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O olhar vesgo da imprensa

Atenta, como sempre, às oportunidades do jornalismo como espetáculo, a imprensa brasileira dá grande destaque, nas edições de quinta-feira (18/3), à manifestação ocorrida no Rio de Janeiro em protesto contra a emenda do deputado Ibsen Pinheiro, que tenta alterar o sistema de partilha dos recursos da exploração do petróleo.

Os jornais estão prenhes de imagens e declarações, quase unanimemente repercutindo as queixas dos estados em cujas áreas territoriais é feita a extração, mas nenhum deles vai ao que interessa na questão dos royalties.

A análise mais interessante não cativou os editores e nem brotou de uma pergunta inteligente de um repórter. Ela foi dada espontaneamente pelo empresário Oded Grajew, um dos criadores do Instituto Ethos de Responsabilidade Social Empresarial e o principal articulador do movimento Nossa São Paulo.

Baixo IDH

Grajew declarou, inicialmente à rádio CBN, que os debates em torno da riqueza potencial das novas reservas de petróleo estão deslocados do seu eixo mais importante. Discute-se para onde deve ir o dinheiro, quanto cabe a cada estado e a cada município detentor dos direitos segundo a lei; se o dinheiro deve privilegiar ou compensar essas unidades da Federação ou se deve ser repartido igualmente para todos os Estados.

Na opinião de Oded Grajew, que sequer foi suspeitada pelos jornais, a questão principal é: o que fazer com a dinheirama.

O empresário lembra que, até agora, os royalties pago aos municípios que são sede de atividades petrolíferas não serviram a suas populações. Ele observa que os municípios fluminenses de Campos dos Goytacazes e Macaé, duas das principais entradas do petróleo da bacia de Campos, não registraram melhoras significativas nas condições de vida de suas populações desde que o petróleo começou a jorrar.

Segundo dados da ONU, Macaé se encontra na posição 815 no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal no Brasil. Campos dos Goytacazes é o município número 1.818 na lista do IDH-M, com altos índices de analfabetismo e uma renda per capita equivalente à de Nova Iguaçu e inferior à de Nilópolis.

Os jornais passam ao largo dessa questão. Por quê?

Benefícios de longo prazo

A maioria dos principais meios da imprensa brasileira ainda separa a economia do bem-estar social. Orçamentos, faturamentos, receita tributária, Produto Interno Bruto e outros dados sobre a riqueza nacional raramente são cotizados com o que podem ou devem produzir de bem-estar para a população.

No caso dos royalties do petróleo, a observação de Oded Grajew apanha a imprensa de olhos tapados. Por que antes que ele fizesse essa observação nenhum jornal havia proporcionado a seus leitores esse questionamento, que deveria ser a essência de todo o noticiário sobre os recursos financeiros disponíveis? A quem devem beneficiar?

No caso do Rio, centro principal dos protestos dos estados e municípios produtores de petróleo, que se sentem lesados pela emenda do deputado Ibsen Pinheiro, o principal argumento que se apresenta é o da suposta dificuldade que tal emenda, se vier a ser aprovada pelo Senado e aceita pelo Executivo, poderá provocar para o financiamento da Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.

Muito provavelmente os queixosos têm razão, a se considerar o que diz a Constituição.

A pergunta que nenhum jornalista fez, e que foi respondida assim mesmo pelo empresário Oded Grajew, é: que benefícios de longo prazo as populações desses e de outros estados podem esperar da anunciada riqueza que deve jorrar das reservas do pré-sal?

Reproduzindo o chororô

Os principais jornais do país, aqueles que têm influência nacional, não se tocaram que essa é a questão mais importante porque não possuem, em seu DNA e em sua cultura interna, a sensibilidade para os temas relacionados à questão do desenvolvimento sustentável.

Costumam investir tempo e dinheiro na remodelação gráfica, como fez o Estado de S.Paulo na semana que passou, fazem esforços de cobertura dos grandes eventos, mas não tratam de introduzir em seu sistema de convicções os paradigmas da sustentabilidade.

Aceitar o chororô de governadores e prefeitos que alegam o risco da falência – sem perguntar o que o dinheiro do petróleo tem feito pelo bem-estar de suas populações – é o mesmo que reproduzir os press-releases, os comunicados oficiais dos governantes.

