quanto a OEA afirmaram de maneira inequívoca e veemente que a deposição do presidente de Honduras atenta contra a ordem internacional. Portanto, seria absolutamente contraproducente o Brasil ficar ao lado dos golpistas. Isto o Brasil fazia nos tempos da ditadura, a mesma ditadura que foi apoiada diligentemente pelo falecido Roberto Marinho.

Gostemos ou não, Chavéz é o legítimo presidente da Venezuela. Em razão do princípio da autodeterminação dos povos, a maioria dos venezuelanos tem o direito de escolher livremente qual será a ordem econômica e política do país. O Brasil não tem legitimidade para interferir na política interna da Venezuela, pois aquele país tem um regime constitucional legítimo que prevê eleições periódicas, eleições estas que foram realizadas de maneira absolutamente correta.

Sonegação de informações relevantes

O Itamaraty não está usando dois pesos e duas medidas. Portanto, podemos concluir que a Rede Globo não gosta da atual política externa brasileira. Não vou entrar no mérito das preferências globais. Mas não posso deixar de registrar que o Brasil tem Constituição e segundo esta a legitimidade para a condução da política externa é do Itamaraty, e não do Jornal Nacional.

No meu modesto modo de entender, quem utilizou dois pesos e duas medidas foi o próprio JN, que atacou ferozmente o que considerou uma interferência indevida na mídia venezuelana. Entretanto, os telespectadores não foram informados acerca de quais são as regras legais válidas a que estão submetidas as redes de TV na Venezuela.

Esta omissão é imperdoável. Sem conhecer as regras aplicáveis àquele país, ninguém pode avaliar se Hugo Chavéz agiu ou não de maneira autoritária. Afinal, gostemos ou não, ele pode apenas ter utilizado prerrogativas que lhe foram atribuídas pela legislação. Como podemos considerar ilegítima uma interferência na mídia que foi feita dentro da Lei? Desde quando a Venezuela tem a obrigação de adotar os mesmos padrões legais que o Brasil?

Além da omissão citada, há um outro detalhe importante. O JN reclamou da falta de liberdade de imprensa na Venezuela, mas utilizou a liberdade de imprensa que tem no Brasil para sonegar informações relevantes aos telespectadores brasileiros. Isto é correto? Onde começa e onde termina a liberdade de imprensa no Brasil?

Empresa vai conseguir o que não quer

Os cidadãos brasileiros têm direito constitucional à informação. Mas isto não quer dizer que tenham direito a "qualquer" informação. Informação é aquilo que reduz a incerteza, razão pela qual uma informação deformada ou lacunosa deve ser considerada uma "não informação". Por via de consequencia, no Brasil a mídia tem o dever de divulgar informações precisas, inteiras, detalhadas e de evitar produzir deformações ou omissões deliberadas ou não intencionais.

O JN tinha condições de consultar e divulgar a legislação venezuelana acerca da mídia para permitir aos cidadãos brasileiros avaliar e julgar as decisões de Chávez? Eu penso que sim. A Rede Globo tem correspondentes na Venezuela e o governo venezuelano disponibiliza on-line sua legislação (ver aqui).

As deformações e omissões divulgadas pela mídia impedem os cidadãos de exercer plenamente a cidadania. Foi exatamente isto que ocorreu no dia 28. O JN sonegou informações acerca da legislação venezuelana, informações que estavam à sua disposição. Não me parece absurdo concluir que é antiético defender a liberdade de imprensa através da difusão do erro. Que liberdade de imprensa a Rede Globo defende?

É irritante a insistência da Rede Globo em defender a RCTV impedindo os brasileiros de saber exatamente se Hugo Chávez poderia ou não suspender o sinal daquela emissora. O comportamento da Rede Globo me deixa cada vez mais curioso. Qual a composição acionária da RCTV? A Rede Globo está defendendo a liberdade de imprensa ou seus interesses empresariais na Venezuela?

O episódio provocado pela omissão do JN é sério e sugere um debate mais profundo sobre questões relevantes. Quais os limites da liberdade de imprensa? Pode uma empresa de mídia deformar ou sonegar informações relevantes? A liberdade de imprensa possibilita as empresas de mídia defender seus interesses comerciais? Uma Rede de TV brasileira tem legitimidade para colocar os cidadãos contra uma política governamental adequada levada a efeito pelo órgão governamental legítimo?

Deste jeito, a Rede Globo vai conseguir exatamente o que não quer. Ali Kamel está dando combustível para os defensores das normas do PNDH que pretendem frear os abusos midiáticos praticados pela mídia brasileira.

* Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado em Osasco (SP).

Mídia e FSM: uma novela em 10 capítulos

Mais uma edição do Fórum Social Mundial. Mais edições de jornais e revistas míopes. 10 anos depois, era de se esperar que a mídia conseguisse sair do seu cômodo lugar de simplificadora da realidade e compreendesse a complexidade do FSM? Não. Ainda bem, porque assim, não nos frustramos.

Dia 27 de janeiro, acordei para mais um dia de atividades do FSM Grande Porto Alegre. Depois do café, acompanhei a edição do jornal Bom dia Brasil, da Rede Globo. A manchete sobre o FSM é que o evento vive uma espécie de crise de identidade, esvaziado e sem propostas concretas.

Ora, o objetivo do FSM – nestes dez anos – foi construir um contraponto à visão de que a política é sinônimo de desenvolvimento econômico (numa menção direta ao Fórum de Davos), dar visibilidade às lutas e diversos movimentos e, por fim, articular estas lutas, promovendo uma sinergia, uma espécie de caldeirão, um espaço de processamento. Esta complexidade a mídia comercial nunca compreendeu. E sempre fez críticas ao FSM como espaço de “muita teoria e pouca prática”. Claro, um espaço que não se encaixa nas categorias cartesianas e que tem uma profundidade que o raso olhar da mídia privada não consegue alcançar. Um espaço da multiplicidade, da diversidade, da alteridade. Valores difíceis de a mídia estreita entender.

Um segundo ponto, em relação ao esvaziamento do evento, é – no mínimo – falta de informação. Este ano, ainda que Porto Alegre tenha concentrado um grande volume de atividades, o Fórum é descentralizado , e está acontecendo em mais de 27 grandes mobilizações ao redor do mundo. Ou seja, não se trata de um esvaziamento. Pelo contrário. O encontro em Porto Alegre, inclusive, superou as expectativas em termos de volume de público.

Por fim, durante o FSM, tive a oportunidade de acompanhar a cobertura da mídia gaúcha ao encontro na Região Metropolitana de Porto Alegre. Um olhar panorâmico pode nos fazer pensar que a mídia local é uma rara exceção. A cobertura é rica, diversa, aprofundada em muitos casos, plural, no sentido das vozes que a protagonizam. Sim, é fato que a cobertura é um exemplo do que poderia serem todos os demais meios. Mas é preciso ponderar que a mídia local tem um interesse direto na promoção de um evento que projetou Porto Alegre para o mundo e que traz inegavelmente uma movimentação econômica para a cidade.

Esta novela começou há dez anos. E a relação do FSM com a mídia comercial nunca terá um final feliz. Afinal de contas, faz tempo que os meios de comunicação deixaram de ser porta-vozes da elite, do poder e do mercado. Hoje, as empresas de comunicação integram este poder, se não são um dos maiores na correlação de forças global. Portanto, se o Fórum é um movimento contra-hegemônico, é um movimento “inimigo” da grande mídia.

Felizmente, o FSM vem amadurecendo – e muito – a sua concepção e comunicação e integrando esta dimensão à agenda do novo ciclo que se inicia rumo a Dakar, no ano que vem. Em 10 anos, de instrumento de divulgação, a comunicação avançou para eixo de debate e em seguida para direito a ser reivindicado pelos movimentos do campo do FSM (veja também: A comunicação nos dez anos do FSM).

Na mesa sobre sustentabilidade do Seminário Internacional que foi promovido em Porto Alegre estes cinco dias, foi bom ouvir que a comunicação deve ser encarada antes de tudo como um direito, mas também como um questão do entorno, da esfera pública, do ambiente que nos cerca. E que a revolução de que precisamos é fortemente marcada por uma dimensão comunicacional-cultural.

Se, cada vez mais, a plataforma FSM incorpora as questões por uma comunicação democrática e suas práticas internas mostram que as comunicações públicas, livres e alternativas são possíveis, até quando a grande mídia conseguirá condenar o Fórum a retaliações, omissões e invisibilidades? Como dizia a faixa das mulheres na marcha de abertura do FSM Grande Porto Alegre, “seguiremos em marcha até que todas estejamos livres”. Neste caso, até que todos/as tenhamos voz.

* Jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e doutoranda em Educação (FE-USP). Integrante do Intervozes e assessora de comunicação da ONG Ação Educativa. Autora do livro “Um Mundo de Mídia” (Ed. Global).