Arquivo da tag: Mídia e Direitos Humanos

Comunicação como direito humano é tema de livro lançado na UnB

Após 30 anos da publicação do seu primeiro volume, a série “O Direito Achado na Rua” chega agora à oitava edição com o tema Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação

Lançado no último dia 29, o livro “O Direito Achado na Rua, v.8: Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação” traz o atualíssimo debate sobre o direito à comunicação e à informação enquanto direito humano, 30 anos após a edição do primeiro volume da série.

O debate a respeito desta temática vem sendo travado há muitos anos pelos movimentos sociais e pelas entidades que atuam em defesa da democratização da comunicação como essencial para a existência real de uma democracia. A concepção de direito à comunicação para além da liberdade de informação e de imprensa já aparecia de forma mais sistêmica no Relatório MacBride, de 1983, intensificando a necessidade de reconhecimento do direito humano à comunicação como princípio jurídico.

Nesse sentido, o livro idealizado pelo grupo de pesquisa O Direito Achado na Rua e pelo Laboratório de Políticas de Comunicação (LaPCom) da Universidade de Brasília (UnB) embarca no desafio de compreender o direito à comunicação e à informação como um direito humano “achado na rua”, ou seja, como sendo fruto da luta dos movimentos sociais e dos sujeitos coletivos de direito. “Essa obra deve servir para contribuir com que mais pessoas tenham entendimento sobre a democratização da comunicação”, frisa Fernando Paulino, professor de Comunicação na UnB.

Segundo a professora coordenadora do LaPCom, Elen Cristina Geraldes, o trabalho serviu para integrar os temas comunicação e direitos, que muitas vezes não dialogam entre si mesmo tendo muitas convergências. Marcos Urupá, jornalista e doutorando de Comunicação, concorda com essa tese. “É muito difícil encontrar publicações que tenham como objetos comunicação e direito”, afirma o jornalista, também formado em Direito.

O professor José Geraldo de Sousa Junior, ex-reitor da UnB, destaca a publicação como um marco. “Essa obra registra os 30 anos da primeira publicação de “O Direito Achado na Rua”, em um momento em que lutamos para construir uma democracia pós ditadura, e agora nos vemos envolvidos por interesses de uma mídia controversa em que novamente temos que lutar pelo básico em uma democracia, como no caso dos direitos à comunicação e informação, de forma plural”, pondera ele.

A obra envolveu cerca de 60 pessoas, entre organizadores, autores, ilustradores e colaboradores, entre os quais Boaventura Santos e Nita Freire. A publicação tem organização dos professores José Geraldo de Sousa Junior, Murilo César Ramos, Elen Cristina Geraldes, Fernando Oliveira Paulino, Janara Sousa, Helga Martins de Paula, Talita Rampin e Vanessa Negrini.

Conheça o livro “O Direito Achado na Rua – v.8: Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação”

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

 

31 de Março, dia de Luta: Levante Popular da Juventude convoca para ocupação da Globo

O grupo ocupou a calçada em frente a uma das sedes das Organizações Globo no RJ e fez escracho em frente às sedes da empresa em Brasília e São Paulo

Dia 31 de Março é dia de luta! No Rio de Janeiro, o Levante Popular da Juventude começou o dia montando acampamento na sede da Rede Globo, localizada na Rua Jardim Botânico, e também realizou um escracho em frente às sedes da empresa em Brasília e São Paulo.

A ação faz parte das mobilizações desencadeadas por movimentos sociais e populares e por centrais sindicais previstas para esta sexta-feira, dia 31, contra as reformas que exterminam com os direitos dos trabalhadores e que estão sendo conduzidas pelo governo de Michel Temer. Os atos em frente às sedes da Globo também lembram o passado de apoio da emissora ao golpe de 1964 e à ditadura militar que se seguiu a ele.

O Levante ainda destaca que a Rede Globo também foi uma das avalistas do golpe parlamentar de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff, que comprometeu a economia nacional e manchou a imagem do Brasil no mundo. A empresa é responsável por articular junto aos setores da extrema direita uma suposta crise econômico-política vivida então pelo país. O que se viu desde o golpe parlamentar é que a crise se instaurou de fato no Brasil.

