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Imprensa brasileira em 2009: Dois caminhos

Três fatos históricos ocorridos em menos de duas semanas resumem, em grande parte, o que foi 2008 e indicam as possibilidades para os anos seguintes. No dia 20 de dezembro a Bolívia foi declarada território livre de analfabetismo, no dia 27 o governo israelense iniciou um ataque que assassinou centenas de palestinos e no dia 1o de janeiro Cuba comemorou 50 anos de Revolução.

O primeiro fato foi ignorado pelos meios de comunicação de massa brasileiros, o segundo foi relativizado e o terceiro, menosprezado. Com isso, editores e articulistas não foram capazes de enxergar a relação entre os três acontecimentos, reduzindo assim o prisma de suas análises e comprometendo suas coberturas jornalísticas.

Em primeiro lugar, é preciso enfatizar que não é todo dia que um país erradica o analfabetismo. Poucas são as nações que lograram este objetivo, mesmo entre aquelas economicamente desenvolvidas. Na Bolívia, 819.417 pessoas entre 15 e 80 anos aprenderam a ler e escrever durante os 30 meses do Programa de Alfabetização, implementado com a ajuda dos governos cubano e venezuelano. Cuba entrou com o método “Yo, sí puedo”, além de médicos que realizaram 250 mil consultas, 3 mil cirurgias de vista e distribuíram 210 mil óculos para a população. Por sua vez, a Venezuela doou 8 mil painéis de captação de energia solar para que o programa também pudesse ser implementado nas áreas desprovidas de energia elétrica. Assim, Bolívia se tornou o terceiro país latino-americano livre do analfabetismo, depois de Cuba (1961) e Venezuela (2005).

Para eliminar o analfabetismo na Bolívia, os três governos investiram o equivalente a 36 milhões de dólares. Esse valor se refere a todos os custos do programa, incluindo as doações, como os painéis solares venezuelanos, a assistência médica cubana e todo o equipamento áudio-visual. 36 milhões de dólares é menos do que os EUA enviam para Israel a cada três dias em armas e equipamentos de guerra, uma ajuda cujo valor total anual é de aproximadamente US$ 5 bilhões.

O ataque de Israel contra a Palestina deixou mais de 1.200 palestinos mortos e aproximadamente 5.000 feridos. A maior parte dos mortos eram crianças, mulheres e idosos. Milhares de palestinos estão neste momento desabrigados, sem alimentos, medicamentos e água corrente. Até um edifício da ONU foi atingido. Não há médicos suficientes para atender a tanta gente. Chefes de Estado do mundo inteiro classificaram a agressão israelense como “genocídio” ou “carnificina” e pediram um cessar-fogo imediato. A resposta do governo israelense veio pelo vice-ministro de Defesa Matan Vilnai: “Isso é só o começo”. O presidente eleito dos EUA calou, enquanto o governo estadunidense declarou que a matança “só vai parar quando o Hamas deixar de disparar mísseis contra Israel”.

Enquanto as corporações de mídia informavam ao público brasileiro que o genocídio cometido contra o povo palestino se tratava de um conflito de igual para igual entre o “grupo terrorista Hamas” e Israel, os cinqüenta anos da Revolução Cubana foram apresentados como uma “ditadura em declínio” (Folha de S. Paulo, 30 de dezembro de 2008) de onde restou apenas “a memória de uma aventura que se prometia gloriosa e a evidência de um desastre construído” (O Estado de S. Paulo, 1 de janeiro de 2009). O termo “ditadura” também foi utilizado pela TV Globo para classificar o governo cubano. No mais, foram fartas as matérias enviadas de Havana, que naturalmente continham apenas os relatos dos que são contrários ao governo cubano.