Para isso nem é preciso ser jornalista.

* Luciano Martins Costa é jornalista e colaborador do Observatório da Imprensa.

Cadê a marcha de mulheres na mídia?

Estamos no final da primeira semana da terceira Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres que, no Brasil, organizou 3 mil lutadoras, numa ousada caminhada por dez cidades, de Campinas à São Paulo, quando chega no dia 18. Buscando no portal Google a notícia, importantíssima se a imprensa fosse mesmo democrática, encontramos 119 mil páginas! Na busca do portal UOL, da Folha de São Paulo, encontramos menos, 44.900.

Entretanto, quando vamos à pesquisa, confirmamos o que já sabíamos. A maioria das notícias estão em sites de organizações e movimentos sociais, como centrais sindicais (CUT e CTB) e sindicatos afiliados a elas, conselhos, como os de Psicologia e Assistentes Sociais, nas listas e redes de mulheres e da luta pela comunicação democrática, em diversos estados do Brasil.

Também encontraremos comentários, sempre apoiadores, em inúmeros blogs independentes, nos sites do PT, Psol, PC do B, e na imprensa contra-hegemônica, seja a sindical, como a Rede Brasil Atual, da CUT, ou o Portal da CTB, Agência Carta Maior, Revistas Caros Amigos, Fórum, Jornal Brasil de Fato, e por aí vai.

Sites de Prefeituras destacaram a ação feminista – Louveira, Sumaré, Várzea Paulista -, com destaque para a última cidade, onde foi realizada o lançamento da Marcha na região, e há boa matéria no portal municipal. Na mídia comercial, por enquanto só houve matérias razoáveis em veículos pequenos, da região por onde a Marcha passou. Assim, jornais de Campinas, Jundiaí, Vinhedo, Itupeva, de Louveira, deram a notícia. Pudera, quem está vendo o movimento não consegue deixar de perceber a importância do que estão falando essas marchantes, por uma vida melhor para todos.

Invisível ou deturpada

Terceiro dia da Marcha, 10 de março, a grande mídia combinou de dar a notícia. A maioria utilizou texto curto da Agência Estado, quase sempre em sites, dos grandes apenas o Estadão deu matéria escrita. A mesma matéria nos portais IG, Abril, Diário da Manhã, de Goiás, Hoje em Dia, de MG. Manchete que deve ter rodado o Brasil: “Marcha reúne 1.200 mulheres na Rodovia Anhangüera”.

Pior foi a Globo, prá variar. No mesmo dia, nota na Agência O Globo, reproduzida na EPTV.com, afiliada local – ou vice-versa – tinha chamada mais batida ainda: “Marcha de Mulheres deixa trânsito lento na Rodovia Anhanguera em SP”. A matéria, ainda menor que a do Estadão, falava na participação de centenas de mulheres. A Bandnews FM, quase na mesma hora em que a Marcha passou na frente de sua sede, no caminho de Valinhos a Vinhedo, fazia comentários depreciativos do movimento: não tínhamos liderança, nem objetivo, como tínhamos tempo de estar ali, etc… A CBN, que também esteve cobrindo o terceiro dia, destacou as marchantes que passaram mal.

O portal UOL, da Folha de São Paulo, colocou por alguns minutos um álbum de fotografias, ainda de Campinas. Mais importante, sobre a plataforma da Marcha, a qualidade das mulheres que lá está, ouvi-las, o que seria de se esperar da boa imprensa, nada disso acontece. Seria um bom exemplo de solidariedade, do viver coletivamente, um exercício de democracia, diversidade, respeito. Quem tem medo do novo mundo possível?

Mulheres querem o controle social de sua imagem

Por isso, um dos temas discutidos pelas mulheres, divididas em grupos na tarde de formação nesse mesmo dia 10, foi a mídia e a luta feminista. Há muito tempo, as feministas perceberam a mercantilização da imagem da mulher e de seu corpo, e a deturpação do feminino no imaginário coletivo, historicamente e em todas as culturas.

No Brasil, desde a década de 1970, ativistas feministas discutem principalmente a publicidade, tendo realizado diversas ações contra a coisificação da mulher. De uns anos para cá, elas perceberam a importância estratégica de lutar pela democratização dos meios de comunicação e pelo controle social de sua programação. Assim, há três anos surgiu a Articulação Mulher e Mídia, em São Paulo, frente que reune várias organizações, como relatou Bia Barbosa, do Coletivo Intervozes.