No RJ, os manifestantes montaram dezenas de barracas e ergueram faixas com os dizeres “Golpe, a gente vê por aqui” e “Se a Juventude se unir, a Globo vai cair”, além de gritarem palavras de ordem contra a imprensa golpista.

As organizações Globo apoiaram o golpe militar de 1964 e só pediram desculpas 50 anos depois, para logo em seguida apoiar um novo golpe, o de 2016, que levou Michel Temer ao poder. Um projeto reprovado por 90% dos brasileiros, segundo a última pesquisa divulgada pelo IBOPE.

Em nota divulgada, o Levante destaca o caso de sonegação de impostos durante transação pelos direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002. “O DARF (Documento de Arrecadação de Receitas Federais”, a ser recolhido pela emissora, era de R$ 358 milhões. Em 2013, base de cálculo junto aos juros era de R$ 732,5 milhões. Até hoje não há notícias sobre o pagamento e os novos valores desta dívida”, afirma um trecho da nota.

O escracho do Levante pretende denunciar o objetivo central da Globo neste momento, que vai no sentido de consolidar o golpe e fazer o povo aceitar a retirada de direitos e o ajuste fiscal. Temer e a sua base aliada, na grande novela que se constituiu o noticiário da Globo sobre o golpe, foram sempre apontados como os protagonistas da reconstrução econômica e social do país. Eles estão protegidos pela organização de comunicação para fazer reformas que só beneficiam uma elite no Brasil. Enquanto isso, o trabalhador é mantido mal informado. E a cada dia perde mais direitos.

O Levante apelidou o ato de “Golpe, a gente vê por aqui”, e está convocando toda a sociedade a ocupar a Globo neste sábado, dia 1°. “O Levante convoca agora a população do Rio de Janeiro a se somar à ocupação na Rua Jardim Botânico e toda a sociedade a participar dos atos do 1º de abril, em todas as capitais, nas sedes da Globo ou suas afiliadas, para ocupar a Globo, constranger a emissora e ver até onde consegue [ela] esconder a denúncia”.

Confira a nota divulgada pelo Levante Popular da Juventude:

Levante faz escracho em sede da Globo para denunciar apoio da emissora nos golpes de 1964 e 2016

Na tarde desta sexta-feira (31), em Brasília, o Levante Popular da Juventude realiza um escracho em frente à sede da Rede Globo, localizada na Quadra 701 do Conjunto A, Asa Norte. Na véspera do aniversário de 53 anos do golpe militar de 1964, jovens do Levante denunciam a participação da Rede Globo no golpe contra a Presidente Dilma Rousseff, em 2016.

Junto ao judiciário, a Rede Globo é uma das forças que até ao momento tem conseguido sair ilesa. Com o aprofundamento da crise, a Globo cobra de Michel Temer a Reforma Trabalhista, a Reforma da Previdência, a Reforma Tributária, entre outras, e tenta desvincular-se de Temer, fazendo críticas ao sucessor ilegítimo de Dilma.

O escracho realizado pelo Levante pretende denunciar a verdadeira ação da Globo, que vai no sentido de consolidar o golpe e fazer o povo aceitar a retirada de direitos e o ajuste fiscal. Temer e a sua base aliada, na grande novela do golpe na Globo, foram sempre apontados como os protagonistas da reconstrução econômica e social do país. Enquanto a Globo defende golpistas, o trabalhador perde direitos.

A Rede Globo sonega 

Segundo a Receita Federal, a Rede Globo usou onze empresas em paraísos fiscais para sonegar impostos pela compra dos direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002. O DARF, a ser recolhido pela emissora, era de R$358 milhões, Em 2013, base de cálculo junto aos juros era de 732,5 milhões. Até hoje não há notícias sobre o pagamento e os novos valores desta dívida.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

INFORMAÇÕES MAL APURADAS CONTRIBUEM PARA SENSAÇÃO DE CAOS NO ES

Relações entre a mídia e governos locais ainda são entrave ao direito à informação; violência no Espírito Santo é caso singular desta situação

Por Cinthya Paiva e Augusto Cesar Brandão*

O Espírito Santo vive uma de suas maiores crises de segurança pública. Embora boa parte dos policiais militares que estava aquartelada tenha retornado aos postos de trabalho no início desta semana, as informações sobre o fim da paralisação e sobre os acordos feitos entre os policiais militares e o governo estadual ainda são desencontradas e confusas.