Nesse sentido, a não publicação da erradicação do analfabetismo na Bolívia não foi apenas um lapso midiático, mas uma escolha editorial fundamental para a legitimação do sistema capitalista, mesmo às custas de uma gigantesca falha jornalística – que deveria se estudada em toda faculdade de comunicação que se pretenda séria. Se não, como poderiam explicar que um país socialista como Cuba, debaixo de um feroz bloqueio econômico, alcance a façanha de exportar um conhecimento capaz de dotar todos os cidadãos bolivianos da capacidade de ler e escrever? Como poderiam explicar que essa empreitada fora conquistada com o mesmo investimento de um punhado de bombas utilizadas para massacrar o povo palestino? E, mais difícil ainda: como explicar que a maior potência militar e econômica do mundo ainda tenha analfabetos em sua população?

Essas respostas jamais serão encontradas nas corporações de mídia porque sua simples publicação significa a negação de tudo aquilo que defendem. Pela mesma razão jamais reconhecerão a motivação capitalista (o saque às riquezas do Oriente Médio) no bombardeio à Palestina ou os projetos solidários internacionalistas de Cuba. Enquanto um é relativizado, outro é ignorado.

Os três eventos históricos que ocorreram entre 20 de dezembro e 1o de janeiro testemunham as infinitas capacidades do ser humano. Por um lado, a brutalidade desmedida, a violência, a agressão, a guerra, a morte. De outro, a cooperação, a solidariedade, a paz, a vida. Cabe aos povos e governos de todo o mundo decidir que caminho seguir em 2009 e nos anos seguintes.

* Marcelo Salles, jornalista, é correspondente da revista Caros Amigos em La Paz (Bolívia), editor do jornal Fazendo Media (www.fazendomedia.com) e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.


Liberdade de expressão e mídia alternativa: dois anos depois

Há pouco menos de dois anos, escrevi para o Observatório da Imprensa um pequeno artigo com o título "A morte anunciada da Agência Carta Maior". Atendia a proposta feita em editorial que falava de "fechamento iminente" e conclamava todos interessados a "debater (a) questão, escrevendo a respeito, colocando-a em pauta nos sindicatos, partidos, organizações não governamentais, escolas, universidades, em todos os veículos" tendo em vista que não se tratava apenas de um problema da Carta Maior, mas "da maioria dos veículos de comunicação dessa imprensa alternativa, ou outro nome que se lhe queira dar (…) absolutamente necessário para a democracia da nossa comunicação".

Dois anos depois, retorno ao tema no momento em que passo a colaborar de forma permanente também com Carta Maior, sobrevivente de uma crise que não conseguiu fechá-la. As crises, é sabido, colocam desafios e oportunidades de mudança de rumos. Carta Maior sobrevive. Todavia, questões que eram centrais em 2007 continuam centrais ainda hoje. Trato aqui de duas delas.

Liberdade de expressão e grande mídia

Lembrei, em 2007, que os grandes grupos de mídia ignoram deliberadamente a impossibilidade prática que um cidadão comum tem para exercer a sua liberdade de expressão, o seu direito individual de expressar, ele próprio, sua opinião publicamente. Por que não se aplica ao cidadão comum – sujeito originário do direito – a liberdade de expressão agora apropriada pelos grandes grupos de mídia como liberdade de imprensa? Como exercer a liberdade de expressão em nossos dias?

O jurista Fabio Konder Comparato tem colocado essa questão faz tempo. Afirmava ele ainda em 1990:

"A liberdade de expressão é, tradicionalmente, considerada a pedra angular dos regimes democráticos. (…) Hoje, no entanto, todos entendem que a expressão pública do pensamento passa, necessariamente, pela mediação das empresas de comunicação de massa, cujo funcionamento exige graus crescentes de capitalização. Aquele que controla tais entidades dispõe, plenamente, da liberdade de expressão. Os demais membros da coletividade, não. ("É possível democratizar a TV?" in Adauto Novaes, org., Rede Imaginária – TV e Democracia; Companhia das letras, 1991).

