Uma boa dose de incerteza cerca o uso da internet para fins eleitorais no Brasil. Logo após a controvertida decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de permitir a propaganda eleitoral na rede somente por uma página dedicada exclusivamente para a campanha eleitoral, as “.can”, decisões carentes de coerência e uniformidade vem colocando na berlinda candidatos e usuários país afora. Há, no entanto, entre especialistas em legislação eleitoral, a perspectiva de que está se caminhando para uma regulamentação definitiva a respeito.
A Resolução 22.718, que dispõe sobre a propaganda eleitoral, foi publicada em fevereiro deste ano. Logo em seguida, provocado por consulta feito por um parlamentar, o TSE anunciou que não detalharia a resolução, deixando a interpretação sobre o que configura uso abusivo da internet a critério de cada juiz.
Ou seja, desde então, a utilização de vídeos hospedados no Youtube, perfis e comunidades de candidatos no site de relacionamentos Orkut, spams com a proposta de candidatura, participar do Second Life entre outras utilizações inovadoras para o ambiente político brasileiro, tem ora sido autorizadas pelos Tribunais Regionais, ora não. Se, em maio, o TRE do Rio de Janeiro autorizou a utilização de blogs e redes sociais pelos candidatos em suas campanhas, seu correspondente em São Paulo afirmou que seguiria à risca a decisão do TSE: propaganda, só na página “.can”.
De imediato, a falta de critérios claros foi amplamente criticada pela insegurança jurídica e pela possibilidade de criar desigualdades entre os candidatos (veja matéria deste Observatório sobre o assunto ). As iniciativas legais para rever a posição do TSE também não tardaram.
Em julho, o portal IG entrou com mandato de segurança contestando a Lei 9.504/97 e a Resolução 22.718/08 que, no entender da empresa, “criam uma série de embaraços, impedimentos e restrições à livre circulação de idéias, informações e opiniões em período eleitoral no ambiente da internet”. O TSE deveria ter julgado a ação na última quinta-feira (28/8), porém, a votação foi adiada e pode ocorrer já na próxima sessão nesta terça-feira (2/9). Também a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados solicitou ao presidente do tribunal, Carlos Ayres Britto, que o órgão reveja as normas.
Confusão anterior
A falta de consenso entre os ministros do TSE tem impedido a publicação de uma legislação específica para a rede. Ayres Britto, já defendeu que o uso da web deve ser liberado aos candidatos, em respeito à liberdade de expressão, e que os casos devem ser analisados um a um, mas não conta com a adesão do relator da consulta, Ari Pargendler, que alega que a internet é igual a qualquer outro meio de comunicação.
De qualquer forma, a confusão em relação ao papel da internet nas eleições já estava prevista na Lei 9.504/97, a Lei Eleitoral. Ela iguala a internet aos veículos de rádio e televisão, o que, claramente, é bastante questionável. Diferente da rede mundial de computadores, o rádio e a TV são concessões públicas e, por conta disso, têm obrigações específicas em relação ao processo eleitoral. Além disso, a preocupação presente na legislação de se evitar o abuso de poder econômico não tem sido bem calibrada neste caso.
Potencial da rede
Para o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, ao limitar o uso da internet na disputa eleitoral, o TSE restringe a interatividade entre eleitores e candidatos. “Com a Resolução 22.718, o TSE reduziu o grau de interação entre candidatos e cidadãos e reduziu o poder de uma esfera pública interconectada”, afirma Amadeu. “As redes sociais – entre elas, Orkut, Facebook, Twitter, Youtube -, ao contrário dos veículos da mídia de massa, além de serem gratuitas, são multidirecionais.”
Em outras palavras, um candidato que cria seu perfil no Orkut ou insere um vídeo com suas propostas no Youtube, é instado a dialogar. “Isso fortalece o uso público da razão e a própria concepção de democracia deliberativa”, comenta Amadeu.
A discussão ganha ainda mais relevância quando se considera o cenário internacional e o candidato à presidência dos Estados Unidos, Barack Obama, entra em cena. Se, há um ano, o então pré-candidato democrata à presidência dos EUA não passava de um azarão que pouco incomodaria a virtual candidata Hillary Clinton, sua ascensão na última semana à candidatura oficial do partido é resultado, segundo vários especialistas, da fabulosa mobilização via internet alcançada pelo democrata, transformando-o no exemplo mais bem-sucedido de utilização da rede até aqui.
