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Associação vai exigir ações afirmativas para negros/as no audiovisual

Homens negros representam menos de 2% das lideranças profissionais em grandes produções audiovisuais; as mulheres negras estão completamente ausentes

Por Marina Pita*

“A melhor resposta que poderíamos dar a essa conjuntura de avanço do conservadorismo nos níveis municipal, federal e internacional era essa”, afirmou a advogada e cineasta Viviane Ferreira, ao analisar a criação da Associação dos/as Profissionais do Audiovisual Negro (Apan).

A organização será formalizada publicamente nesta sexta-feira 2, durante a realização da série Diálogos Ausentes e 1º Seminário Audiovisual Negro. A partir de então, a Apan passará também a compor o Conselho Consultivo da SPCine – empresa de cinema e audiovisual de São Paulo ligada à Secretaria Municipal de Cultura –, criando mais uma frente de reivindicação e demanda para políticas de incentivo ao audiovisual negro.

Em uma das mesas de debate do Encontro SPCine, realizado entre 16 e 18 de novembro, em São Paulo, a fala de Viviane e o anúncio, tanto da criação da Apan, quanto da nova composição do Conselho Consultivo da SPCine, ganhou ares de momento histórico.

Isso porque a participação de profissionais negros e negras no audiovisual no País é baixíssima, quase inexistente, apesar de o Brasil ser um país cuja população é 54% negra, conforme último dado disponível do IBGE.

Pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), com as vinte maiores bilheterias de cada ano, considerando 2002 a 2014, escancarou o racismo na produção audiovisual brasileira: 84% dos cineastas são homens brancos; 14%, mulheres brancas; e 2%, homens negros.

E nestes 13 anos analisados, nenhuma mulher negra esteve à frente de uma produção de grande bilheteria, tampouco assinou roteiros. Já os homens brancos foram responsáveis por 69% dos textos.

Esta ausência não é sentida e questionada apenas no Brasil. Na edição do Oscar de 2016, a ausência de negros e negras indicados aos prêmios de atuação, roteiro e direção, mesmo havendo filmes focados na temática negra e com atores e diretores negros – caso de Selma, da diretora Ava DuVernay – repercutiu em críticas severas à academia norte-americana, que desde 2011 não mantinha negros de fora de suas indicações.

Sendo o audiovisual um setor que, em geral, exige alto investimento e qualificação específica e técnica, a reversão deste cenário – que reflete a desigualdade racial do país – sem políticas afirmativas é inviável.

“Reconhecer a impossibilidade de abdicar do esforço em construir políticas de ações afirmativas no setor audiovisual é um primeiro pressuposto, desmistificar o que vem a ser esse conjunto de políticas é o segundo”, destacou Viviane Ferreira durante a abertura do evento.

“É fundamental garantir aos protagonistas as condições materiais e simbólicas para que as dificuldades ou desníveis possam ser superados e as escolhas possam ser feitas de maneira lúcida e, consequentemente, a médio e longo prazos”, frisou, ainda.

Cenário de oportunidades

Para ela, se por um lado há o avanço do conservadorismo na política institucional, da perspectiva da audiência há o esgotamento da narrativa clássica. “O público não aceita mais essa narrativa viciada proposta pelo homem branco, heterossexual e endinheirado. Ele não consegue mais fazer o seu capital render vendendo a narrativa viciada. E aí há o momento de transição e precisamos pensar como reorganizar o diálogo e essas relações no mercado audiovisual – um diálogo de desconstrução de desigualdades”.

Um exemplo de tentativa do mercado audiovisual de suprir a demanda por um audiovisual negro, mas sem superar a estrutura excludente, é a série O Sexo e as Nega. “O audiovisual é, sobretudo, um retrato da realidade e cada um faz o retrato a partir de sua experiência de vida. A experiência de vida de um homem branco não é a experiência de vida de uma mulher negra. E aí a gente precisa entender que para conseguir avançar e sair desse jogo de manobra e apropriação cultural do que é a nossa criatividade, nossa subjetividade negra, precisamos diversificar todos os espaços do setor audiovisual”, disse.

Para Viviane, o momento pode ser muito fértil para a democratização da produção audiovisual porque além das exigências da audiência por conteúdo de qualidade e que retrate a realidade do País, as produções culturais provenientes de grupos sociais tradicionalmente marginalizados vêm paulatinamente ganhando espaço.

“Dentro da cultura, a marginalidade, embora permaneça periférica em relação ao mainstream, nunca foi um espaço tão produtivo quanto é agora. E isso não é apenas uma abertura dos espaços dominantes à ocupação dos de fora. É também resultado de políticas culturais da diferença, de lutas em torno da diferença, da produção de novas identidades e do aparecimento de novos sujeitos no cenário político cultural”, destaca. “E isto vale não apenas para raça como também para “outras “etnicidades, marginalidades, assim como para o feminismo e as políticas sexuais e movimentos LGBTs”, analisou a cineasta negra durante debate.