No meu artigo, perguntava: o que (o cidadão) deve fazer? Como competir com os grupos de mídia já existentes? Como conseguir o volume de capital necessário para ser proprietário de uma empresa de comunicações? Ou deveria ele escrever para a seção de cartas dos jornais e revistas? Ou organizar-se, em sua comunidade, criar uma associação ou fundação sem fins lucrativos, juntar os recursos (?) e solicitar ao Ministério das Comunicações uma autorização para uma rádio comunitária? Ou deveria criar um blog na internet e torcer para que ele fosse acessado por milhões de internautas?

Para essas questões ainda não se tem resposta.

Quem financia a mídia alternativa?

Da mesma forma, por que não temos no Brasil uma mídia alternativa aos grandes grupos dominantes, como ocorre em países semelhantes ao nosso na América Latina? Por que será que inúmeras tentativas, sobretudo na mídia impressa, têm sistematicamente fracassado?

Um dos resultados da crise porque passou Carta Maior foi exatamente a articulação do Fórum Mídia Livre que se reuniu pela primeira vez em junho de 2008, no Rio de Janeiro, e que se reúne também no Fórum Social Mundial de Belém. Dentre os vários temas tratados no Manifesto de sua constituição, um se refere à eterna questão do financiamento da mídia alternativa.

Apoiado no princípio de que "um Estado democrático precisa assegurar que os mais distintos pontos de vista tenham expressão pública", o Manifesto reivindica que "as verbas de publicidade e propaganda sejam distribuídas levando em consideração toda a ampla gama de veículos de informação e a diversidade de sua natureza; que os critérios de distribuição sejam mais amplos, públicos e justos, para além da lógica do mercado".

Essa é uma das questões que precisa ser colocada: qual a responsabilidade do Estado democrático na garantia da pluralidade e da diversidade na mídia?

A história da imprensa no Brasil é marcada pela estreita vinculação entre os interesses do Estado e da mídia privada, controlada pelas oligarquias políticas regionais e pelos grandes grupos nacionais. Esse vínculo fica patente não só na legislação que rege, por exemplo, as concessões de radiodifusão, mas, sobretudo, nas formas diretas e indiretas de financiamento público, através de empréstimos bancários, subsídios à importação de papel; isenções fiscais, publicidade governamental, contratos milionários para compra de livros didáticos etc.

Já a mídia alternativa que sobreviveu aos anos de autoritarismo ou nasceu nos últimos 30 anos, em boa parte, mendiga apoio oficial ou sobrevive da ajuda esporádica de entidades internacionais e/ou patrocínios irregulares de origem privada ou pública.

Hoje, alegam-se motivos técnicos e de mercado para a distribuição das enormes verbas de publicidade oficial que privilegia a grande mídia. Ignora-se, por exemplo, que há países na Europa onde leis contrárias à monopolização garantem recursos financeiros para a mídia alternativa e independente. Uma medida neste sentido, portanto, não seria sequer inédita. Por que não se aplica à comunicação social os mesmos critérios que já vem sendo adotados pelo Estado brasileiro em relação a outros setores onde se busca a correção de desequilíbrios históricos? É o que se faz, por exemplo, com as microempresas que gozam de benefícios fiscais; com as quotas étnicas e/ou sociais para acesso ao ensino superior; e com a agricultura familiar para a qual existe o crédito subsidiado.

Por que não se pode fazer o mesmo com a mídia alternativa em nome da democratização do setor e no espírito da Constituição de 1988?

Princípios básicos

O cerceamento da liberdade de expressão individual e o financiamento da mídia alternativa são questões gêmeas. Dizem respeito à pluralidade e à diversidade de informações e opiniões que circulam na sociedade – vale dizer, dizem respeito a princípios básicos da democracia representativa. É por isso que não se pode deixar de debatê-los.

* Venício A. de Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007).

Voz do Brasil e o Papai Noel

Era o início da década de 1970. À noite, entre sete e oito horas, quem passasse pelo pátio central da Faculdade de Psicologia "Sedes Sapientiae", no centro de São Paulo, quase não perceberia o vulto franzino andando ao redor das árvores. Só mais de perto distinguiria a figura da Madre Cristina Sodré Doria com um pequeno rádio portátil (seria Spica?) colado ao ouvido. No ar, A Voz do Brasil.