Desencontro e confusão na apuração e publicização das informações, aliás, marcaram todo o período, mostrando mais uma vez a incapacidade da imprensa capixaba em produzir informações contundentes sobre o que estava acontecendo de fato no Estado.

Muito do que chegou ao conhecimento do público nacional foram boatos, a maioria divulgados via redes sociais como Facebook e Whatsapp e sem muita garantia de procedência. Não se sabe, por exemplo, se alguns vídeos postados foram produzidos pelos próprios policiais para difundir o clima de insegurança e pressionar o governo a abrir negociação.

Esta falta de informação não ocorre por acaso. Assim como na maioria dos estados do País, no Espírito Santo grupos de mídia possuem relação muito estreita com o poder institucionalizado, ora em função das relações interpessoais construídas, ora porque os governos estaduais são grandes financiadores da imprensa local, por meio de anúncios publicitários.

Tudo isto acaba dificultando processos de apuração da notícia quando esta envolve denúncias de corrupção ou pressão de grupos sobre governos. Basta lembrar que, no início dos anos 2000, quando acontecia a CPI do Narcotráfico – que acabou na prisão do presidente da Assembleia Legislativa do Estado, José Carlos Gratz – os primeiros veículos de imprensa a repercutir o assunto foram os nacionais como Veja, Época e IstoÉ, sendo seguidas depois pela imprensa local.

No episódio recente do aquartelamento dos PMs, as informações também foram pouco apuradas.  Para se ter uma ideia, na sexta-feira 10, o Jornal Nacional noticiou que o governo estadual havia realizado um acordo com as Associações de Policiais Militares para encerrar a suposta “greve”. Informação que não foi confirmada minutos depois pelo Secretário Estadual de Direitos Humanos, Julio Pompeu, em entrevista coletiva transmitida ao vivo por algumas cadeias de TV.

Vale lembrar que um dos principais grupos de mídia capixaba, a Rede Gazeta, é afiliada da TV Globo, logo, deve ter sido a origem da informação equivocada emitida pelo JN.

Não bastasse isto, logo após a entrevista coletiva do representante do governo, foi iniciada outra entrevista coletiva, desta vez com as Associações dos Policiais Militares, interlocutores do acordo que encerrou a suposta “greve”.

Apesar do interesse público desta entrevista, que poderia esclarecer parte do que estava acontecendo no estado, ela não teve transmissão ao vivo pela grande imprensa local, nem tampouco apareceu como informe em plantões de notícia, sendo acessível apenas por um link no Facebook, colocado pelos próprios PMs e reproduzido nas páginas da imprensa na internet.

É importante destacar que as Associações dos Policiais Militares, que supostamente entraram em acordo com o governo, não eram, até então, protagonistas do movimento de reivindicações de ajuste salarial e melhores condições de trabalho – que estava sendo protagonizado por mulheres, amigos e familiares dos PMs, que cercaram os portões dos quartéis.

E não houve, por parte da imprensa local, qualquer questionamento sobre esta nova interlocução, nem sobre o fato de ela ter gerado o “acordo” firmado com a categoria – o que coloca o próprio acordo em cheque. Também não foi questionado o uso de helicópteros da Polícia Militar para retirar dos quartéis os policiais que aparentemente queriam voltar ao trabalho, mas estavam sendo impedidos de sair.

Aumento da criminalidade

Outro ponto-chave em toda a crise capixaba foi a cobertura sobre o aumento da criminalidade. É claro que a maior parte dos vídeos divulgados com cenas de assaltos à mão armada, saques e tiroteios não teve os grandes meios como principais divulgadores.