Por outro lado, há a preocupação e cautela da Apan em não deixar o espaço de visibilidade e diálogo em torno do cinema negro se transformar em um cubículo cuidadosamente regulado e vigiado para impedir qualquer avanço e fortalecer o racismo e suas práticas nefastas e arraigadas.

Dessa forma, a associação mantém como objetivo elaborar e pressionar pela implementação de estratégias culturais para o setor audiovisual capazes de construir uma teia para consolidar um conjunto de políticas de ações afirmativas para o setor que dê conta de aprimorar iniciativas existentes.

Uma destas iniciativas é o Curta Afirmativo, linha de financiamento audiovisual criada pela Agência Nacional de Cinema (Ancine) em 2014 – a primeira ação afirmativa com recorte racial do audiovisual no país.

“Há importância de existir a Apan, em diálogo com a Ancine, em diálogo com a SPCine, em diálogo com o mercado, em diálogo com a sociedade civil para entendermos como cada uma das partes pode atuar para alterar essa ordem. O audiovisual é uma brincadeira muito cara e não podemos continuar neste jogo de perde-perde apenas para garantir a continuidade do status quo racial”, afirmou a representante da Apan.

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Cena de Selma, de Ava DuVernay (EUA/2015)

“Ou a gente avança e entra no jogo de ganha-ganha, tanto materialmente quanto subjetivamente, ou a gente precisa endurecer o jogo. O conjunto identificado como massa mostra que não está mais disposto a ser manobrado e aí, a partir deste ponto, podemos alterar a ordem e resolver essa questão”, completou.

Em momento de transição tanto no governo municipal de São Paulo quanto na esfera federal, Viviane não titubeia diante da possibilidade de portas se fecharem para este diálogo tão necessário em um futuro breve.

“Como fazer para ter continuidade nas políticas afirmativas? Da perspectiva da sociedade civil, o nosso diálogo é com o Estado e seja qual for o Estado, ele precisa dialogar com a sociedade civil. Se não há espaço para isso, a gente mete o pé na porta e adentra a estrutura do Estado para garantir o diálogo”, diz.

“É importante não perder isso de perspectiva porque a estrutura do Estado não é o condomínio, o play, o apartamento de indivíduos. Posso assegurar que uma população que conseguiu sobreviver às políticas genocidas de um Estado durante 500 anos, não está disposta a deixar de combater as posturas racistas, seja lá qual for o governo”.

A seguir, algumas das propostas iniciais para políticas afirmativas:

– Garantir a presença de profissionais negros em comissões de seleções de projetos audiovisuais tanto na iniciativa pública quanto na iniciativa privada;

– Garantir a presença de profissionais negros nas instâncias decisórias dos órgãos e empresas públicas e privadas do setor audiovisual;

– Fortalecer os espaços específicos dentro dos grandes festivais e no circuito alternativo para exibição do cinema negro, como política de formação de público;

– Garantir a representação de produções e realizadores negros nos espaços principais – nas telas e nos debates – dos grandes festivais como política de reconhecimento da excelência das obras e de seus profissionais;

– Programa de fortalecimento institucional de pequenas e médias empresas geridas por pessoas negras e com forte produção e distribuição de conteúdo voltada para essa parcela da população;

– Reserva de espaço pelas programadoras e distribuidoras para aquisição obrigatória de conteúdo produzido por empresas geridas por pessoas negras com foco em produção de conteúdo voltada para a população negra;

– Estruturação de uma resolução por parte da Ancine que olhe para o princípio da isonomia alinhada com o princípio da equidade e estabeleça regras reguladoras iguais entre os iguais e diferentes para os diferentes;

– Fortalecer uma política de formação que oferte laboratórios para que pareceristas, críticos, dramaturgos, curadores, exibidores, programadores, distribuidores e realizadores para que possam compreender a diversidade de temas e possibilidades de abordagem e reconhecimento da subjetividade negra por meio da linguagem audiovisual;

 

*Marina Pita é jornalista, branca e compõe o Conselho do Coletivo Intervozes. É prima-tia de duas meninas negras e espera que as próximas gerações possam se ver nas telas – e possam estar atrás delas – e que o momento de identificação das próximas gerações de crianças negras com o conteúdo audiovisual brasileiro não seja na repercussão de tragédias como a do terremoto do Haiti, que tanto chamou a atenção das pequenas já citadas.

O mês da consciência negra e a representatividade na TV

Silêncio dos canais comerciais sobre tema ao longo de novembro reforça importância da comunicação pública para promoção da diversidade racial na mídia

Por Ana Claudia Mielke*

Recentemente fui convidada a participar de uma entrevista no programa VerTV, da TV Brasil, para falar do tema do arrendamento, isto é, a venda ilegal, de grades da programação de TV.

Respondi prontamente que falava do tema, mas indiquei um colega que também compõe o Intervozes, por achar que, na posição de advogado, ele estaria mais preparado para realizar este debate.

Ouvi a seguinte resposta do produtor: “mas nós queremos uma mulher, preferencialmente negra, participando do programa no estúdio”.

Fiquei surpresa, porém, bastante contente com a ação.

Contei esta história para introduzir um debate necessário, que é o papel da comunicação pública na promoção da diversidade étnico-racial.