Talvez naquele mesmo momento, numa sala próxima ao pátio, estivessem escondidos alguns dos líderes da resistência à ditadura mais procurados do país. Por obra e graça da Madre. Que não temia também colocar uma enorme faixa preta em frente ao prédio do Sedes, na rua Caio Prado, quando sabia da morte, pela repressão, de algum combatente.

Em plena ditadura, Madre Cristina confiava mais na Voz do Brasil do que em qualquer outro noticiário transmitido pelas emissoras comerciais. Lá, pelo menos, ela podia ouvir trechos de discursos de parlamentares do MDB, chamados de "autênticos" por suas posturas mais críticas em relação ao regime. Todas as rádios estavam sob censura, mas nas particulares às imposições policiais somavam-se os interesses político-empresariais.

A democracia foi restabelecida e as restrições do Estado desapareceram, mas resta até hoje a censura privada. Seus mentores tentam, há vários anos, acabar com A Voz do Brasil. Perspicaz, o professor Venício Lima, pinçou, ao final do ano, uma informação omitida dos noticiários: a Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados rejeitou um projeto de lei que propunha a "flexibilização" da Voz do Brasil. Por ele, o programa poderia ser transmitido em qualquer horário entre 18h e 24h, a critério das emissoras. Muitas já fazem isso, sustentadas por liminares. A decisão da Câmara deve ser comemorada. Nem que seja apenas pelo argumento apresentado no parecer vencedor, elaborado pelo Deputado Miro Teixeira: a Voz, às 19 horas, "é um hábito que já faz parte da cultura brasileira".

É mais do que isso. É uma forma de termos – pelo menos durante uma hora ao dia – notícias despoluídas de interesses comerciais, oferecidas a um só tempo a todo povo brasileiro. A hora ocupada simultaneamente pela Voz do Brasil em todas as emissoras nacionais, além de informar, aproxima o ouvinte dos poderes públicos, constituindo-se dessa forma em importante instrumento de pedagogia política. Goste-se ou não do que ali é dito.

Ao mesmo tempo, é inconcebível que governos e parlamentares democraticamente eleitos tenham que se relacionar com a sociedade apenas através da mídia cujas prioridades são tiragens, audiências e faturamentos publicitários. Nada disso tem a ver com os interesses dos cidadãos. Daí a necessidade de canais públicos e estatais em número cada vez maior.

Não se trata de um problema apenas brasileiro. Vale para todos os países da América Latina governados por lideranças populares sitiadas pelos barões da mídia globalizada. Não é por acaso que o presidente Evo Morales aponta a necessidade urgente de o estado boliviano possuir o seu jornal diário, capaz de restabelecer o equilíbrio informativo no país. Além de propor a criação de canais de TV para dar voz e imagem às populações rurais.

São providências necessárias, justificadas pelo longo histórico de golpismo latino-americano, sempre sustentado por forte apoio midiático. Evo lembra Vargas que procurou defender seu governo impulsionando a Última Hora de Samuel Wainer. Não foi o bastante para evitar as tentativas de golpe, abortadas temporariamente pelo suicídio. Naquele momento talvez uma emissora de televisão já fizesse falta. Getúlio deve ter intuído isso, tanto é que deu uma concessão à Radio Nacional para implantar a primeira TV pública do país. Era o canal 4, do Rio, que JK alguns anos depois, sob pressão dos radiodifusores, transferiria para as Organizações Globo.

Até na Europa, onde o equilíbrio informativo é maior já se percebe essa atrofia do espaço comunicacional determinado pela concentração crescente das corporações da mídia. Atento ao problema o filósofo Jurgen Habermas lembrava em artigo de 2007 que "em termos históricos, a idéia de regular o mercado da imprensa tem alguma coisa de contra-intuitivo. Afinal, o mercado foi outrora o cenário em que idéias subversivas puderam se emancipar da repressão estatal. Mas o mercado só é capaz de desempenhar essa função se as determinações econômicas não penetrarem nos poros dos conteúdos culturais e políticos nele dispersos".