A maior parte circulou pelas redes sociais, especialmente, o Whatsapp. Porém, é questionável o papel da imprensa tradicional de não apurar a origem destes vídeos e apenas reproduzi-los em suas reportagens, o que, certamente, contribuiu para o aumento da sensação de insegurança e de falta de ordem.

Todos os dias, a imprensa local divulgava os dados “extraoficiais” dos assassinatos de pessoas – que passou de 140 em 10 dias de paralisação –, tendo como fonte o Sindicato da Polícia Civil.

Organizações de direitos humanos questionaram estes números e denunciaram possível participação de PMs nestas mortes chamadas, até então, de “acertos de contas” entre bandidos. Esta possibilidade encontra eco no histórico comprometimento da PM capixaba com grupos paramilitares e esquadrões de extermínio, mas quase nada se apurou sobre isto.

Depois de muita cobrança da sociedade, os veículos de imprensa locais começaram a destacar repórteres para apurar quem eram os mortos. Ainda assim, é preciso pesquisar com maior profundidade as circunstancias de cada morte e acompanhar os inquéritos que serão abertos pela Polícia Civil para investigar os casos.

Criminalização do movimento

A Constituição veda aos policiais militares o direito de fazer greve, uma vez que a função da manutenção da ordem e segurança pública por meio de armas de poder letal é indelegável, motivo pelo qual a categoria optou por fazer um movimento de aquartelamento amparado nos familiares, que impediam a entrada e a saída de viaturas e dos próprios PMs dos quartéis. As reivindicações do movimento eram melhores salários, bonificações e melhores condições de trabalho.

O enfoque maior da imprensa, no entanto, foi na ilegitimidade do papel das mulheres dos policiais aquartelados e a responsabilização da própria PM pela insegurança nas ruas. Em nenhum momento o governador do estado, Paulo Hartung, foi questionado por não ter aberto diálogo imediato com a categoria de policiais – como se não houvesse responsabilidade da gestão estadual no atual estado de caos pelo qual passou o Espírito Santo.

Além disso, o governo também já declarou que vai abrir processo administrativo disciplinar contra mais de 700 PMs para apurar se houve crime de motim e já foram indiciados 155 policiais, que após passarem por um processo administrativo disciplinar, poderão ser demitidos.

Valeria questionar ao governador e secretários estaduais – papel da imprensa fazer tais questionamentos – se, na conjuntura de suposto aumento da criminalidade e de falta de recursos para o reajuste de salário (justificativa do Governo para não fazer negociação), é acertada a decisão de punir os insurgentes. Mas, até agora, sobre isto, segue prevalecendo o silêncio.

O suposto acordo firmado previa que os policiais militares deveriam comparecer ao trabalho às 07 horas da manhã seguinte (sábado, dia 11). Ainda assim, na segunda-feira, dia 13, ônibus de algumas linhas não passaram por certos bairros e outras linhas ficaram desativadas.

As atividades de ônibus e shoppings foram suspensas às 21h. Algumas escolas não tiveram atividades regulares como anunciado. Ainda, três ônibus foram queimados e em Vila Velha, cidade da Grande Vitória, e o Convento da Penha, ponto turístico da cidade, foi assaltado.

Com o fim da paralisação noticiada na última sexta-feira, aos poucos policiais militares estão retornando às ruas. Informe da assessoria da Secretaria de Estado da Segurança (Sesp) disse na terça, dia 14, que 2.351 policiais militares responderam ao chamado operacional feito pelo comando geral da PMES em todo o Estado. E que o policiamento ostensivo durante aquele dia contou com 157 viaturas. O chamado operacional começou no último sábado com cerca de 600 policiais retornando aos seus pontos de trabalho.

A mídia noticiou a volta das atividades normais após o acordo, mais uma vez, cumprindo o papel de correia de transmissão de informações oficiais do governo. O que se tem observado, no entanto, é que algumas mulheres de PMs ainda seguem movimentando as portas dos quartéis. Não se sabe ao certo se houve um acordo de fato com a categoria ou se o próprio movimento foi minado por dentro. Pode ser que o “acordo” feito com a categoria não esteja tão selado assim.