Embora muitas tenham sido as análises sobre o papel dos meios de comunicação comerciais na representação negativa ou positiva da negritude, em especial neste mês de novembro, em que se celebra a consciência negra, poucas têm sido as reflexões sobre como isso se dá nos veículos de comunicação pública.

Em relação aos meios comerciais, verificamos, ano após ano, que os mesmos seguem mantendo uma postura racista ao não incorporar negros e negras de forma mais contundente em sua programação.

Por forma contundente entende-se em quantidade proporcional ao que figura na sociedade brasileira e com a qualidade e o respeito devido a esta população, promovendo a representatividade positiva e não a colocando exclusivamente em papéis historicamente tidos como de subalternidade (escravos, bandidos, domésticas, “mulatas”).

A televisão é quase sempre a mais criticada, não por acaso, já que tem um poder de penetração ainda muito superior aos demais dispositivos de mídia – a TV aberta chega 97,2% das residências brasileiras, segundo a PNAD de 2012.

Fazendo uma comparação rápida, a internet chega a pouco mais que em 50% dos lares segundo a última pesquisa TIC Domicílios feita pelo Comitê Gestor da Internet. Além disso, a televisão é uma mídia fundamentalmente audiovisual.

Seria difícil analisar a cor/raça de jornalistas, especialistas e articulistas que atuam diariamente nos jornais impressos, embora suspeitemos que a ausência de negros e negras aí também deva ser relevante.

Mas retornemos à comunicação pública. Em diálogo com pessoas que ocupam ou ocuparam cadeiras da sociedade civil no extinto Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), soube que a ideia de promover a participação de mulheres, negros e de transexuais nos veículos da empresa vinha sendo debatida nas reuniões do órgão.

Um dos documentos usados como base era o Indicadores de Perspectiva de Gênero para a Mídia, produzido pela Unesco e a ONU, em 2012. E a própria composição do Conselho Curador, que prevê representação de grupos específicos, com recorte de gênero e raça, é um elemento determinante para que estas questões de inclusão e participação sejam pautadas.

Embora não haja uma política institucionalizada de ações afirmativas para a população negra nos veículos da EBC, os exemplos trazidos aqui demonstram que existe, sim, uma preocupação, por parte de alguns funcionários e diretores, em promover maior diversidade na programação.

Esta perspectiva é o que possibilitou, por exemplo, que a emissora tenha conseguido emplacar o primeiro programa LGBT (o único na TV aberta brasileira) apresentado por uma transexual, a Candy Mel.

O Estação Plural conta também com uma apresentadora negra, a cantora Ellen Oléria, que, ao lado do jornalista Fefito Oliveira, compõe o trio de apresentadores do programa.

Em 2013, a EBC criou o Comitê pela Equidade de Gênero e Raça, que vem sendo responsável por promover este debate de forma mais institucional e recebeu, em 2015, o Selo Pró-Equidade de Gênero e Raça, concedido pela Secretaria de Política para as Mulheres.

Uma ação proposta pelo Comitê este ano foi a realização de um censo interno para conhecer como os profissionais que atuam na empresa se autodeclaram sobre raça, gênero, orientação sexual. A ação é importante, visto que não se faz política pública de inclusão sem se traçar o perfil dos excluídos e os espaços onde mais se verifica a exclusão.

Em novembro, por conta das celebrações do Mês da Consciência Negra, a programação das TVs públicas foi mais recheada de programas voltados à promoção e valorização da cultura negra e afro-brasileira.

Na TV Brasil foram produzidos especiais como o Negra Raiz (Praça São Paulo), que foi ao ar ao longo de cinco dias, e Um Abraço Negro (Praça Brasília), que promoveu inúmeras rodas de conversa.

Isto sem falar dos quadros fixos – Programa Especial, Arte do Artista, Estúdio Móvel, Nossa Língua e Caminhos da Reportagem – que trabalharam a temática, levando personagens da política, da cultura e da intelectualidade negra para dialogar sobre diferentes questões.

Na Bahia, a TV Educativa, veículo público estadual, também promoveu extensa programação a partir desta ótica.

E a TV Cultura de São Paulo dedicou pelo menos dois de seus programas – Manos e Minas e Café Filosófico – para debater ou homenagear a consciência negra.

O silêncio permanente nos meios comerciais

Nas TVs comerciais abertas, foi quase um completo silêncio. O programa Como Será?, apresentado pela jornalista Sandra Annemberg, na TV Globo, que vai ao ar às 6 horas da manhã de sábado, incluiu um quadro para celebrar o dia de Zumbi dos Palmares no dia 19 de novembro.

O mesmo fez o programa Encontro com Fátima Bernardes em sua edição do dia 18. De resto, a maioria dos canais se conformou em noticiar os atos, marchas e shows promovidos pelo Brasil em seus programas noticiosos.

Tiveram os que, ainda, optaram pela mediocridade de dar apenas uma nota de “serviço”, dizendo ao telespectador “o que abre e o que fecha” no feriado.