“Defendemos que a comunicação deve ser discutida por todos e todas, não apenas pelos profissionais da área, pois é direito”, falou a jornalista, que também está nesta Marcha responsável pela assessoria de imprensa. Criticando a concentração dos meios, o fim da lei de imprensa, as distorções da imagem da mulher nos programas humorísticos, novelas, na publicidade, Bia convocou as mulheres a se apropriarem de meios comunicativos, pelo fim “da concentração da mídia, da ausência de outras vozes, com outras visões”.

Comunicadoras populares

Iracema, da delegação do Rio Grande do Norte, é uma comunicadora popular da ASA – Articulação do Semi-Árido , que vem desenvolvendo programas de rádio e vídeos dirigidos para as mulheres. No programa “Riquezas da caatinga”, as mulheres trocam experiências sobre economia solidária, agroecologia, esporte, mulher e mídia e outros assuntos prioritários na luta feminista. Elas vieram preparadas para fazer programas de rádio durante a Marcha.

Rosane Bertotti, responsável pela Comunicação, na CUT Nacional, resgatou o papel da Confecom e defendeu o papel estratégico do tema. “Em todo o movimento que se vai”, disse ela, “comunicação e formação são sempre as duas principais necessidades; claro, comunicação é peça chave no processo de discussão de que país se quer”. A líder cutista falou ainda sobre a ultrapassada legislação, financiamento, as verbas publicitárias estatais que financiam a comunicação no Brasil, sobre a necessidade de nos apropriarmos de tecnologia. “No debate das eleições, não podemos deixar de fora a questão da comunicação”.

Criança e Consumo

Especialistas no tema debaterão como prevenir e reduzir os efeitos da publicidade de produtos e serviços destinados a crianças e adolescentes.

A população com idade inferior a 12 anos é hipervulnerável à comunicação mercadológica devido ao mimetismo próprio da infância, à falta de discernimento, à afirmação da personalidade, à dificuldade de distinguir desejo e necessidade. ‘Formar cidadãos ou consumistas?’, eis a questão.

Nessa cultura hedonista em que os valores sonegados da subjetividade são pretensamente substituídos pelo valor agregado da posse de bens e serviços, crianças e jovens se vêem ameaçados pela incidência alarmante da obesidade precoce, a violência (inclusive nas escolas), a sexualidade irresponsável, o consumo de drogas, o estresse familiar e a degradação das relações sociais.

Com a laicização crescente da sociedade ocidental que, com razão, repudia o fundamentalismo religioso, a moral perde seu anteparo na vivência da fé; as ideologias altruístas, em crise, cedem lugar ao individualismo egocêntrico; a tecnociência aprimora meios de relacionamento virtual em detrimento da alteridade real e da inter-relação comunitária e coletiva.

Vivemos, como Sócrates, na terceira margem do rio: os deuses do Olimpo já não oferecem parâmetros éticos, e a razão depara-se com a própria insuficiência frente à avassaladora pressão mercantilizadora de todas as dimensões da existência. Onde, nos mais jovens, o idealismo, a abnegação, a ânsia pelo transcendente, o sonho de mudar o mundo?

Na contramão da tendência imperante, o projeto do Instituto Alana disponibiliza instrumentos de apoio e informações sobre direitos do consumidor nas relações de mercado que envolvam crianças e adolescentes. Produz e distribui conhecimento acerca do impacto do consumismo na formação desse público, fomenta a reflexão a respeito da influência da mídia e da comunicação mercadológica na vida, nos hábitos e nos valores de pessoas em idade de formação.

O projeto Criança e Consumo engloba três áreas: jurídico-institucional; comunicação e eventos; pesquisa e educação. A área jurídico-institucional recebe denúncias de práticas de comunicação mercadológica – principalmente publicidade veiculada em TV, internet e revistas – consideradas abusivas. Em contato com as empresas responsáveis pela peça publicitária, faz-se notificação para que cesse a veiculação do apelo comercial.