Cinthya Andrade de Paiva Gonçalves é advogada e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Augusto Cesar Coutinho Brandão é gestor de projetos e neurolinguista.

Publicado originalmente no blog do Intervozes na Carta Capital em 16 de fevereiro de 2017.

“Conversem com suas esposas”: as imagens midiáticas da greve dos PMs

Como o jornalismo legitimou o esvaziamento das imagens das “mulheres” e do debate político na cobertura da greve de policiais do Espírito Santo

Por André Keiji Kunigami*

Trata-se de uma cena familiar do cinema: a personagem feminina é punida, mesmo que indiretamente, pela catástrofe que se armou. O serial killer corre, arma nas mãos, seguido de perto por uma câmera sôfrega que nos envolve, espectadores, fisicamente na ação, eventualmente alcançando a menina que vai ser morta diante de nossos olhos. No cinema de horror clássico, a mocinha que possui alguma agência é a primeira a ser morta pelo assassino, e o filme produz seu efeito pedagógico a partir da eliminação dessa agência.

Façamos agora um corte para a semana passada no Brasil, quando, durante a crise instaurada pela paralisação da PM capixaba, em 10 de fevereiro de 2017, podia-se ler na manchete do El País: “Governo do Espírito Santo endurece o tom e diz que as mulheres serão penalizadas”. A relação sem dúvida se dá num nível do imaginário midiático, e por isso mesmo revela complexidades, ambiguidades e nós discursivos que valem a pena explorar.

Dos muitos acontecimentos recentes no cenário político brasileiro talvez um dos que tenham mobilizado mais a opinião pública foi a recente paralisação da Polícia Militar do Espírito Santo. O evento se iniciou em 4 de fevereiro, quando oito mulheres, esposas de policiais, bloquearam a saída da 2ª companhia do 6º batalhão da PM em Serra, região metropolitana de Vitória, reivindicando aumento salarial e melhoria das condições de trabalho.

O Espírito Santo é o estado que menos paga aos seus policiais militares. Em poucos dias, a situação tomou proporções de calamidade pública, ocasionando mais de cem homicídios (não especificados até agora), fechamento de escolas, comércio e órgãos públicos, paralisação da circulação de ônibus e uma atmosfera de medo generalizado por todo o estado, culminando com o envio das Forças Armadas e o clima de paranoia nacional com a possibilidade de ações similares em outros lugares do País.

Ao fim, mais de setecentos policiais foram indiciados por “crime de revolta”, e a narrativa que opõe uma categoria profissional contra a sociedade foi construída pela mídia corporativa, especialmente no uso das imagens.

Uma das questões mais marcantes desse evento tão político quanto midiático foi justamente o que chamarei de seu dispositivo: as “esposas” ou “mulheres” dos policiais – palavra muito utilizada pela grande mídia para descrever e personalizar as iniciadoras do processo em que culminou a crise. Digo um dispositivo porque o simples fato de terem sido aquelas mulheres das famílias dos policiais a iniciarem a paralisação tornou-se um mecanismo sutil de distração ativado pela mídia: não é o Estado, são os policiais; não são os policiais, são as famílias; não são as famílias, são as mulheres.

Um dispositivo que não apenas personaliza um problema de ordem estrutural e sistêmica, mas também se arrisca a reproduzir uma penalização dos corpos femininos no exato momento que eles se tornam agentes políticos – ou dos próprios policiais, quando se enfatiza hipótese de ser tudo uma “armação”, um subterfúgio que se utiliza das famílias para produzir uma falsa paralisação forçada, uma vez que a greve não é um direito militar.

Ou seja, o dispositivo, que é possibilitado pela presença física daquelas mulheres diante dos batalhões e das câmeras, também inclui os próprios policiais: todos saem perdendo. Mas em qualquer uma das hipóteses, o fato é que aquelas mulheres são desprovidas de sua ação como sujeitos para se tornarem um instrumento que permite o esvaziamento – legitimado pela mídia – do debate político que deveria ali se instalar: a desmilitarização da polícia e a violência do Estado.