A ideia de que a não presença de negros e negras nos meios de comunicação fere profundamente a construção de nossa própria autoimagem individual e coletiva é tão decisiva que os casos contrários, ou seja, quando um negro é posto em uma posição de se tornar imagem refletida e refratada de nós mesmos de forma positiva, vira um evento de repercussão nacional.

A jornalista Maria Júlia Coutinho se tornou, em 2015, a primeira apresentadora negra de um quadro fixo do Jornal Nacional; Tais Araújo foi, no recentíssimo ano de 2004, a primeira negra protagonista de telenovela da TV Globo; e foram necessários 21 anos para que Malhação tivesse, enfim, a primeira negra como personagem principal – o que aconteceu este ano de 2016.

Aos trancos e barrancos, portanto, tem sido a comunicação pública, muitas vezes sem recursos e atacada por segmentos que acreditam não ser papel do Estado investir neste setor, a que mais realiza a inclusão da população negra em sua programação.

Ora pela contratação de profissionais (jornalistas, apresentadores, articulistas), ora por promover, mesmo que informalmente, ações afirmativas que garantem especialistas negros e negras na bancada de seus programas, falando de economia, política, cultura, enfim, pautas que vão além das ditas “questões raciais”.

O impacto das medidas de Temer para a diversidade racial na mídia

O desmonte da comunicação pública, cujo princípio fundamental é promover comunicação de interesse público e não estar subordinada à aferição do lucro pode significar, portanto, um retrocesso gritante para a inclusão da população negra nos espaços da mídia.

Isto sem falar que nos põe em rota de colisão direta com o preceito constitucional (Artigo 223) que prevê a necessária complementaridade do sistema de comunicação (público, privado e estatal).

Ao editar a Medida Provisória 744/2016, o Presidente Michel Temer (PMDB) já deu um grande passo rumo ao desmonte, extinguindo o Conselho Curador da empresa – justamente o órgão que iniciou o debate interno sobre a necessidade de se promover, dentro da EBC, a equidade de gênero e raça.

Mas os retrocessos não param por aí. No dia 31 de outubro, o governo Temer deu novos sinais preocupantes no que diz respeito à inclusão e valorização da cultura negra na comunicação, ao mudar, exatamente um dia antes do início do Mês da Consciência Negra, a vinheta de abertura do programa de rádio A Voz do Brasil.

A vinheta, uma versão da ópera O Guarani, de Carlos Gomes, perdeu os sons de berimbaus e tambores, traços característicos da cultura negra afro-brasileira. A nova (velha) versão, traz um som mais clássico, erudito, dando ao programa, novamente, ares nacionalistas.

Os antecedentes da gestão Temer também contribuem para esta preocupação.

Não foram nomeados ministros ou secretários negros para o primeiro escalão do governo, houve a subordinação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) ao Ministério da Justiça e foi extinta a Coordenação de Gênero e Raça do Instituto de Pesquisa Econômicas Aplicadas (IPEA) – espaço de produção e disseminação de conhecimento empírico sobre a situação social de mulheres e da população negra e de assessoria governamental para o aperfeiçoamento da política pública aos diferentes órgãos de governo.

Assim, embora o programa A Voz do Brasil não esteja no bojo da comunicação pública e embora sozinha a mudança na vinheta não revele muito das intenções que a geraram, a julgar pelo desmonte das políticas públicas de promoção da igualdade racial que estão sendo também realizadas pelo governo, a mudança da vinheta do programa sinaliza retrocessos significativos.

E não se trata apenas da política de inclusão de negros e negras (o que já seria o bastante), mas da própria compreensão do papel da população negra – 50% dos brasileiros se encontram no leque das “afro-descendências” – na constituição social, cultural e econômica deste país.

Assim, invisibilizar o negro nas ações políticas ou promover medidas de desmonte de processos que vinham sendo inclusivos, como na comunicação pública realizada pela EBC, são dois lados da mesma moeda que corroboram para a permanência do racismo estrutural no Brasil.

* Ana Cláudia Mielke é jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e coordenadora executiva do Intervzozes. Colaborou Cecília Bizerra de Souza, jornalista, mestre em Comunicação pela UnB e membro do Intervozes.

A inconstitucionalidade da MP 744 e o desmantelamento da EBC

Congresso começa a debater medida provisória de Temer que desmonta empresa pública de comunicação e dá marcha à ré em princípios constitucionais

Por Pietro de Jesús Lora Alarcón e Tatiana Stroppa*

Nesta quinta-feira 24 começou formalmente o processo de debates na Comissão Mista encarregada de analisar a Medida Provisória 744/2016, que trata da reestruturação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

Participaram da primeira audiência pública o presidente atual da empresa, Laerte Rímoli, e o ex-presidente, Ricardo Melo, demitido pelo presidente Michel Temer após a edição da MP.

Publicada em 2 de setembro, a medida provisória alterou substancialmente a Lei nº 11.652 de 2008, consolidando um verdadeiro esvaziamento do caráter público da empresa.