A área de comunicação e eventos promove debates e seminários para discutir e divulgar essas questões. A de educação e pesquisa estuda de maneira multidisciplinar a temática e divulga no site (http://www.criancaeconsumo.org.br/) bibliografia concernente ao tema.

A partir dessas iniciativas, o projeto contribui para a formação de uma consciência crítica e cidadã sobre os aspectos negativos da mercantilização da infância e da juventude.

No início de março, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) sinalizou que as novas regras sobre publicidade de alimentos e bebidas não saudáveis, a serem divulgadas, não oferecerão proteção especial ao público infantil.

Isabella Henriques, coordenadora do projeto Criança e Consumo, alertou para as graves conseqüências dessa decisão, que exclui todos os artigos de proteção à infância, como o veto ao uso de desenhos em publicidade, à promoção de alimentos e bebidas nocivas em escolas e de ofertas com brindes. Segundo ela, isso significa o poder público negligenciar os direitos das crianças e adolescentes, declinando-os em favor de interesses privados.

Crianças não podem ser tratadas como consumidoras comuns. Merecem tratamento diferenciado. É preciso levar em conta o trabalho da força-tarefa criada em 2009 pelo Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC), voltado à proteção de consumidores hipervulneráveis. Essa força-tarefa conta com a participação do Instituto Alana, do grupo de comunicação social do Ministério Público Federal, da Anvisa e do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Induzir a criança ao consumismo precoce é inflar o desejo na direção de ambições desmedidas. E quanto maior o anseio, mais profundo o buraco no coração e, portanto, a frustração e os sintomas depressivos. Perversa intuição profissional faz com que o traficante de drogas conheça bem essa patologia e dela saiba tirar proveito.

* Frei Betto é escritor, assessor de movimentos sociais e membro do conselho do Instituto Alana, autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros.

Direitos autorais: reforma para o autor, para a educação e o interesse público

Os direitos autorais têm a função de resguardar os interesses morais e patrimoniais dos criadores de obras artísticas e intelectuais. Essa é a sua função ligada ao reconhecimento da autoria e à proteção da propriedade. E, para esta última, há de se ter mecanismos jurídicos de remuneração dos autores por seus trabalhos.

No entanto, os direitos autorais possuem também uma outra natureza, essa ligada aos direitos fundamentais, tanto de liberdade de expressão dos indivíduos (de produzir e disseminar suas opiniões) quanto de acesso à cultura e ao conhecimento.

Dimensões econômica e humana, portanto, que devem ser compatibilizadas. E nesse sentido, quando se trata de uma marco regulatório para todas as situações sociais que envolvem os direitos autorais, o interesse público deve ser o norte. E o sentido, a proteção dos direitos individuais, mas sempre em convergência com a finalidade pública das obras criadas.

No Brasil, os direitos autorais são regulados pela Lei 9.610, de 1998, a chamada LDA (Lei de Direitos Autorais). Desde a sua implementação, essa legislação não sofreu qualquer adaptação que contemplasse as novas demandas por acesso à cultura e ao conhecimento e as novas possibilidades surgidas com as inovações tecnológicas e com o uso cada vez mais expandido e cotidiano da internet.

Para além do debate sobre a regulação dos direitos autorais na era digital, num diagnóstico precedente, a LDA tem se mostrado insuficiente e inadequada para dar conta da realização de direitos fundamentais do cidadão e do consumidor. O direito à educação e ao acesso à cultura, à informação e ao conhecimento são direitos constitucionais com parcas condições de se concretizarem sob a égide da atual legislação autoral.

Processo e fundamentos da reforma

Nesse contexto é que se propõe uma reforma da Lei de Direitos Autorais. Um processo conduzido pelo MinC (Ministério da Cultura) desde 2007, com debates, audiências públicas e contribuições das diversas organizações envolvidas com o tema e que alcança o estágio atual de anteprojeto de lei em vias de ser aberto para consulta pública, e depois seguir para votação no Congresso.

Em termos técnicos, essa reforma da LDA tem fundamento. Indubitável, inclusive, se considerarmos que a lei atual: está desalinhada com os usos de obras possibilitados pelas novas tecnologias; não permite plenamente o uso das obras para fins educacionais e científicos; não contribui de forma eficiente para a proteção ao patrimônio cultural; mantém as obras protegidas por mais tempo que o necessário para a disponibilização em domínio público; e dá poucas garantias reais de proteção aos autores, na sua relação com os intermediários culturais.