Um dispositivo que organiza as forças que estão ali em confronto de forma a deslocá-lo: não se trata mais dessas pautas, mas sim da proteção da sociedade “de bem”. Em vez de mudança, manutenção.

De fato, o grande nó da narrativa discursiva construída pela mídia trata-se justamente da relação entre PM e esposas, traçando conjecturas sobre a possível ação conjunta entre as duas partes. O pêndulo oscila entre afirmar a ação das mulheres ou representá-las como apenas parte do plano de greve dos policiais. Por exemplo, no dia 6 de fevereiro, a BBC publicou uma das primeiras abordagens focadas nas mulheres, relatando que os próprios policiais não sabiam da articulação, feita por redes sociais.

Na reportagem da Mídia Ninja de 8 de fevereiro, a voz é dada especificamente às familiares que se organizaram para protestar. Por outro lado, o portal G1 no dia 11 do mesmo mês anuncia que “coordenadores das forças militares e autoridades governamentais não dão credibilidade a isso pois acreditam que os PMs usam os familiares para tentar escapar de punição”.

O G1 volta a suspeitar no dia 13: “As mulheres sempre alegam que são elas que estão no comando da paralisação. Mas, para as autoridades, essa é uma tentativa de encobrir o que, na verdade, seria um motim dos PMs”. Logo em seguida, o texto nos relembra: “Sem policiamento nas ruas, uma onda de violência se instaurou”.

Numa disputa marcada por pânico, incertezas e imagens de violência, um dispositivo emerge a partir das flutuações de posições que o evento pode ter – quem fere, quem é ferido: os policiais militares, em sua estrutura de trabalho precarizada, ou a sociedade que deve ser defendida?

A estratégia que se solidifica é, obviamente, aquela que coloca os dois grupos como antagonistas. “Os empresários precisam de paz”, anunciava-se na caminhada das famílias pela paz na capital Vitória, segundo relatos, deixando claro a favor de que “sociedade” se fala.

Nas imagens, a construção desse dispositivo torna-se ainda mais clara, mesmo que talvez de forma oblíqua. Primeiro, em vídeo de 7 de fevereiro, quando a situação havia recém-adquirido contornos de calamidade, o jornal Extra, do grupo Globo, publica um vídeo no qual, de maneira bastante ensaiada e artificializada, um policial militar negocia com “um grupo de mulheres” que se encontra do outro lado do portão do 8º Batalhão, em Colatina.

Em segundo plano, outro policial filma a cena com seu celular. As falas são hesitantes e teatralizadas, como um script mal praticado que ainda não se fixou na memória do seu ator. O grupo de menos de dez mulheres responde, e uma delas discorre sobre a lista de condições e reivindicações para a câmera. Em comentário de um leitor, lê-se: “Encenação ridícula…”. Nesse vídeo, o espetáculo é uma farsa, orquestrada pela PM e executada pelas “mulheres”.

As "mulheres" dos policiais militares

Em outro vídeo, de 11 de fevereiro, agora da GloboNews, o repórter narra, por telefone, o acordo assinado entre PM e governo do estado, e a resistência por parte delas de acatar a negociação da qual não participaram.

“As mulheres continuam impedido a saída [dos policiais]”, diz o repórter, enquanto vemos em looping repetido por inúmeras vezes uma sequência de imagens: um grupo de policiais em um batalhão, mulheres protestando, homens das Forças Armadas com fuzis e tanques de guerra nas ruas, um carro fugindo pela praia, pessoas saqueando lojas, um carro da guarda municipal atrás de alguém em uma rua deserta.

Uma montagem de imagens “amadoras” que, na necessidade da televisão de sempre ter imagens, é repetida muitas vezes enquanto a âncora e o repórter debatem o porquê da insistência das mulheres em manter o protesto: “Quando o acordo começa a avançar essas mulheres saem, e quando elas retornam, retornam com outra proposta”, explica o repórter.

Uma montagem mostrando um estado de caos que, na sua repetição incessante sob as falas dos jornalistas da GloboNews, torna-se produto das próprias mulheres, que no discurso são referidas como empecilhos à paz.

