Aprovada em 2011 depois de quatro anos de tramitação, a Lei nº12.485, que define um novo marco regulatório para a TV por assinatura, pode ter parte de seus avanços democráticos esvaziados no processo de regulamentação. As propostas de normas de aplicação apresentadas pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) dão espaço para que dois dos pontos mais importantes da lei tenham sua aplicação enfraquecida. Por um lado, abre-se caminho para que canais que se declarem 'impossibilitados' sejam dispensados da obrigação de cumprimento de cotas de conteúdo brasileiro e independente, sem que haja critérios claros para isso. Por outro, a proposta relaxa conceitos relativos ao controle das etapas do serviço, abrindo brechas para que empresas como a Globo continuem controlando tanto a programação quanto os pacotes de canais.
Quase 24 anos após a Constituição Federal estabelecer como princípios a promoção da cultura nacional e regional, o estímulo à produção independente e a regionalização da programação nas emissoras de rádio e televisão, é a TV por assinatura que poderá inaugurar, ainda que de forma tímida, os preceitos previstos na Carta Magna. O novo serviço de Acesso Condicionado (SeAC) reserva recursos para a produção independente e regional e impõe cotas de conteúdo nacional e independente em canais e pacotes que serão comercializados aos assinantes. Além disso, ela busca separar as funções de infraestrutura e provimento de conteúdo, a fim de evitar a verticalização e gerar maior diversidade e competição no setor.
A proposta de regulamento da Ancine normatiza as funções de programadoras (empresas que organizam o conteúdo audiovisual em canais) e das empacotadoras (empresas que organizam os canais em pacotes) de TV por assinatura, além de fiscalizar o cumprimento das cotas de conteúdo. A diretoria da Agência colocou em consulta pública duas minutas: uma de regulamento geral da Lei e outra que altera a Instrução Normativa 91, que versa sobre o registro de agente econômico . A Agência realizará duas audiências públicas para discutir essa regulamentação , uma no Rio de Janeiro nesta quinta, 9/2, e outra em São Paulo no próximo dia 13. As contribuições para a consulta podem ser feitas até 3 de março. Enquanto isso, entidades da área já apresentam preocupações com os efeitos do novo regulamento.
Mais conteúdo nacional e independente?
A aprovação das normas propostas pela Agência possibilita a dispensa de cumprimento de cotas, que a lei prevê como exceção, pode se tornar uma possibilidade corrente para as programadoras. A cota mais afetada por esse dispositivo seria a que reserva 3h30 por semana, em horário nobre, para conteúdos brasileiros, válida para todos os canais de espaço qualificado. Canais de espaço qualificado, segundo o regulamento, são aqueles que apresentam em seu horário nobre mais de 50% de obras audiovisuais dos tipos ficção, documentário, animação, reality show, videomusical e programas de variedades realizado fora de auditório. Na prática, são os tipos de produção que podem ganhar 'vida própria' fora dos canais de origem e serem realizados por produtoras independentes. Qualquer canal com essas característica deve respeitar a cota de 3h30 de conteúdos nacionais por semana, sendo metade deles produzido por produtoras independentes. Canais como o Multishow, GNT, Sony, Warner, Fox, Telecine e HBO seriam enquadrados neste perfil.
A outra cota imposta pela Lei é a obrigatoriedade das prestadoras do novo serviço incluírem em seus pacotes canais brasileiros de conteúdo qualificado. Pelo menos 1/3 dos canais de conteúdo qualificado deve ser brasileiro, até o limite de 12 canais. Destes canais nacionais, outros 1/3 não podem ter vículos com distribuidoras e empacotadoras, sendo programados por empresas brasileiras independentes. Também está previsto que pelo menos dois desses canais tenham 12 horas de programação brasileira independente, sendo que um deles não pode ter vínculo com emissoras de televisão.
O relaxamento da obrigações de cotas já é previsto genericamente em lei, mas pode se tornar um problema efetivo se a regulamentação deixar muitas possibilidades em aberto. No texto proposto pela Ancine estão indicados critérios genéricos para análise da dispensa, como porte econômico, tempo de atuação, perfil da programação e número de assinantes. Além disso, a Agência deixa a porta aberta para o acréscimo de outros critérios ao incluir a expressão 'entre outros'.