No caso brasileiro, o mercado da mídia está longe desse distanciamento. Ao contrário, é quase sempre o porta voz dos interesses privados dos que o controlam. Em 2006, o presidente Lula sentiu isso na pele quando o seu débil adversário chegou ao segundo turno das eleições presidenciais graças ao esforço concentrado dos grandes grupos de comunicação. Acreditar que políticas de governos populares cheguem intactas ao conhecimento dos cidadãos através dessa mídia equivale a crer em duendes ou no Papai Noel, de passagem recente entre nós.

* Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP e da Faculdade Cásper Líbero. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial).

Seqüestro de Santo André: Está na rede

Não há palavras para descrever. Só vendo. Quem puder entre no Youtube e assista a algo inacreditável. A conversa do produtor do programa "A Tarde é Sua", apresentado por Sonia Abrão, na Rede TV, com Lindemberg Alves, em plena ação de sequestro da menina Eloá. Por mais que o fato já tenha sido comentado, qualquer descrição do que aconteceu fica muito longe da realidade. Trata-se da visão trágica dos limites a que chega a dignidade humana. E aqui não falo do sequestrador e sim de quem o entrevista, dos seus chefes e patrões. Eles mentem, usurpam funções especializadas pretendendo-se negociadores, violam o Estatuto da Criança e do Adolescente e intervêm indevidamente numa ação do Estado, representado naquele momento pelas forças policiais.

A espetacularização da notícia na TV não é novidade, com conseqüências trágicas em alguns casos. Escola Base e Bar Bodega são apenas os exemplos mais conhecidos. E o caso Isabela Nardoni, o mais recente. Mas nunca a televisão havia ultrapassado o limite da informação (ainda que distorcida ou sensacionalista) passando à intervenção. No caso Eloá, a TV mudou o rumo dos acontecimentos ao bloquear as negociações telefônicas da polícia com o seqüestrador e interferir no seu humor. No vídeo ele chega a dizer para o entrevistador: "não me deixa nervoso não" que responde do alto do seu conhecimento psicológico pedindo calma.

Que direito tem uma empresa comercial de intervir num processo da alçada exclusiva do Estado? Espero que essa pergunta seja respondida na ação proposta pelo Ministério Público Federal contra a Rede TV. Cabe ao Judiciário decidir se houve abuso ou não. Nesse sentido, para embasar melhor o processo seria muito importante que entidades como o Conselho Federal de Psicologia, a Federação Nacional dos Jornalistas, a Associação Brasileira de Imprensa e a Ordem dos Advogados do Brasil oferecessem pareceres sobre o caso. Afinal produtores e apresentadores de televisão transformaram-se, nesse caso, publicamente em psicólogos, advogados e jornalistas sem escrúpulos.

Claro que a Rede TV já está tratando a possibilidade da ação como "uma forma velada de censura". Ao que a procuradora Adriana Fernandes, autora do pedido, respondeu com propriedade dizendo que a liberdade de expressão não é absoluta e que, neste caso, deveria ter sido respeitado o fato de uma menor estar envolvida. É sempre assim, e não é só a Rede TV que faz isso. Basta qualquer setor da sociedade exigir um pouco mais de responsabilidade de um concessionário de TV que a resposta é sempre a mesma. Infelizmente a combinação cronológica entre o fim da ditadura militar e a ascensão do neoliberalismo pelo mundo deixaram a população brasileira refém do fantasma da censura e da fantasia do mercado como regulador supremo. É através desse casamento que a TV deita e rola. Tudo que a incomoda é censura e o limite admitido é dado apenas pelos índices de audiência. Como se eles refletissem algum tipo de escolha democrática e não fossem mera sanção do mercado, no dizer preciso de Pierre Bourdieu.