Fez isso ao:

a) extinguir o Conselho Curador da EBC, então composto por 22 membros, entre os quais 15 representantes da sociedade civil, eliminando assim o principal instrumento de constituição do caráter público e democrático da Empresa;

b) extinguir a garantia de mandato de quatro anos para o diretor-presidente, que agora passa a ser livremente nomeado e exonerado pelo presidente da República;

c) mudar a composição do Conselho de Administração da EBC, que passa a ser composto por seis indicados do governo e um dos empregados (antes, eram quatro do governo e um dos funcionários da Empresa).

A exposição de motivos da MP, que deveria trazer as razões que justificariam sua edição, traz apenas a seguinte assertiva, assinada pelo ministro Eliseu Padilha:

“A relevância e a urgência que justificam a edição da Medida Provisória proposta a Vossa Excelência derivam da urgente necessidade de se garantir maior eficiência à gestão da EBC”.

A frase não poderia ser mais insuficiente. Claramente não satisfaz as exigências constitucionais. Isso porque, pelo caráter da MP, utilizada em casos emergenciais, a análise dos pressupostos impõe que se verifique com clareza os limites que o Chefe do Executivo tem para editá-la. Relevância e urgência são requisitos fundamentais para a constitucionalidade da medida.

Diga-se com clareza: o fato de a EBC vir a ter ou ter de fato eventuais problemas de gestão ou de eficiência – como superficialmente mencionado na exposição de motivos e abordado por Laerte Rímoli na audiência desta quinta-feira – não justifica a aniquilação de instrumentos legalmente criados e que lhe permitiam sua independência perante o Governo.

Em outras palavras: a possível relevância e urgência para uma adequação da situação econômica da EBC jamais poderia ser instrumentalizada contra a própria Constituição Federal para justificar, na realidade, interferências do Governo na administração de uma emissora pública nacional, sobretudo na definição de sua linha editorial.

Como pode, então, haver aderência constitucional numa medida provisória que contraria os princípios que norteiam a comunicação pública brasileira e que contribuem para a formação de uma opinião pública livre?

Fim da autonomia

Ao contrário da relevância alegada, o que existe na MP 744 é uma restrição da participação dos cidadãos no debate público e uma violação à tentativa de democratização da comunicação no país, pois, ao invés de fortalecer o sistema público, ela o fragiliza, aproximando-o do sistema estatal. É uma verdadeira “marcha à ré” na busca do redesenho imposto pela Constituição.

Isso porque a MP fere o princípio da complementaridade trazido no Art. 223 da CF/88, que determina a existência dos sistemas privado, público e estatal na prestação de serviços públicos de radiodifusão.

O ato do Executivo simplesmente liquida os instrumentos trazidos na Lei 11.652/2008 que buscam assegurar a independência da EBC perante o poder estatal e, neste passo, torna vulnerável o sistema público de comunicação – que não tem condições de sobreviver sem que haja a independência e autonomia perante qualquer interferência política.

Veja que as referidas alterações maculam justamente a independência que é imprescindível para o sistema público de comunicação. A escolha feita pela Lei 11.652/2008 de atribuição ao Diretor-Presidente de um mandato fixo, não coincidente com o mandato de presidente da república, visava assegurar a independência da EBC perante o governo, garantindo, ao cabo de contas, a independência editorial necessária para a pluralidade qualitativa na informação.

No mesmo sentido, a ampliação da participação do governo na composição do Conselho de Administração da EBC fere a autonomia necessária em relação ao Governo Federal para a definição da produção, da programação e da distribuição de conteúdo, antes submetidas ao crivo do Conselho Curador.

A extinção do Conselho Curador viola também o pluralismo. A construção de um ambiente plural passa necessariamente pela democratização da comunicação, visto que o oligopólio irrestrito dos meios de comunicação de massa no Brasil não fornece condições reais para a formação de uma opinião pública livre e autônoma no país.

Por fim, a extinção do Conselho Curador viola também a participação democrática, justamente por ser o Conselho um espaço responsável por abrigar representantes de diversos setores da sociedade, do Congresso, do governo e de funcionários da EBC, com a missão de assegurar a diversidade e a pluralidade na programação da empresa, servindo também como instância para preservar a autonomia desta em relação ao governo e ao mercado.

Ao aproximar a EBC de uma simples TV estatal, a MP 744 traz um enorme prejuízo à própria sociedade brasileira, tratada, em regra, como mera consumidora da informação produzida pela mídia privada. Para serem efetivamente públicas, as emissoras precisam ter instrumentos garantidores de sua independência, e é justamente contra tais instrumentos que a MP 744/16  está direcionada.

Alternativas econômicas

Como frequentemente acontece, o governo federal pode aduzir problemas orçamentários para a gestão da Empresa que deveriam ser resolvidos de forma premente.  Sem embargo, outros elementos, neste caso, poderiam ser levados em conta.

Se a EBC passa efetivamente por problemas orçamentários, por que o governo não libera o valor disponível da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública (CFRP), paga pelas empresas de telecomunicações?

Ou ainda, se a forma de financiamento não é adequada, por que não há, então, a elaboração e a apresentação de um projeto de lei transparente e que permita a participação da sociedade para fortalecer a EBC?