Já no Brasil, ainda não se sabe se a internet pode, de fato, superar as ferramentas tradicionais de propaganda que, invariavelmente, beneficiam os candidatos do establishment, produzindo surpresas num futuro próximo. Evidentemente, isso também dependeria da criatividade e ousadia dos próprios candidatos, mas mesmo as mais tímidas iniciativas tiveram pouca receptividade da Justiça Eleitoral.
Regras para quê?
Para o ex-ministro do TSE Eduardo Alckmin, a norma editada pelo TSE não deveria criar tanta celeuma. Para ele, as regras são dirigidas a candidatos e partidos e visam conter o poder econômico. “Isto não significa que usuários não possam se expressar em sites de relacionamento”, diz o jurista.
Alckmin lembra também que se trata de temas novos e realidades sem precedentes, o que ainda dificulta uma regulamentação. “Ainda existem muitas falhas na legislação, mas acho que o TSE tem procurado melhorá-las”, afirma Sonia Barbosa, da ONG Voto Consciente.
Sérgio Amadeu, no entanto, não confia plenamente na possibilidade de uma regulamentação democrática para a rede. Para ele, existe uma pequena parcela da sociedade que não aceita a comunicação livre e que teme o fato de que a esfera pública foi imensamente alargada pelas redes informacionais. “Por isso, insisto que qualquer regulamentação deve garantir o livre uso das redes.”
Interpretações diversas
Os casos mais emblemáticos citaram justamente o Youtube e o Orkut, dois dos sites mais visitados por brasileiros. Em São Paulo, o candidato a prefeito Geraldo Alckmin (PSDB) foi impedido de utilizar em seu site vídeos hospedados no Youtube, enquanto que no Rio Grande do Sul, Manoela D’Ávila (PCdoB) conseguiu o feito. No Rio de Janeiro, Fernando Gabeira (PV) tentou criar pela rede mobilização semelhante à de Obama, mas foi rapidamente cerceado pela Justiça por “propaganda indevida”, mesmo quando se tratavam de banners inseridos em sites ou blogs de apoiadores de sua candidatura.
Dezenas de outros casos no país têm sido tratados de maneiras completamente diversas. Em Curitiba, a Justiça Eleitoral liberou a criação de comunidades virtuais no Orkut apoiando ou rejeitando candidatos que disputam as eleições municipais. O Ministério Público local requeria a retirada das páginas por suposta propaganda indevida, mas como a Resolução 22.718 não aborda as comunidades virtuais, elas acabaram sendo mantidas.
Em Cuiabá (MT) e em Blumenau (SC), candidatos a vereador aguardam decisão da Justiça Eleitoral por propaganda eleitoral no Orkut. O caso mais impressionante, contudo, ocorreu em Itajaí (SC), onde pelo menos dois internautas alegam que seus perfis no Orkut foram apagados por fazerem referências a candidatos. Os usuários que tiveram suas contas suspensas contam que suas páginas exibiam mensagem dizendo que o acesso ao serviço havia sido suspenso “devido a violações observadas nos termos de serviço”. Os dois perfis mostravam apoio a um candidato na foto de apresentação ou referência ao partido. O Google admitiu que tem recebido solicitações de TREs para exclusão de conteúdos.
Para o ex-ministro Alckmin, a Justiça está aprendendo a interpretar melhor essa nova realidade e que há uma tendência a uniformidade da legislação. “A internet atinge grande parte da população e é um meio poderoso para difundir candidaturas. Não acredito que deva haver cerceamento aos candidatos, que já tem muitas restrições, além do período curto de campanha.”
De qualquer forma, assegurar uma devida regulamentação, que também impeça o abuso do poder econômico – que já está completamente impregnado nas mídias tradicionais – é mais do que necessário. Mas uma preocupação justa não pode redundar no cerceamento da livre circulação de idéias. Essa é a preocupação de Amadeu. “A regulamentação do uso da internet deve garantir o debate e não o controle, a interatividade ao invés de incentivar a simples propaganda. A lógica das redes é a da comunicação distribuída, impedi-la é um desserviço a liberdade de expressão e de relacionamento.”