Direitos autorais: reforma para o autor, para a educação e o interesse público

Os direitos autorais têm a função de resguardar os interesses morais e patrimoniais dos criadores de obras artísticas e intelectuais. Essa é a sua função ligada ao reconhecimento da autoria e à proteção da propriedade. E, para esta última, há de se ter mecanismos jurídicos de remuneração dos autores por seus trabalhos.

No entanto, os direitos autorais possuem também uma outra natureza, essa ligada aos direitos fundamentais, tanto de liberdade de expressão dos indivíduos (de produzir e disseminar suas opiniões) quanto de acesso à cultura e ao conhecimento.

Dimensões econômica e humana, portanto, que devem ser compatibilizadas. E nesse sentido, quando se trata de uma marco regulatório para todas as situações sociais que envolvem os direitos autorais, o interesse público deve ser o norte. E o sentido, a proteção dos direitos individuais, mas sempre em convergência com a finalidade pública das obras criadas.

No Brasil, os direitos autorais são regulados pela Lei 9.610, de 1998, a chamada LDA (Lei de Direitos Autorais). Desde a sua implementação, essa legislação não sofreu qualquer adaptação que contemplasse as novas demandas por acesso à cultura e ao conhecimento e as novas possibilidades surgidas com as inovações tecnológicas e com o uso cada vez mais expandido e cotidiano da internet.

Para além do debate sobre a regulação dos direitos autorais na era digital, num diagnóstico precedente, a LDA tem se mostrado insuficiente e inadequada para dar conta da realização de direitos fundamentais do cidadão e do consumidor. O direito à educação e ao acesso à cultura, à informação e ao conhecimento são direitos constitucionais com parcas condições de se concretizarem sob a égide da atual legislação autoral.

Processo e fundamentos da reforma

Nesse contexto é que se propõe uma reforma da Lei de Direitos Autorais. Um processo conduzido pelo MinC (Ministério da Cultura) desde 2007, com debates, audiências públicas e contribuições das diversas organizações envolvidas com o tema e que alcança o estágio atual de anteprojeto de lei em vias de ser aberto para consulta pública, e depois seguir para votação no Congresso.

Em termos técnicos, essa reforma da LDA tem fundamento. Indubitável, inclusive, se considerarmos que a lei atual: está desalinhada com os usos de obras possibilitados pelas novas tecnologias; não permite plenamente o uso das obras para fins educacionais e científicos; não contribui de forma eficiente para a proteção ao patrimônio cultural; mantém as obras protegidas por mais tempo que o necessário para a disponibilização em domínio público; e dá poucas garantias reais de proteção aos autores, na sua relação com os intermediários culturais.

Em termos concretos, urge uma reforma que de fato flexibilize os direitos autorais. Artistas que querem ver sua obra acessada pelo maior número de pessoas possível. Professores devem poder usar livremente filmes, textos, poemas, músicas para incrementar suas aulas. Universitários precisam ter acesso aos livros e textos obrigatórios na sua grade curricular. Autores querem ser devidamente ressarcidos pela sua produção.

Diagnóstico em mãos, o prognóstico é bom? Com a reforma, a lei evolui? Em termos. O projeto revisa a lei trazendo pontos positivos, como a permissão da cópia privada, feita em um exemplar, de obra legitimamente adquirida, o que inclui a cópia digital de filmes e músicas.

Educação é falha no projeto de reforma

Contudo, o projeto de lei não avança em algumas questões essenciais. Chega a ser um retrocesso em outras. E o que pode ser fatalmente prejudicado com isso é a educação.

Situação séria, se atentarmos para o fato de que a lei brasileira é considerada uma das mais rígidas do mundo, trazendo proibições que não existem em muitos outros países. De acordo com estudo realizado pela Consumers International (março de 2009), o Brasil tem a pior nota (F) no ranking das limitações aos direitos autorais para fins educativos.

E mais séria ainda se olharmos para os dados: 90% da pesquisa científica brasileira, que vai desembocar na produção dos livros, é financiada com dinheiro público; cerca de 30% do faturamento das editoras corresponde ao subsídio público dado em forma de imunidade/isenção fiscal; 85% dos livros de graduação são produzidos por professores pagos pelo Estado; os direitos autorais correspondem a apenas 1,2% da renda mensal desses professores.

Considerando esse quadro, o projeto de lei deveria criar uma limitação específica para o uso educacional de obras protegidas, de maneira que não apenas a cópia, mas a divulgação, a utilização, execução pública da obra, se feita com finalidade educacional, pedagógica, científica ou de pesquisa, fossem permitidos. Previsão que não existe.

Além disso, destaca-se a questão da reprografia. Pela proposta de reforma da lei, suprime-se a atual redação (artigo 46), que permite apenas a cópia de pequenos trechos. No entanto, mantém-se uma redação ambígua, que traz a possibilidade de cópia integral de um livro, num só exemplar, pelo próprio copista. Assim, não se sabe se é apenas a própria pessoa que pode realizar a cópia (como pode fazer com músicas e filmes) ou se ele pode solicitar a um terceiro.

Normativa que afeta a dinâmica útil, barata e cotidiana do xerox na universidade. E que será ainda mais prejudicada —e aqui o retrocesso com relação à lei atual— com a proposta de cobrar por cada cópia tirada (o que em alguns países se chama de “gravame”), com arrecadação dos valores por uma entidade coletiva de direito autoral, responsável por redistribuir o montante aos autores.

Isso causa dois problemas. O primeiro é o fato de essas associações representantes dos autores ou editores não autorizarem a cópia. Não sendo sua adesão obrigatória, isso pode acontecer. E, nesse caso, os livros das editoras a elas filiadas, por exemplo, ficarão indisponíveis para os estudantes.

O segundo problema diz respeito aos custos a serem pagos pelos estudantes, principalmente universitários e especialmente aqueles das classes mais baixas. Sem acesso à internet —segundo o Comitê Gestor da Internet, na classe C apenas 16% da população tem acesso à internet; na classe D, esse percentual cai para 1%—, esses estudantes não poderão fazer cópia digital dos livros, como ocorrerá aos mais abastados, e terão que pagar pelas cópias.

Problemas esses todos relacionados à educação e que o projeto de reforma a LDA, como se apresenta, não é suficiente para resolver. Para além da observância ao direito patrimonial do autor, que é imprescindível, igualmente necessário é conceber um projeto que, de fato, garanta o efetivo equilíbrio entre a proteção dos direitos autorais e o acesso ao conhecimento. E que tenha como princípios o interesse público e a consagração do direito à cultura e à educação.

* Guilherme Varella é advogado do IDEC na área de direito autoral e acesso à cultura. Foi coordenador do Centro de Formação da Brant Associados e produtor da Caravana da UNE.

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