Numa imagem, trata-se de uma encenação. Na outra, trata-se de teimosia daquelas mulheres. Falta ou excesso de verdade. Em ambos os casos, diz-se “as imagens não mentem”, mesmo quando mostrando a sua própria mentira (como no caso do Extra).

Acima de tudo, em ambos, essas “mulheres” são utilizadas pela mídia como mecanismo discursivo – e estético – que, seja como um coro ensaiado ou como agentes da desordem, funcionam como um dispositivo que regula forças que se recusam a ceder.

Do seu lugar de desejo por transformação, elas são capturadas por um dispositivo construído em imagens e discursos que logram cindir a sociedade em partes – a que deve ser defendida, e aquela que deve ser exterminada (juventude negra, pobre e periférica).

Não são mais as mulheres dos policiais, são um dispositivo-“mulheres” que reorganiza reivindicações e revoltas, transformando-as em perigo à sociedade de bem e englobando o outro lado frágil da relação institucional que são os próprios policiais, trabalhadores precarizados.

Para a mídia, um espetáculo transmitido nacionalmente em tempo real, que garante a vitimização do governo estadual (Paulo Hartung, sem partido, e seu vice César Colnago, PSDB) e que se constrói a partir do sutil esvaziamento do debate político e da mobilização de sentimentos conservadores e tradicionalistas. “Conversem com suas esposas”, não à toa, foi sugerido pelo governo como solução ao impasse.

*André Keiji Kunigami é pesquisador, mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense e cursa doutorado em Literatura e Cinema na Universidade de Cornell (EUA)

Publicado originalmente no blog do Intervozes na Carta Capital.

Novos ares na programação da Globo: como mudar sem mexer no essencial

Reposicionamento da emissora permite veicular programas de conteúdo progressista sem tocar nos interesses centrais e no poder político do grupo.

Por Pedro Ekman*

Denúncia contundente do racismo estrutural existente no Brasil; Globeleza vestida e representando a diversidade cultural do País; personagens LGBT finalmente ganhando as telas e até as ocupações das escolas recebendo apoio nas produções da emissora de maior audiência no Brasil.

De forma direta e decidida, em mais de um episódio de Amor & Sexo, de Fernanda Lima, a promoção do feminismo e um ataque frontal ao machismo, com artistas como Gaby Amarantus e Ney Mato Grosso debatendo temas há muito evitados por toda a TV brasileira. Na abertura de Tá no Ar, de Marcelo Adnet, o clássico dos Titãs “a televisão me deixou burro, muito burro demais” indica que a programação da TV segue como alvo das críticas em mais uma temporada do programa.

Aí você pensa: “alguma coisa mudou”. Será? A Globo nunca foi inconsequente em suas movimentações. Nesse momento, não é diferente. Vejamos.

Remontando à TV Pirata, dos anos 80, a comédia liderada por Adnet em geral faz críticas aos ricos e preconceituosos, em um recorte mais progressista. Mas mira sua ironia ácida na concorrência, retratando programas religiosos e policialescos, entre outros, produzidos exclusivamente pelas emissoras adversárias, que na disputa de apenas 30% de um mercado extremamente concentrado se valem dos conteúdos mais bizarros na corrida pela audiência. Programas próprios da Globo também aparecem, mas estão longe de serem objeto das piadas.

Com o personagem ativista que aparece criticando a própria emissora, com argumentos estapafúrdios, a Vênus Platinada passa um recado muito claro. Afirma que as críticas ao seu histórico de abusos e violências são infundadas. O personagem, aliás, destoa em qualidade e ritmo do resto do programa, “hackeando” o sinal com uma transmissão caseira.

O telespectador, que pela edição geral do programa parecia zapear pela TV, se depara de forma pouco crível com um personagem precário, mas que dá ao público conservador algo em que se agarrar.

Esse movimento feito pela emissora não é recente. Durante abertura democrática pós-ditadura militar, programas como a TV Pirata e Malu Mulher seguiram no mesmo caminho, com a defesa de uma agenda liberal clássica, de direitos individuais.