A Rede TV também afirma que sempre vai defender "a liberdade de expressão e o não cerceamento do jornalismo de informar os telespectadores". Gostaria de saber onde há informação numa entrevista realizada com um seqüestrador em pleno ato criminoso. Pode-se afirmar que até a Constituição Federal foi afrontada. Lá está dito que "a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas". Em nenhum momento está prevista a intervenção da concessionária num crime, como fez a Rede TV.

Ressalte-se que essa emissora é reincidente. No final de 2005 foi obrigada, judicialmente, a retirar do ar um programa que violava os Direitos Humanos e, durante um mês, colocar no mesmo horário produções elaboradas por organizações sociais. Fato inédito na história da TV brasileira, tornado possível graças à articulação da sociedade e o acolhimento da demanda pelo Ministério Público. Em vista do trágico desfecho, o caso atual é ainda mais grave. E não ficou restrito à Rede TV. Record e Globo a seguiram.

Uma outra referência pode ser utilizada, talvez, para auxiliar na instrução da ação judicial caso ela ocorra. São alguns trechos das normas editoriais da BBC. Dizem elas que "em casos de seqüestros devemos estar cientes de que qualquer informação pode ser vista ou ouvida pelos responsáveis pelo ataque. Devemos avaliar as questões éticas envolvidas em conceder uma vitrina a seqüestradores, especialmente se eles fazem contato direto". Reparem que a preocupação é com o contato que o seqüestrador possa fazer com a emissora. Nem passa pela cabeça dos jornalistas britânicos a possibilidade da emissora fazer contato com o seqüestrador como aconteceu por aqui.

E mais: "devemos permanecer no controle editorial da cobertura dos eventos e não entrevistar um responsável por um ataque ao vivo; instalar um delay (pequeno atraso na veiculação de sons e imagens em relação ao tempo real) quando transmitimos ao vivo material de coberturas delicadas, por exemplo, um cerco a escola ou seqüestro de avião. Isto é especialmente importante quando o desenlace é imprevisível e podemos registrar material perturbador, impróprio para transmitir sem uma reflexão cuidadosa". Em Santo André, nós todos corremos o risco de ver um assassinato ao vivo.

E para finalizar, diz a BBC que "quando cobrimos seqüestros devemos ouvir a orientação da polícia e de outras autoridades sobre qualquer coisa que, se divulgada, possa exacerbar a situação". Parece que estão falando conosco, não?

* Laurindo Lalo Leal Filho é sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP e da Faculdade Cásper Líbero. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial).

Regulação da publicidade: Quando o cabrito toma conta da horta

A “Folha de S. Paulo” de segunda-feira, 10 de novembro, abriu seu espaço nobre na página 3 para o secretário-executivo da ANJ, a Associação Nacional de Jornais, Antonio Athaide. Texto esperto. Critica certo tipo de publicidade, chamada por ele de “fase Caras” ou “Zeca fase” por se utilizar das celebridades da mídia nos anúncios. E aproveita para bater duro nas iniciativas que propõem o estabelecimento de algum tipo de norma para a propaganda. Ao editor da página isso não passou desapercebido tanto é que destacou do artigo a seguinte frase para chamar a atenção do leitor: “a sociedade sabe escolher o que lhe convém, sem precisar de entidades, de governo ou não, que diga o que fazer e o que comprar.” Esse é o recado do texto, enviado principalmente aos deputados e senadores, às voltas com importantes projetos de lei referentes à regulação do setor.

O artigo do secretário-executivo da ANJ não é uma ação isolada. Faz parte da ofensiva dos empresários da mídia contra as vozes da sociedade que apontam com precisão os males causados por diferentes tipos de propaganda. Com destaque para os anúncios dirigidos às crianças e aos adolescentes através da televisão. Eles são dirigidos a seres em formação ainda incapazes de diferenciar a propaganda do entretenimento. Ao banir esse tipo de publicidade em 2004, a Suécia baseou-se numa pesquisa conduzida pelo sociólogo Erling Bjurström. O trabalho conclui afirmando que “algumas crianças já aos 3 ou 4 anos de idade conseguem distinguir um comercial de um programa normal de televisão, mas somente dos 6 aos 8 anos é que a maioria consegue fazer a distinção”. Para o sociólogo, só aos doze é que todas as crianças conseguem ter uma posição crítica em relação à publicidade ou discernir concretamente sobre os seus objetivos. Portanto, todas precisam da proteção do Estado.