Em termos concretos, urge uma reforma que de fato flexibilize os direitos autorais. Artistas que querem ver sua obra acessada pelo maior número de pessoas possível. Professores devem poder usar livremente filmes, textos, poemas, músicas para incrementar suas aulas. Universitários precisam ter acesso aos livros e textos obrigatórios na sua grade curricular. Autores querem ser devidamente ressarcidos pela sua produção.

Diagnóstico em mãos, o prognóstico é bom? Com a reforma, a lei evolui? Em termos. O projeto revisa a lei trazendo pontos positivos, como a permissão da cópia privada, feita em um exemplar, de obra legitimamente adquirida, o que inclui a cópia digital de filmes e músicas.

Educação é falha no projeto de reforma

Contudo, o projeto de lei não avança em algumas questões essenciais. Chega a ser um retrocesso em outras. E o que pode ser fatalmente prejudicado com isso é a educação.

Situação séria, se atentarmos para o fato de que a lei brasileira é considerada uma das mais rígidas do mundo, trazendo proibições que não existem em muitos outros países. De acordo com estudo realizado pela Consumers International (março de 2009), o Brasil tem a pior nota (F) no ranking das limitações aos direitos autorais para fins educativos.

E mais séria ainda se olharmos para os dados: 90% da pesquisa científica brasileira, que vai desembocar na produção dos livros, é financiada com dinheiro público; cerca de 30% do faturamento das editoras corresponde ao subsídio público dado em forma de imunidade/isenção fiscal; 85% dos livros de graduação são produzidos por professores pagos pelo Estado; os direitos autorais correspondem a apenas 1,2% da renda mensal desses professores.

Considerando esse quadro, o projeto de lei deveria criar uma limitação específica para o uso educacional de obras protegidas, de maneira que não apenas a cópia, mas a divulgação, a utilização, execução pública da obra, se feita com finalidade educacional, pedagógica, científica ou de pesquisa, fossem permitidos. Previsão que não existe.

Além disso, destaca-se a questão da reprografia. Pela proposta de reforma da lei, suprime-se a atual redação (artigo 46), que permite apenas a cópia de pequenos trechos. No entanto, mantém-se uma redação ambígua, que traz a possibilidade de cópia integral de um livro, num só exemplar, pelo próprio copista. Assim, não se sabe se é apenas a própria pessoa que pode realizar a cópia (como pode fazer com músicas e filmes) ou se ele pode solicitar a um terceiro.

Normativa que afeta a dinâmica útil, barata e cotidiana do xerox na universidade. E que será ainda mais prejudicada —e aqui o retrocesso com relação à lei atual— com a proposta de cobrar por cada cópia tirada (o que em alguns países se chama de “gravame”), com arrecadação dos valores por uma entidade coletiva de direito autoral, responsável por redistribuir o montante aos autores.

Isso causa dois problemas. O primeiro é o fato de essas associações representantes dos autores ou editores não autorizarem a cópia. Não sendo sua adesão obrigatória, isso pode acontecer. E, nesse caso, os livros das editoras a elas filiadas, por exemplo, ficarão indisponíveis para os estudantes.

O segundo problema diz respeito aos custos a serem pagos pelos estudantes, principalmente universitários e especialmente aqueles das classes mais baixas. Sem acesso à internet —segundo o Comitê Gestor da Internet, na classe C apenas 16% da população tem acesso à internet; na classe D, esse percentual cai para 1%—, esses estudantes não poderão fazer cópia digital dos livros, como ocorrerá aos mais abastados, e terão que pagar pelas cópias.

Problemas esses todos relacionados à educação e que o projeto de reforma a LDA, como se apresenta, não é suficiente para resolver. Para além da observância ao direito patrimonial do autor, que é imprescindível, igualmente necessário é conceber um projeto que, de fato, garanta o efetivo equilíbrio entre a proteção dos direitos autorais e o acesso ao conhecimento. E que tenha como princípios o interesse público e a consagração do direito à cultura e à educação.

* Guilherme Varella é advogado do IDEC na área de direito autoral e acesso à cultura. Foi coordenador do Centro de Formação da Brant Associados e produtor da Caravana da UNE.