Em 2013, depois de ter diversas equipes de jornalismo hostilizadas nos volumosos protestos – que, entre outras palavra de ordem, entoaram nas ruas “a verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura” –, Willian Bonner foi obrigado a ler o editorial do Jornal Nacional admitindo que havia sido um erro o apoio da empresa à ditadura, trocando o termo “Revolução de 64”, utilizado até então, por golpe militar.

O reposicionamento da marca começa, então, quando pesquisas indicam que a emissora poderia passar a ser vista como uma grande vilã nacional. Novos indicadores de mercado também ajudam a quebrar tabus perpetrados até então. Um beijo gay na novela, assim como a veiculação de conteúdos antirracistas ou feministas, também não são mais um problema que afugenta grande parte dos anunciantes.

A evolução cultural, obviamente, não é obra da Globo. É uma conquista das inúmeras lutas travadas por movimentos e segmentos sociais que conseguiram debater essas pautas com a sociedade a ponto do mercado aceitar que elas agora permeiem seus produtos. Assim, a Globo vê uma oportunidade de evitar a caracterização de vilã e inicia sua vacina contra as multidões que lutam por liberdades e igualdade.

Aqui é importante fazer um parêntese. Mesmo que tais conteúdos possam ser melhor trabalhados, essa abertura é um importante avanço e deve ser aproveitada para frear ou debilitar a propagação de ideias reacionárias no País. Ter esse tipo de conteúdo na emissora de maior audiência do Brasil não é de se desconsiderar para quem quer que as opressões de fato diminuam.

Mas que ninguém tenha dúvidas de que, ao girar parte da sua programação para um espectro político mais progressista, sem interferir diretamente no seu modelo de negócios, a Globo pode continuar fazendo o que faz de melhor: conduzir o poder no país segundo seus interesses políticos e econômicos.

É assim, por exemplo, que um programa como o Profissão Repórter consegue existir em meio a um jornalismo que chafurda com exclusividade no golpismo. Em 2016, após a derrubada de Dilma, Caco Barcelos e sua equipe chegaram a ser agredidos aos gritos de “golpistas” ao cobrir uma greve de servidores públicos no Rio de Janeiro.

Contraditoriamente, o Profissão Repórter prestava ali um grande serviço à greve dos servidores públicos que o agrediam durante a gravação, denunciando as péssimas condições de trabalho das categorias e dando voz a seus líderes.

Assim como em temas como trabalho escravo, exploração sexual infantil, saúde pública, educação e transporte, o Profissão Repórter destoa do jornalismo de Willians Bonner e Waack. Mas esta é a janela permitida pela emissora para veicular minimamente histórias e vozes invisibilizadas nos quatro jornais diários. A proporção é de mais ou menos 20 para 1.

São inflexões políticas calculadas no conjunto de todo o conteúdo exibido na semana. Analisando o tratamento do JN e do Jornal da Globo dado à Operação Lava Jato antes e depois do impeachment da presidenta Dilma, assim como às questões que circundam o governo federal nestes dois períodos, fica explícito onde de fato está o foco político da emissora e que peças ela quer mover neste tabuleiro.

Na última semana, depois que em uma prova do BBB17 dois participantes decidiram gritar “Fora Temer! Volta Dilma!”, a orientação da direção do programa foi para que “falassem dos colegas da casa e não de quem está fora”. Não é novidade: o compromisso da Globo era com a de derrubada de Dilma e agora é com a sustentação do governo Temer, pelo menos enquanto não se desenhar outra condução para o País que mantenha o seu monopólio de pé.

Assim, a Globo avança em temas que não influenciam diretamente na estrutura da política governamental e continua atuando consistentemente na definição dos rumos do País. O galho enverga e não quebra. Quem grita ruas “O povo não é bobo, abaixo à Rede Globo” não pode perder de vista que também a Globo de boba não tem nada.

* Pedro Ekman integra o Conselho Diretor do Intervozes.

Publicado originalmente no blog do Intervozes na Carta Capital.