Logicamente, a edição da MP 744 tem provocado reações das diversas instituições e grupos da sociedade civil que se posicionam em defesa dos postulados constitucionais para a democratização da comunicação.

A Associação Brasileira de Emissoras Públicas Educativas e Culturais (Abepec), o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e  organizações como a Artigo 19 e o Intervozes tem feito moções de repúdio.

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, órgão do Ministério Público Federal, também emitiu nota técnica na qual afirma a inconstitucionalidade da MP.

E o Conselho de Comunicação Social, órgão de assessoramento do Congresso Nacional, publicou parecer recomendando modificações na MP 744 que garantam o pronto restabelecimento do Conselho Curador.

Até os relatores para a Liberdade de Expressão da ONU e a OEA divulgaram uma manifestação de preocupação sobre as interferências na Empresa Brasil de Comunicação. O caso será tratado em uma audiência pública da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no início de dezembro, no Panamá.

Por isso é preciso acompanhar os rumos dos debates na Comissão Especial da MP 744. Novas audiências públicas estão agendadas para os dias 29 e 30 de novembro.

E perceber o quanto as mudanças impostas pelo governo à EBC afetarão a própria consolidação da democracia, já fragilizada pela ausência de democratização do acesso aos meios de comunicação.

* Pietro de Jesús Lora Alarcón é mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, professor de Direito da PUC/SP e da ITE de Bauru/SP; Tatiana Stroppa é mestre em Direito Constitucional, professora e pesquisadora da ITE de Bauru/SP.

Comunicação pública do Rio Grande do Sul sofre desmonte

Na avalanche de completo desrespeito às instituições democráticas, a comunicação pública tem sofrido ataques que vão além da esfera federal

Por Mônica Mourão*

No início desta semana, a comunicação pública brasileira sofreu mais um golpe com o anúncio da extinção da Fundação Piratini, que faz a gestão das duas emissoras públicas do Estado do Rio Grande do Sul – a TVE e a FM Cultura. A intenção foi apresentada na segunda-feira 21 pelo governador do Estado, Ivo Sartori (PMDB). Além da Piratini, outras oito fundações ligadas ao governo deixarão de existir. A justificativa seriam os altos custos com essa estrutura: 28 milhões de reais ao ano, segundo o governo.

Caso aprovada pela Assembleia Legislativa estadual, a medida resultará na demissão em massa de centenas de trabalhadores ligados à fundação, conforme já denunciou o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) – mais de 1,2 mil quando somados os servidores de todas as fundações que se pretende extinguir. Ainda de acordo com o FNDC, a TVE tem um público de mais de 6,5 milhões de pessoas e, com os investimentos que estavam previstos, deveria alcançar um total de 8 milhões de habitantes nos próximos anos.

Com décadas de atuação – a TVE foi inaugurada em 1974 e a FM Cultura em 1989 –, o futuro das emissoras ligadas à Fundação Piratini ainda é incerto. Após a repercussão negativa desta decisão, no entanto, o governo do Rio Grande do Sul reformulou o discurso, afirmando que as emissoras não serão extintas e sim terão suas estruturas “readequadas”, processo que será feito pela Secretaria de Comunicação daquele Estado.

O fato de ser uma Secretaria de Estado a se tornar responsável pela gestão da comunicação pública é elemento determinante para se prever que esta comunicação deixará de ser pública e se tornará governamental. Assim, é bem provável que o Rio Grande do Sul perca duas emissoras públicas e ganhe duas emissoras de governo, atentas exclusivamente à veiculação de conteúdos de interesse do Palácio Piratini.

A principal justificativa para o desmonte é o argumento técnico da “calamidade financeira”. É preciso questionar, afinal, por que a comunicação pública é sempre tida como o alvo fácil de “readequações” que, no fim das contas, esvaziam seu sentido público, transformando-as em correia de transmissão de ações de governos?

Este esvaziamento ficou evidente com a Medida Provisória 744/2016, produzida na esfera federal, que extinguiu o Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). O órgão, formado por diferentes atores indicados pela sociedade civil, visava garantir, embora nem sempre conseguisse, um dos pilares da comunicação pública, que é a gestão democrática com participação social.

Antes disso, o governo de Michel Temer (PMDB), ainda quando interino, já havia demonstrando seu total desprezo pela comunicação pública e pelas instituições democráticas, ao exonerar, em maio, o então diretor-presidente da EBC, Ricardo Pereira de Melo, cujo mandado deveria seguir até 2020 e só poderia ser interrompido por decisão do Conselho Curador. A ação, embora embargada naquele momento político, foi concretizada com a efetivação do governo golpista e com a MP 744/2016.

E mais, funcionários concursados perderam cargos de chefia e nomeados foram também exonerados. A desculpa que circulava nos bastidores era de que a EBC estava a serviço do Partido dos Trabalhadores (PT) e do governo Dilma. Uma gafe cometida recentemente pelo atual presidente no fim da entrevista que concedeu ao programa Roda Viva, ao agradecer pela “propaganda” da empresa, revela, afinal, de quem é a intenção de promover o aparelhamento da Empresa Brasil de Comunicação.

