Voz do Brasil e o Papai Noel

Era o início da década de 1970. À noite, entre sete e oito horas, quem passasse pelo pátio central da Faculdade de Psicologia "Sedes Sapientiae", no centro de São Paulo, quase não perceberia o vulto franzino andando ao redor das árvores. Só mais de perto distinguiria a figura da Madre Cristina Sodré Doria com um pequeno rádio portátil (seria Spica?) colado ao ouvido. No ar, A Voz do Brasil.

Talvez naquele mesmo momento, numa sala próxima ao pátio, estivessem escondidos alguns dos líderes da resistência à ditadura mais procurados do país. Por obra e graça da Madre. Que não temia também colocar uma enorme faixa preta em frente ao prédio do Sedes, na rua Caio Prado, quando sabia da morte, pela repressão, de algum combatente.

Em plena ditadura, Madre Cristina confiava mais na Voz do Brasil do que em qualquer outro noticiário transmitido pelas emissoras comerciais. Lá, pelo menos, ela podia ouvir trechos de discursos de parlamentares do MDB, chamados de "autênticos" por suas posturas mais críticas em relação ao regime. Todas as rádios estavam sob censura, mas nas particulares às imposições policiais somavam-se os interesses político-empresariais.

A democracia foi restabelecida e as restrições do Estado desapareceram, mas resta até hoje a censura privada. Seus mentores tentam, há vários anos, acabar com A Voz do Brasil. Perspicaz, o professor Venício Lima, pinçou, ao final do ano, uma informação omitida dos noticiários: a Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados rejeitou um projeto de lei que propunha a "flexibilização" da Voz do Brasil. Por ele, o programa poderia ser transmitido em qualquer horário entre 18h e 24h, a critério das emissoras. Muitas já fazem isso, sustentadas por liminares. A decisão da Câmara deve ser comemorada. Nem que seja apenas pelo argumento apresentado no parecer vencedor, elaborado pelo Deputado Miro Teixeira: a Voz, às 19 horas, "é um hábito que já faz parte da cultura brasileira".

É mais do que isso. É uma forma de termos – pelo menos durante uma hora ao dia – notícias despoluídas de interesses comerciais, oferecidas a um só tempo a todo povo brasileiro. A hora ocupada simultaneamente pela Voz do Brasil em todas as emissoras nacionais, além de informar, aproxima o ouvinte dos poderes públicos, constituindo-se dessa forma em importante instrumento de pedagogia política. Goste-se ou não do que ali é dito.

Ao mesmo tempo, é inconcebível que governos e parlamentares democraticamente eleitos tenham que se relacionar com a sociedade apenas através da mídia cujas prioridades são tiragens, audiências e faturamentos publicitários. Nada disso tem a ver com os interesses dos cidadãos. Daí a necessidade de canais públicos e estatais em número cada vez maior.

Não se trata de um problema apenas brasileiro. Vale para todos os países da América Latina governados por lideranças populares sitiadas pelos barões da mídia globalizada. Não é por acaso que o presidente Evo Morales aponta a necessidade urgente de o estado boliviano possuir o seu jornal diário, capaz de restabelecer o equilíbrio informativo no país. Além de propor a criação de canais de TV para dar voz e imagem às populações rurais.

São providências necessárias, justificadas pelo longo histórico de golpismo latino-americano, sempre sustentado por forte apoio midiático. Evo lembra Vargas que procurou defender seu governo impulsionando a Última Hora de Samuel Wainer. Não foi o bastante para evitar as tentativas de golpe, abortadas temporariamente pelo suicídio. Naquele momento talvez uma emissora de televisão já fizesse falta. Getúlio deve ter intuído isso, tanto é que deu uma concessão à Radio Nacional para implantar a primeira TV pública do país. Era o canal 4, do Rio, que JK alguns anos depois, sob pressão dos radiodifusores, transferiria para as Organizações Globo.

Até na Europa, onde o equilíbrio informativo é maior já se percebe essa atrofia do espaço comunicacional determinado pela concentração crescente das corporações da mídia. Atento ao problema o filósofo Jurgen Habermas lembrava em artigo de 2007 que "em termos históricos, a idéia de regular o mercado da imprensa tem alguma coisa de contra-intuitivo. Afinal, o mercado foi outrora o cenário em que idéias subversivas puderam se emancipar da repressão estatal. Mas o mercado só é capaz de desempenhar essa função se as determinações econômicas não penetrarem nos poros dos conteúdos culturais e políticos nele dispersos".

No caso brasileiro, o mercado da mídia está longe desse distanciamento. Ao contrário, é quase sempre o porta voz dos interesses privados dos que o controlam. Em 2006, o presidente Lula sentiu isso na pele quando o seu débil adversário chegou ao segundo turno das eleições presidenciais graças ao esforço concentrado dos grandes grupos de comunicação. Acreditar que políticas de governos populares cheguem intactas ao conhecimento dos cidadãos através dessa mídia equivale a crer em duendes ou no Papai Noel, de passagem recente entre nós.

* Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP e da Faculdade Cásper Líbero. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial).

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