Liberdade de expressão e mídia alternativa: dois anos depois

Há pouco menos de dois anos, escrevi para o Observatório da Imprensa um pequeno artigo com o título "A morte anunciada da Agência Carta Maior". Atendia a proposta feita em editorial que falava de "fechamento iminente" e conclamava todos interessados a "debater (a) questão, escrevendo a respeito, colocando-a em pauta nos sindicatos, partidos, organizações não governamentais, escolas, universidades, em todos os veículos" tendo em vista que não se tratava apenas de um problema da Carta Maior, mas "da maioria dos veículos de comunicação dessa imprensa alternativa, ou outro nome que se lhe queira dar (…) absolutamente necessário para a democracia da nossa comunicação".

Dois anos depois, retorno ao tema no momento em que passo a colaborar de forma permanente também com Carta Maior, sobrevivente de uma crise que não conseguiu fechá-la. As crises, é sabido, colocam desafios e oportunidades de mudança de rumos. Carta Maior sobrevive. Todavia, questões que eram centrais em 2007 continuam centrais ainda hoje. Trato aqui de duas delas.

Liberdade de expressão e grande mídia

Lembrei, em 2007, que os grandes grupos de mídia ignoram deliberadamente a impossibilidade prática que um cidadão comum tem para exercer a sua liberdade de expressão, o seu direito individual de expressar, ele próprio, sua opinião publicamente. Por que não se aplica ao cidadão comum – sujeito originário do direito – a liberdade de expressão agora apropriada pelos grandes grupos de mídia como liberdade de imprensa? Como exercer a liberdade de expressão em nossos dias?

O jurista Fabio Konder Comparato tem colocado essa questão faz tempo. Afirmava ele ainda em 1990:

"A liberdade de expressão é, tradicionalmente, considerada a pedra angular dos regimes democráticos. (…) Hoje, no entanto, todos entendem que a expressão pública do pensamento passa, necessariamente, pela mediação das empresas de comunicação de massa, cujo funcionamento exige graus crescentes de capitalização. Aquele que controla tais entidades dispõe, plenamente, da liberdade de expressão. Os demais membros da coletividade, não. ("É possível democratizar a TV?" in Adauto Novaes, org., Rede Imaginária – TV e Democracia; Companhia das letras, 1991).

No meu artigo, perguntava: o que (o cidadão) deve fazer? Como competir com os grupos de mídia já existentes? Como conseguir o volume de capital necessário para ser proprietário de uma empresa de comunicações? Ou deveria ele escrever para a seção de cartas dos jornais e revistas? Ou organizar-se, em sua comunidade, criar uma associação ou fundação sem fins lucrativos, juntar os recursos (?) e solicitar ao Ministério das Comunicações uma autorização para uma rádio comunitária? Ou deveria criar um blog na internet e torcer para que ele fosse acessado por milhões de internautas?

Para essas questões ainda não se tem resposta.

Quem financia a mídia alternativa?

Da mesma forma, por que não temos no Brasil uma mídia alternativa aos grandes grupos dominantes, como ocorre em países semelhantes ao nosso na América Latina? Por que será que inúmeras tentativas, sobretudo na mídia impressa, têm sistematicamente fracassado?

Um dos resultados da crise porque passou Carta Maior foi exatamente a articulação do Fórum Mídia Livre que se reuniu pela primeira vez em junho de 2008, no Rio de Janeiro, e que se reúne também no Fórum Social Mundial de Belém. Dentre os vários temas tratados no Manifesto de sua constituição, um se refere à eterna questão do financiamento da mídia alternativa.

Apoiado no princípio de que "um Estado democrático precisa assegurar que os mais distintos pontos de vista tenham expressão pública", o Manifesto reivindica que "as verbas de publicidade e propaganda sejam distribuídas levando em consideração toda a ampla gama de veículos de informação e a diversidade de sua natureza; que os critérios de distribuição sejam mais amplos, públicos e justos, para além da lógica do mercado".

Essa é uma das questões que precisa ser colocada: qual a responsabilidade do Estado democrático na garantia da pluralidade e da diversidade na mídia?

A história da imprensa no Brasil é marcada pela estreita vinculação entre os interesses do Estado e da mídia privada, controlada pelas oligarquias políticas regionais e pelos grandes grupos nacionais. Esse vínculo fica patente não só na legislação que rege, por exemplo, as concessões de radiodifusão, mas, sobretudo, nas formas diretas e indiretas de financiamento público, através de empréstimos bancários, subsídios à importação de papel; isenções fiscais, publicidade governamental, contratos milionários para compra de livros didáticos etc.

Já a mídia alternativa que sobreviveu aos anos de autoritarismo ou nasceu nos últimos 30 anos, em boa parte, mendiga apoio oficial ou sobrevive da ajuda esporádica de entidades internacionais e/ou patrocínios irregulares de origem privada ou pública.

Hoje, alegam-se motivos técnicos e de mercado para a distribuição das enormes verbas de publicidade oficial que privilegia a grande mídia. Ignora-se, por exemplo, que há países na Europa onde leis contrárias à monopolização garantem recursos financeiros para a mídia alternativa e independente. Uma medida neste sentido, portanto, não seria sequer inédita. Por que não se aplica à comunicação social os mesmos critérios que já vem sendo adotados pelo Estado brasileiro em relação a outros setores onde se busca a correção de desequilíbrios históricos? É o que se faz, por exemplo, com as microempresas que gozam de benefícios fiscais; com as quotas étnicas e/ou sociais para acesso ao ensino superior; e com a agricultura familiar para a qual existe o crédito subsidiado.

Por que não se pode fazer o mesmo com a mídia alternativa em nome da democratização do setor e no espírito da Constituição de 1988?

Princípios básicos

O cerceamento da liberdade de expressão individual e o financiamento da mídia alternativa são questões gêmeas. Dizem respeito à pluralidade e à diversidade de informações e opiniões que circulam na sociedade – vale dizer, dizem respeito a princípios básicos da democracia representativa. É por isso que não se pode deixar de debatê-los.

* Venício A. de Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007).

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