O ano de 2016 nos mostrou de forma muito contundente o quanto a mídia ainda tem poder para construir e destruir reputações e governos. A concentração dos meios de comunicação no País, somada às inúmeras violações ao direito à liberdade de expressão da população que são consequência desta concentração, enfatizam a necessidade de se mobilizar recursos e ações políticas para fortalecer a comunicação pública, implementando aquilo que prevê o artigo 223 da Constituição federal, que é a complementaridade do sistema de comunicação (público, estatal e privado).

Ora, as medidas em curso, tanto em âmbito federal quanto nas esferas estaduais apontam justamente na direção contrária, ao solaparem as poucas iniciativas concretas de comunicação pública desenvolvidas no País. Estes atos nos fazem retroceder décadas no debate sobre a importância deste tipo de comunicação, inclusive sob a perspectiva do carregamento do conteúdo independente produzido nas diversas regiões do Brasil.

Além da caça às bruxas feita na EBC, a ofensiva para minar o caráter público da empresa já se faz sentir na programação, que vem perdendo em pluralidade e diversidade. No caso do Rio Grande do Sul, vale perguntar, um órgão de propaganda governamental, será esse o futuro que se desenha para a TVE e a FM Cultura? Esperamos que não.

*Mônica Mourão é jornalista e integra a Coordenação Executiva do Coletivo Intervozes

Como debater a modernização das escolas se elas seguem desconectadas?

Por Marina Pita*

A medida provisória que tenta impor de cima pra baixo uma reforma do ensino médio brasileiro tem sido alvo de muitas críticas por parte de estudantes e de profissionais que se dedicam, há anos, ao tema da educação, gerando também um debate público importante sobre modernização do ensino.

Esta modernização aparece muitas vezes, tendo como base, a perspectiva de conexão das escolas à internet, questão que atualmente se faz essencial para a difusão e apropriação do conhecimento. Na prática, no entanto, a realidade da política pública de conexão das unidades educacionais está longe de possibilitar esta modernização e ainda distante de garantir a diversidade de recursos de ensino/aprendizagem a estudantes e professores.

As escolas brasileiras foram conectadas por meio de um acordo entre o governo Lula e as concessionárias do serviço de telefone fixo, em 2008, por meio do Decreto nº 6424, uma movimentação que criou o chamado Plano Banda Larga nas Escolas (PBLE). Como o Estado não contava e ainda não conta, vale lembrar, com instrumentos adequados para impor obrigações de universalização – garantia de acesso a toda população – da internet, optou pelo famoso “jeitinho”.

O jeitinho que criou o PBLE consiste na troca das obrigações da concessão do serviço telefônico fixo por obrigações de ampliação da rede de dados e conexão nas escolas. As concessionárias acordaram – por Termo Aditivo – a trocar a obrigação de instalar postos de serviço telefônico nos municípios pela instalação de infraestrutura de rede para suporte a conexão à internet em todos os municípios brasileiros e conectar todas as escolas públicas urbanas, além das entidades ligadas à formação de professores vinculadas a todos os entes da federação, com manutenção dos serviços sem ônus até o ano de 2025.

À Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) coube a responsabilidade de fiscalizar o cumprimento das obrigações das prestadoras de serviços de telecomunicações, sendo que a gestão do programa é feita conjuntamente pelo Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação e Anatel, em parceria com as secretarias de Educação estaduais e municipais. Por sua vez, as concessionárias de telefonia fixa que aderiram são Telefônica, CTBC, Sercomtel e Oi/Brtacesso

Pois bem. O caso é extremamente interessante porque ilustra a política brasileira de forma didática: dá-se um nome bonito e divulga-se a iniciativa, faz-se alguma parte do acordado, depois as empresas fingem que fazem e o poder público – no caso, a agência fiscalizadora – finge que acredita. E assim como em outras políticas, seguimos sendo enganados com um programa de conexão em centros educacionais que, na verdade, está longe de atender à demanda de acesso à rede.

Porque estamos dizendo isso? Apesar de mais de 68,7 mil escolas terem sido conectadas, cerca de 5,5 mil escolas urbanas seguem sem conexão. Os dados são do Ministério das Comunicações – atual Ciência, Tecnologias, Inovações e Comunicações – e da própria acessoAnatel, obtidos em 2015.

O programa foi implementado em 2010, há seis anos, e as cerca de 5,5 mil escolas desconectadas são justamente aquelas que, por sua localização geográfica e por determinantes socioeconômicos, têm as maiores barreiras de acesso a produtos culturais e educativos. Ou seja, o programa deixou para trás justamente os mais necessitados, o que tem se configurado como regra na política pública de acesso à internet no País.

Para além deste buraco, que para alguns pode ser classificado como detalhe, as concessionárias de telefonia fixa deveriam elevar a velocidade das conexões. De acordo com Termo Aditivo, a partir de 31 de dezembro de 2010 todas as escolas integrantes do PBLE deveriam estar conectadas com velocidade igual ou superior a dois megabits por segundo (2 Mbps) para download e pelo menos um quarto dessa velocidade para upload.

