Arquivo da tag: em 18/3/2008

Jornalistas negras não estão nas redações

Apenas seis das cem jornalistas no mercado de trabalho da Baixada Santista são negras. Esse foi o resultado do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) "A Inserção da Jornalista Negra nos Meios de Comunicação da Baixada Santista", realizado pelas jornalistas Carolina Ferreira dos Santos, Elys Paula Santiago da Costa e Vera Lúcia Oscar Alves da Silva, recém-formadas. O TCC, uma grande reportagem em formato de revista, foi apresentado ao final de 2007 no Centro Universitário Monte Serrat (Unimonte), de Santos, SP, e orientado por mim.

O recorte de gênero e raça para constatar se há igualdade de oportunidades dentro da profissão é inédito. Até então, havia apenas levantamentos sobre a questão de gênero ou de raça, sem levar em conta a possibilidade de dupla discriminação.

A pesquisa, foco do trabalho, constata que dos 200 profissionais que trabalham nos 12 veículos da Baixada Santista que responderam à pesquisa, 100 são mulheres e apenas 6% dessas mulheres são negras. Foram enviados e-mails para 17 redações com perguntas referentes ao número de jornalistas que trabalham nesses veículos, dentre eles, quantidade de mulheres, dessas mulheres, quantas são negras e se entre as afro-descendentes, alguma ocupa cargos de chefia. 

Definindo conceitos 

O tema do trabalho foi escolhido um ano antes da apresentação. "Sou militante dos movimentos negro e feminista e as minhas duas colegas de trabalho, simpatizantes", diz Vera Oscar. "Foi entre conversas ligadas a essas questões que decidimos o tema do nosso TCC", conta. Ainda segundo ela, o principal objetivo das estudantes era responder à questão: a ausência de mulheres negras que ocorre em diversas profissões também acontece no jornalismo? 

Carolina Ferreira conta como foram feitas as grandes reportagens que embasaram a pesquisa. "Foram entrevistadas especialistas na questão de gênero e racial, como a ex-ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, e a psicóloga Edna Roland, que foi relatora da ONU na Conferência Mundial Contra o Racismo na África do Sul em 2001." 

Além das especialistas, seis jornalistas negras que se formaram ou trabalham na região contaram suas histórias de vida. Textos de apoio contando a trajetória da mulher negra no Brasil e definindo conceitos como feminismo, raça e etnia também serviram para complementar a grande reportagem. 

Mecanismo de luta 

A revista recebeu o nome de Dandara, que significa "a mais bela", em homenagem a uma heroína brasileira. "Embora os historiadores estejam ainda concluindo as pesquisas sobre a personagem, o que se sabe é que Dandara foi uma mulher negra, esposa de Ganga Zumba, rei do Quilombo dos Palmares antes de Zumbi", explica a terceira componente do grupo, Elys Santiago. "Dizem que ela lutou ao seu lado, escondeu escravos e se suicidou para não voltar à condição de escrava." 

Ao comentar o que representou o trabalho para suas autoras, Carolina Ferreira diz que, além de se tornarem jornalistas com consciência social, as recém-formadas estão disponibilizando "mais um mecanismo para a luta pela democracia racial e de gênero no país".

* Adelto Gonçalves é doutor em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Bocage: o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999)

O cidadão e a liberdade de imprensa

Três organizações não-governamentais – Artigo 19, Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) – apresentaram um relatório à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), na segunda-feira (10/3), no qual "chamam a atenção para disposições legais e práticas judiciárias que têm constituído violações ao direito à liberdade de expressão no país, em especial o uso abusivo de recursos judiciais contra veículos de comunicação, jornalistas e defensores de direitos humanos". Embora a íntegra do relatório não esteja disponível para conhecimento público, esta é a informação que consta do release divulgado pela ONG Artigo 19.

Para além de eventuais ações de má-fé e da polêmica provocada pelas ações de fiéis, aparentemente articuladas pela Igreja Universal do Reino de Deus contra a Folha de S.Paulo e a repórter Elvira Lobato – que estão, uma a uma, como se esperava, sendo derrotadas na Justiça – emerge uma velha questão que diz respeito ao conflito entre o direito à liberdade de expressão – estendida às empresas de comunicação como liberdade de imprensa – e alguns direitos e garantias individuais como a presunção de inocência, o direito de resposta e o direito de imagem.