TV digital: Omissão do STF favorece radiodifusores

Na sexta-feira, 19 de março, completam-se exatos nove meses que a Procuradoria Geral da República (PGR) emitiu parecer sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3944) protocolada pelo PSOL no Supremo Tribunal Federal (STF) em 21 de agosto de 2007 (ver aqui). O parecer da PGR é totalmente favorável a ADI e, à época, o relator, ministro Carlos Ayres Brito, informou, por intermédio de sua assessoria, que sua decisão sairia em 30 dias. Até hoje, nem a decisão do relator e, por óbvio, nem o julgamento no plenário do STF aconteceram.

A relevância do tema para o país e a magnitude dos interesses em jogo fizeram com que a escolha do modelo tecnológico para a TV digital brasileira fosse objeto de debate público à época das decisões tomadas pelo governo Lula (2003-2006) [ver, neste Observatório, "Uma oportunidade que não pode ser desperdiçada" , "Os radiodifusores falam com uma só voz" , "Sobre algumas peculiaridades bem brasileiras" e "O ator principal não foi convidado"]. No entanto, como costuma acontecer entre nós, quase quatro anos depois, embora não se tenha ainda uma decisão final sobre a legalidade dessas decisões, o assunto praticamente "desapareceu" da agenda pública e se considera "favas contadas" a adoção do modelo japonês.

O que os nossos jornalões estão a noticiar, sem mais, é que o ministro das Comunicações, Hélio Costa, viaja para "vender" a TV digital brasileira (?!) para a América Latina, cujo modelo, aliás, já teria sido adotado por Peru, Argentina, Chile e Venezuela (ver aqui , para assinantes).

De que se trata?

A ADI 3944 sustenta a inconstitucionalidade de quatro artigos (7º, 8º, 9º e 10º) do Decreto nº 5.820 , de 29 de junho de 2006. O Decreto5.820/2006 é, na verdade, uma continuação do Decreto nº 4.901/2003 e, ambos, instituem e definem as regras de implantação do SBTVD, isto é, o sistema brasileiro de televisão digital. Os artigos cuja constitucionalidade se questiona são os seguintes:

Art. 7º Será consignado, às concessionárias e autorizadas de serviço de radiodifusão de sons e imagens, para cada canal outorgado, canal de radiofreqüência com largura de banda de seis megahertz, a fim de permitir a transição para a tecnologia digital sem interrupção da transmissão de sinais analógicos.
§ 1º O canal referido no caput somente será consignado às concessionárias e autorizadas cuja exploração do serviço esteja em regularidade com a outorga, observado o estabelecido no Plano Básico de Distribuição de Canais de Televisão Digital – PBTVD.
§ 2º A consignação de canais para as autorizadas e permissionárias do serviço de retransmissão de televisão obedecerá aos mesmos critérios referidos no § 1o e, ainda, às condições estabelecidas em norma e cronograma específicos.

Art. 8º O Ministério das Comunicações estabelecerá, no prazo máximo de sessenta dias a partir da publicação deste Decreto, cronograma para a consignação dos canais de transmissão digital.
Parágrafo único. O cronograma a que se refere o caput observará o limite de até sete anos e respeitará a seguinte ordem:
I – estações geradoras de televisão nas Capitais dos Estados e no Distrito Federal;
II – estações geradoras nos demais Municípios;
III – serviços de retransmissão de televisão nas Capitais dos Estados e no Distrito Federal; e
IV – serviços de retransmissão de televisão nos demais Municípios.

Art. 9º A consignação de canais de que trata o art. 7o será disciplinada por instrumento contratual celebrado entre o Ministério das Comunicações e as outorgadas, com cláusulas que estabeleçam ao menos:
I – prazo para utilização plena do canal previsto no caput, sob pena da revogação da consignação prevista; e
II – condições técnicas mínimas para a utilização do canal consignado.
§ 1º O Ministério das Comunicações firmará, nos prazos fixados no cronograma referido no art. 8o, os respectivos instrumentos contratuais.
§ 2º Celebrado o instrumento contratual a que se refere o caput, a outorgada deverá apresentar ao Ministério das Comunicações, em prazo não superior a seis meses, projeto de instalação da estação transmissora.
§ 3º A outorgada deverá iniciar a transmissão digital em prazo não superior a dezoito meses, contados a partir da aprovação do projeto, sob pena de revogação da consignação prevista no art. 7o.