No Brasil nunca se fez esse tipo de pesquisa, mas acredito que, apesar de todas as diferenças culturais e econômicas existentes entre os dois países, as respostas seriam semelhantes. Há relatos de pais contando que as primeiras palavras pronunciadas por seus filhos são “mãe”, “pai” e “compra”. Situação agravada diante das brutais diferenças de renda. Os anúncios estimulam um consumo que a maioria das famílias não pode realizar. Como o caso do menino da periferia paulistana que, ao ser detido pelo segurança de um supermercado tomando um danoninho, disse estar apenas querendo sentir o gosto desse produto tão anunciado na televisão.

Há no meio publicitário uma posição fechada contra qualquer tipo de lei para o setor, defendida ruidosamente em eventos da categoria. O limite aceitável para eles é apenas o da auto-regulamentação, praticada através do Conar, o Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária. Como se fosse possível uma entidade privada regular ações de empresas particulares cuja atuação tem impacto sobre toda a sociedade. E ainda quando se trata de um organismo controlado pelos próprios agentes das possíveis irregularidades. É o mesmo que colocar o cabrito para tomar conta da horta.

A credibilidade do Conar, tão decantada pelas entidades de publicitários, é posta facilmente em dúvida. Basta ver o que diz o artigo 28 do seu código nacional: “o anúncio deve ser claramente distinguido como tal, seja qual for a sua forma ou meio de veiculação”. Ou seja, proíbe o merchandising na TV. No entanto, para ver um, basta ligar a televisão neste momento. Lá estarão os anúncios, em meio a programas de auditório, nas novelas e, o que é pior, misturados aos ídolos e heróis infantis. São apresentadoras e apresentadores que conquistam a confiança e a admiração das crianças com simpatia, bom humor e alegria, para sorrateiramente – entre uma brincadeira e outra – tornarem-se vendedores de todo o tipo de mercadoria. Nunca vi o Conar se manifestar sobre essa prática, incompatível com as suas próprias regras. É um exemplo que mostra, de forma clara, como são falaciosas as defesas da auto-regulamentação.

Como concessões públicas, outorgadas pelo Estado em nome da sociedade, elas necessitam de regras precisas para o seu funcionamento. Não é justo que grupos privilegiados se utilizem do espaço público para moldar gostos, hábitos e valores de toda a sociedade, sem qualquer controle. No caso da propaganda há prioridades urgentes a serem regulamentadas. Além daquelas voltadas para o público infanto-juvenil, o mercado se utiliza do rádio e da TV para impingir remédios de eficácia duvidosa, bebidas alcoólicas em qualquer horário embaladas por cenas de sucesso pessoal, para não se falar dos alimentos pobres em nutrientes e ricos em gorduras, sais e açúcares, responsáveis, entre outros danos, pelo aumento da obesidade em grande parte da população.

A ofensiva dos publicitários reflete o atraso cultural e político do Brasil em relação às nações com longa história democrática. Nelas essa discussão está superada. Tratam agora apenas do tipo de propaganda que deve sofrer restrições e qual o grau de controle que o Estado deve exercer. No caso daquelas dirigidas a crianças e adolescentes, temos desde o banimento total adotado pelos países nórdicos à regulamentações sobre horários e formas de anúncios encontradas no Reino Unido, Canadá, Japão, Alemanha, Austrália e Estados Unidos, entre outros países. Por aqui, ainda estamos muito longe disso. E artigos, como o publicado pela “Folha”, mostram a disposição que os empresários da mídia têm para retardar ao máximo o avanço do processo civilizatório brasileiro.

* Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP e da Faculdade Cásper Líbero. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial). É ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comunicação.