Quando essas questões merecem a atenção da grande mídia – e também de ONGs – elas surgem como um alerta às "tentações da censura" e ao risco que a liberdade de imprensa estaria correndo no país. Não fica claro, no entanto, quem é exatamente o titular dos direitos envolvidos e quem, afinal, os coloca em risco.

Ditaduras diversas

As palavras, como as idéias, têm história. Existe um ramo da lingüística – a semântica – que trata exatamente disso. No nosso campo de trabalho – a comunicação (ou seria a mídia?) – várias palavras têm mudado de significado desde que, introduzidas na língua portuguesa, foram se incorporando à linguagem nossa de todos os dias. Poderia haver melhor exemplo do que a própria palavra comunicação? A língua é parte da cultura e ambas, naturalmente, são dinâmicas, mudam com o tempo, são históricas.

A idéia liberal de liberdade de imprensa tem uma história como todas as outras idéias e palavras. E essa história começa há mais de quatrocentos anos, na Inglaterra do século 16.

A questão central que tem servido para definir os diferentes significados de liberdade de expressão ao longo do tempo é exatamente quem ameaça a sua existência. A identificação desse quem – instituição e/ou pessoa – faz parte da construção pública do significado da palavra e, considerando a importância da imprensa (da mídia), constitui elemento crucial da própria disputa pelo poder político no mundo contemporâneo.

Inicialmente, a ameaça vinha do Estado absoluto, onde o poder do rei (ou da rainha) era considerado de origem divina. Religião e poder temporal se confundiam. Um dos textos fundadores da defesa da liberdade de expressão tem sua origem num discurso contra a proibição do divórcio e contra a censura prévia de livros, escrito por John Milton em 1644, o famoso Areopagítica.

Com o passar dos séculos e o surgimento dos jornais de massa, o poder absoluto foi sendo substituído pelo Estado de Direito. Mesmo assim, o poder do Estado "autoritário" continuava a ser a grande ameaça à liberdade de expressão. Essa foi a experiência de países governados por ditaduras de diversas origens ideológicas. A censura do Estado impedia a liberdade de expressão como condição mesma de sua manutenção no poder. O Estado Novo e a ditadura militar iniciada em 1964 são exemplos que não podem ser esquecidos no nosso país.

Sujeito dos direitos

Com o tempo, no entanto, a imprensa acabou por se transformar num grande negócio. Os principais jornais passaram a fazer parte de conglomerados empresariais com interesses econômicos e políticos e, eles próprios, se constituíram em atores importantes na disputa pelo poder nas sociedades de Estado democrático. A ameaça à liberdade de expressão passou a vir não somente do poder do Estado, mas também do poder desses grandes conglomerados. Essa nova realidade possibilitou, em alguns casos, o que se chamou de "privatização da censura", de "jornalismo sitiado", e levou, inclusive, à inclusão de critérios de concentração econômica nos índices de avaliação da liberdade de imprensa em países democráticos.

Os últimos acontecimentos entre nós, no entanto, parecem identificar o risco de um novo e estranho desdobramento.

Disputas de mercado, de poder e influência – e a ausência de fronteira entre interesses religiosos e a finalidade da concessão de serviços públicos de radiodifusão – tem levado grupos de mídia, seus porta-vozes e algumas ONGs a considerar que a ameaça à liberdade de expressão estaria agora partindo do próprio cidadão, sujeito principal do direito. Seria ele que, por sentir-se atingido em seus direitos individuais, estaria, através de ações junto ao Poder Judiciário, ameaçando a liberdade de expressão.

Essa nova significação do que seja a liberdade de imprensa desloca totalmente o sentido histórico de seu sujeito original – o cidadão. Além disso, ao deslocar a ameaça à liberdade de expressão para as ações de cidadãos impetradas na Justiça, coloca-se sob suspeição o garantidor do equilíbrio entre o Executivo e o Legislativo no Estado Democrático de Direito, isto é, o Poder Judiciário.

A necessidade de uma nova Lei de Imprensa está na ordem do dia. O momento é oportuno para uma ampla e democrática discussão de todas essas questões e, sobretudo, dos conflitos entre direitos garantidos constitucionalmente.

O que não podemos permitir é que o sujeito dos direitos – o cidadão – seja transformado em ameaça à realização desses mesmos direitos. Seria um desserviço à democracia e, aí sim, uma grande ameaça à liberdade de expressão.