Art. 10º O período de transição do sistema de transmissão analógica para o SBTVD-T será de dez anos, contados a partir da publicação deste Decreto.
§ 1º A transmissão digital de sons e imagens incluirá, durante o período de transição, a veiculação simultânea da programação em tecnologia analógica.
§ 2º Os canais utilizados para transmissão analógica serão devolvidos à União após o prazo de transição previsto no caput.

Entre as razões apresentadas pela ADI 3944, acatadas pelo parecer da PGR, vale destacar:

"O artigo 223 da Constituição foi violado de duas formas. A primeira, com a utilização no texto do Decreto, do termo `consignação´ para o que é, na verdade, uma concessão. Ou seja, o Decreto, atropelando a competência do Congresso Nacional, concede às emissoras atuais um canal inteiro de 6 megahertz.
(…)
A tecnologia digital (…) é uma nova tecnologia. Se ela não acrescentasse uma capacidade maior de produzir informações e programas, tal `consignação´, em tese, poderia ser aceita, sob o argumento de que se trataria de uma mera modificação de natureza técnica. Mas trata-se de uma tecnologia que concede, e a palavra é significativa, um espaço ou espectro maior de atuação às emissoras atuais.
(…)
Ainda que se considere que a nova tecnologia não implicaria nova concessão, estaríamos, no mínimo, falando em renovação das concessões existentes. Perceba-se que a `migração´ estabelece prazos e condições às concessionárias.
(…)
Num canal de 6 megahertz, várias programações podem ser transmitidas simultaneamente, no que se convencionou denominar multiprogramação. Ao ‘consignar’ às emissoras um canal com tamanha capacidade, está-se, paralelamente, impedindo a entrada de outros atores na programação. Ao invés de se ampliarem as possibilidades de ingresso de outros canais, incluindo novas emissoras e permitindo acesso a programações variadas (…) tem-se uma verdadeira outorga de espaço maior às concessionárias que já atuam no mercado. O que provavelmente ocorrerá é o que a norma constitucional visa a impedir: o oligopólio, ou, melhor dizendo, um aprofundamento do oligopólio já existente"

Quem ganha e quem perde

Logo depois da assinatura do Decreto nº 5.820 escrevi neste Observatório que "uma das maneiras de se identificar os interesses em jogo em determinada decisão é verificar como se manifestam sobre ela os principais atores envolvidos ou seus representantes. No caso da adoção pelo Brasil do modelo japonês para a TV digital, não poderia haver clareza maior sobre quem ganhou e quem perdeu ou sobre quais, de fato, foram os interesses atendidos" ("O ator principal não foi convidado" ).

Basta consultar agora a lista dos amicus curiae aceitos para apresentar suas razões no julgamento ainda a ser feito pelo STF para se constatar a verdade dessa afirmação.

O que sempre esteve em jogo é a oportunidade ímpar para se democratizar o mercado brasileiro de televisão. A opção feita pelo Decreto nº 5.820 favorece inquestionavelmente aos atuais concessionários deste serviço público e impede a ampliação do número de concessionários. Contraria, portanto, o princípio da "máxima dispersão da propriedade" (maximum dispersal of ownership), vale dizer, da pluralidade e da diversidade.

Mais do que isso: o Decreto 5.820/2006 impede a extensão da liberdade de expressão a um maior número de brasileiros que, a não ser acatada a ADI 3944, continuará sendo exercida prioritariamente por aqueles poucos grupos que controlam a grande mídia e equacionam liberdade de expressão com sua liberdade de imprensa.

Às vésperas da assinatura do Decreto 5.820/2006, a Frente Nacional por um Sistema Democrático de Rádio e TV Digital, que reunia cerca de 40 entidades, divulgou um manifesto que terminava com a afirmação: "O governo estará cometendo um erro histórico, que não poderá ser revertido nas próximas décadas" (ver aqui).

Quanto mais tempo demorar a decisão do STF sobre a ADI 3944, mais o Decreto 5820/2006 se tornará "irreversível". É urgente, portanto, que o STF faça o julgamento e, sobretudo, tome uma decisão que evite a confirmação deste "erro histórico".

* Venício A. de Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009).