Para João Brant, do Intervozes, a proposta de Instrução Normativa (IN) que regulamenta a 12.485/11 apresentada pela Ancine “é complexa, mas deixa brechas que ameaçam o espírito da lei”. Brant aponta o problema com o artigo 33, que deixa totalmente em aberto a possibilidade do não cumprimento das obrigações. “Tanto o pedido de dispensa quanto a resposta da Agência devem ser explicados, mas os critérios são muito vagos. Assim, abre-se um perigoso precedente para que o cumprimento das cotas seja dispensado sem que haja um motivo justificável para tal”. Segundo ele, essa permissividade pode ser especialmente prejudicial aos produtores independentes e aos canais brasileiros que buscam um lugar ao sol diante do poder dos grandes estúdios estadunidenses e da Globosat.
Tereza Trautman, diretora-presidente da empresa Conceito A, gestora do CINeBRaSiL TV e, programadora independente sem vínculo com emissoras de TV, concorda com a avaliação de Brant. “Sinceramente, é incompreensível que a IN, depois de 32 artigos estabelecendo pontualmente como deve ser feito o cumprimento da Lei e como será a sua fiscalização, tenha um artigo desses permitindo a dispensa integral ou parcial do cumprimento das cotas. Sem dúvida, pelo menos da forma que está redigido, este artigo está fora de propósito”, aponta.
Esvaziamento do poder regulatório
Também está em consulta uma proposta de alterações na IN 91, que normatiza o registro dos agentes econômicos pela Ancine. Algumas modificações apontam para o esvaziamento das atribuições regulatórias da Agência sobre este mercado. Um deles está na supressão do ponto que permite ao órgão punir a empresa que não informar corretamente suas relações de coligação ou controle com outras empresas.
É proposta a supressão do item que dá à Agência o poder de punir com suspensão temporária do registro as empresas que não enviarem documentos solicitados e que possam comprovar, por exemplo, acordos anti-concorrenciais entre duas ou mais empresas. Brant alerta que essas propostas podem atender a interesses específicos. “É muito estranho que justamente em um momento em que assume mais responsabilidades a Ancine esteja propondo a diminuição de seu poder regulatório. Se envio incorreto ou o não envio deixam de ser punidos, por que as empresas iriam se esforçar para cumprir o que a Ancine determina?”, questiona o integrante do Intervozes.
Risco de atuação vertical
Considerada uma das conquistas da Lei12.485/11, a limitação da verticalização das empresas que atuam no mercado de TV por assinatura também pode estar ameaçada. A Lei proíbe que emissoras de televisão aberta, programadoras e produtoras detenham mais de 50% do capital das empresas que distribuem conteúdo e que estas não tenham mais de 30% nas empresas que lidam com conteúdo. Essa separação evita, por exemplo, que uma empresa que atua nos dois campos impeça a entrada de concorrentes ou atue para favorecer as suas coligadas.
A regulamentação da Ancine, contudo, deixa margens para que essa verticalização continue ocorrendo. A proposta de alteração da IN 91 relaxa a definição de controle, sem que se leve em consideração o percentual de participação no capital votante das empresas. Além disso, diminui os critérios para verificação de controle, deixando de considerar como indícios, por exemplo, o veto estatutário ou contratual em qualquer matéria ou deliberação.
Esse relaxamento pode interessar diretamente à Globo. Para se adequar a Lei, a empresa já entrou com pedido de anuência prévia para a troca de controle na Net Serviços, que a deixará com 33,5% das ações ordinárias (com direito a voto) da operadora. Com o relaxamento da definição de controle, a emissora carioca , mesmo diminuindo sua participação na NET Serviços para se adequar a Lei, continua controladora e pode ficar livre para atuar no veto a contratos com concorrentes no elo de empacotamento, por exemplo.
Assim, a Globo não apenas consolidaria sua atuação hegemônica em todos os elos da cadeia da TV por assinatura, como também se beneficiaria de duas vantagens reservadas às programadoras independentes: ter direito a programar os canais brasileiros independentes previstos nas cotas e ter acesso reservado a 10% da arrecadação da verba de apoio a produções independentes. Brant aponta que esta opção transformaria as cotas de canais brasileiros em a cota de canais da Globo. “Se não houver uma regulação firme, que faça jus ao espírito da Lei, mais uma vez o Estado brasileiro dará a Globo o que vem dando desde a ditadura militar: privilégios, poder político e econômico e defesa de seus interesses privados em detrimento do interesse público, da diversidade de ideias, da concorrência e da democracia”, conclui.
Procurada, a Ancine não respondeu a nenhuma dessas questões até o fechamento da edição.