E mais, a velocidade deveria ser revista semestralmente, de forma a assegurar rapidez equivalente à melhor oferta comercialmente oferecida ao público em geral na área de atendimento em que a escola se localiza. A cada três anos, Anatel e operadoras deveriam realizar atualização nas especificações das conexões “em função da evolução tecnológica e da necessidade das escolas”.

Em 2015, segundo dados da Anatel, apenas 4,8 mil escolas tinham velocidades defasadas em relação às obrigações das prestadoras de serviço. Mas aqui vai a pegadinha: os dados da Anatel são estruturados por autodeclaração das empresas obrigadas a prestar o serviço.

Assim, dá para entender as narrativas dos usuários das redes nas escolas que seguem dizendo “a internet nas escolas não funciona”. Nem sempre, para não dizer nunca, a velocidade declarada é aquela que chega aos centros educacionais.

Em 2015, solicitei a tabela de conexão das escolas do PBLE ao Ministério das Comunicações para a produção de uma matéria sobre o tema. A tabela foi entregue sem a coluna de velocidades. Questionei a uma funcionária do órgão sobre o porquê de terem excluído a coluna, no que fui informada que “a coluna não condizia com a realidade, uma vez que era autodeclaratória”. Ou seja, o próprio Estado sabe que o instrumento criado para garantir a política não tem aderência à realidade. E fica por isso mesmo? Pelo jeito, fica.

O Termo Aditivo do PBLE previu que a revisão das velocidades deveria ser feita a partir de parâmetros das ofertas comerciais, entendendo que as operadoras tenderiam a oferecer melhores velocidades a seus usuários pagantes. Não adiantou. Determinou ainda a revisão das metas gerais (ou do piso de oferta) a cada três anos, nesse caso, pelo poder público, o que não foi realizado.

“Duas revisões já deveriam ter sido feitas, em 2010 e 2013, e a não consumação das mesmas tem forte impacto negativo na implementação da política, pois tende a manter milhares de escolas com conexões precárias e pouco efetivas para o uso pedagógico das tecnologias”, afirma o Instituto Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio) em publicação de análise da política.

Exemplos de fora

Nos Estados Unidos – onde também em teoria as escolas estavam todas conectadas – o Escritório de Tecnologias Educacionais, órgão ligado à Secretaria da Educação (equivalente a um ministério), decidiu verificar, em 2011, a conexão nas escolas do país, para além das planilhas digitais, e descobriu outra realidade.

Ao considerar escolas conectadas apenas aquelas que tivessem conexão de internet sem fio dentro da sala de aula, apenas 30% das unidades educacionais passaram pelo critério e a conexão em muitas delas estava limitada à área administrativa.

A decisão do governo foi liberar 8 bilhões de dólares para conectar as escolas. O recurso veio do programa educacional E-rate, criado em 2007 e alimentado por uma taxa cobrada das empresas de telecomunicações e que era usado para conectividade em bibliotecas, escolas primárias e secundárias.

A iniciativa de conexão das escolas ConnectedED, lançada em 2013, está sendo implementada com a participação da sociedade civil e pretende levar, até 2018, conexão à internet de 100 Mbps por cada mil estudantes (100 Kbps por estudante).

Desafios brasileiros

Por aqui, como vimos, a relação do Estado brasileiro com o mercado privado é de total cumplicidade e nenhum dos dois lados exerce o papel que realmente deveria cumprir para garantir o sucesso na execução da política. Assim, pelo menos três grandes desafios seguem sendo prioritários quando o assunto é a modernização das escolas por meio de conexão à web.

O primeiro é garantir instrumentos para o Estado forçar a universalização do acesso de qualidade e adequado ao uso da internet nas escolas – inclusive as rurais. Com o desmonte da política de telecomunicações no Brasil, por meio do Projeto de Lei 3453/2015, e o fim da prestação em regime público, que se pretende com ele, nem as obrigações previstas na Lei Geral de Telecomunicações – LGT (Lei nº 9.472/1997.) existirão. Não fazendo mais sentido, portanto, as trocas de obrigações previstas no Termo Aditivo de 2010.

O segundo desafio é a prioridade política do Estado e dos governos do momento. Esta prioridade deve estar embasada na garantia do acesso da população à rede e não no exclusivo lucro das empresas operadoras.

Assim, quando uma lei for pensada para alterar a LGT, como está acontecendo agora, o usuário e qualidade de sua conexão serão colocados em primeiro lugar – não é o que acontece na proposta em tramitação. Então como garantir que a sociedade se envolva neste debate para exigir que seja ouvida?

O terceiro desafio segue sendo a fiscalização. Está evidente que a Anatel não cumpre de forma adequada seu papel de fiscalizadora. E é preciso que a sociedade – que cada vez mais é a sociedade da informação – debata o que fazer para que a agência mude e passe a cumprir seu papel.

Sim, há problemas de estrutura e financiamento da agência, mas, para além disso, é preciso acabar com a relação promíscua entre executivos das empresas e funcionários e conselheiros do órgão.

*Marina Pita é jornalista e integra o Conselho Diretor do Coletivo Intervozes