A vontade de proteger crianças e adolescentes, inflada por notícias alarmistas, pode levar legisladores a fragilizar a liberdade de expressão
Por Marina Pita*
Quando algo ameaça crianças e adolescentes, a resposta da sociedade é e precisa ser rápida. Essa população, como mais vulnerável, precisa de proteção especial, inclusive na legislação. E, no entanto, vale redobrar a cautela para não responder impulsivamente quando o assunto é ameaça a crianças na web, especialmente em termos legislativos.
Em momentos de pânico, que nos afastam da razão, e na tentativa de protegê-los, somos levados a tomar decisões que volta e meia colidem com direitos fundamentais socialmente estabelecidos, conforme bem definiu Thiago Tavares, diretor presidente da Safernet Brasil e representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).
O caso Baleia Azul e a reação da sociedade – especialmente dos legisladores – é um desses exemplos importantes de serem analisados.
Primeiro: as pessoas de bem, nossos amigos e parentes, na maior boa intenção, replicam, sem checar, um alarme contra o jogo que levaria jovens e adolescentes ao suicídio. A vontade é proteger, o que move é o pânico.
Em seguida, há um legislador pronto para reagir, muitas vezes bem intencionado, mas sem conhecimento sobre o funcionamento da internet.
No caso do jogo Baleia Azul, o Projeto de Lei 6989/2017, do deputado Odorico Monteiro (PROS-CE), propõe alterar o Marco Civil da Internet (Lei 12.965) para exigir que provedores retirem do ar conteúdos que promovam lesão contra a própria pessoa, automutilação, exposição a situação de risco de vida ou tentativa de suicídio.
E esta proposta, que, como vamos mostrar, é muito problemática, ganhou um requerimento de urgência que está para ser aprovado. Há até um pedido de instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).
Assim, caminha-se na direção contrária da verdadeira urgência, que deveria ser em desconstruir o PL proposto.
Cabe lembrar que os provedores já podem retirar de suas plataformas conteúdos que considerem inadequados.
O que o Marco Civil da Internet faz é garantir que, em caso de divergência de análise – entre o que pensa uma empresa ou mesmo um cidadão –, a plataforma em questão possa ter a Justiça como mediadora para afirmar se deve derrubar o conteúdo.
Ou seja, o Marco Civil estabelece que os provedores não são obrigados a retirar determinado teor do ar em reação a um pedido. E isto é bom, porque as denúncias não são sempre bem intencionadas ou razoáveis. Portanto, cabe à Justiça definir quando uma plataforma é obrigada a fazê-lo ou não.
Isso gera lentidão na retirada de conteúdo possivelmente nocivo para crianças e jovens?
Não. As maiores plataformas têm retirado conteúdo inadequado do ar independente de decisões judiciais, quando tal conteúdo fere seus termos de uso. A Alphabet, empresa controladora do Google e do YouTube, por exemplo, mantém uma política de retirada de vídeo sempre que contenha estímulo à automutilação.
Isso acontece de várias formas, por análise algorítmica, que tem limitações (em termos de acerto e de capacidade de identificação), por ações de funcionários dedicados a isto e, inclusive, pela denúncia dos usuários.
A possibilidade da sociedade reclamar sobre conteúdos é fundamental em plataformas com um volume de conteúdo gigantesco e que cresce exponencialmente a cada dia. E isto está acontecendo.
Vale ponderar, porém, que as empresas sozinhas não conseguem responder a problemas que vão além de seus limites cibernéticos.
E, neste sentido, lembramos, como destacou o presidente do Conselho Federal de Psicologia, Rogerio Giannini, em audiência pública na Câmara na semana passada: os jovens estão sob grande pressão para serem bem-sucedidos e é vendida a ideia de que, caso se esforcem e empreendam, alcançarão tal objetivo.
No entanto, a sociedade brasileira hoje é marcada pela falta de oportunidades para ascensão profissional e social, especialmente quando se fala da juventude pobre e negra.
Enquanto a sociedade não responder coletivamente ao contexto cultural, político e socioeconômico que abre espaço para que práticas de automutilação ganhem adeptos, não podemos colocar mais responsabilidade sobre as plataformas de internet do que elas têm de fato.
Mas se a proposta de alteração do Marco Civil para retirada de conteúdo relacionado ao Baleia Azul é inócua em termos de proteção à infância, pode ser desastrosa em termos de liberdade de expressão e acesso à informação.
Sem a mediação da Justiça, pessoas mal-intencionadas podem relacionar conteúdos ao Baleia Azul para que ele saia do ar – uma prática que acontece com notificação de infração de direito autoral.
Um usuário reclama direitos autorais de determinado conteúdo com o fim de retirá-lo do ar, mesmo que não exista infração à Lei de Direitos Autorais, como é o caso de uso justo de conteúdo para crítica e análise.
Agora, a cadeia de reação da sociedade ao jogo Baleia Azul é exemplar do que Julian Assange, no livro Cypherpunks, de 2012, chamava de os infocavaleiros do apocalipse: as ameaças que nos colocam em situação de temor e pânico de modo a abrir espaço para legislações controversas, que não resolvem os problemas que se propõem, mas causam danos a direitos fundamentais como liberdade de expressão e acesso à informação.
Os infocavaleiros do apocalipse são a pedofilia (e demais ameaças à infância), o tráfico de drogas e o terrorismo. A cada vez que alguém usa um desses argumentos, em seguida há uma desenrolar já bastante conhecido: as tentativas de aprovação de leis restritivas dos direitos de quem não comete crime algum.
Aos defensores de direitos humanos fundamentais, recomendamos cautela ao reagir a qualquer medida que vise responder a estas ameaças online e uma resposta firme a tentativas de legislar por impulso ou por autopromoção.
Importante estarem atentos que na terça 16 ocorreu mais uma audiência pública sobre o tema, chamada pela Comissão de Seguridade Social e Família.
Notícia falsa gera uma reação real
Mas um dos fatos mais interessantes sobre o jogo Baleia Azul é que pesquisadores no mundo inteiro apontam que ele surgiu de uma notícia falsa.
No Brasil, o alerta foi feito pela Safernet.
O Baleia Azul, aponta Thiago Tavares, tornou-se conhecido no Brasil após uma reportagem da TV Record no dia 1º de abril, ironicamente, o Dia da Mentira. O diretor presidente da Safernet mostrou a explosão de 1150% nas buscas a respeito do “desafio da Baleia Azul” após a veiculação da reportagem e destacou: os jornalistas não apuraram adequadamente.
Não tentaram, eles mesmos, jogar o Baleia Azul.
Mas a existência do suposto jogo já havia sido desmentida por centros de pesquisas e ONGs pelo mundo, como a britânica UK Safer Net.
Não há registro apurado de suicídio envolvendo o Baleia Azul, na Rússia ou no Brasil, apesar de diversas especulações neste sentido.
A divulgação da existência de um suposto jogo que levava jovens ao assassinato, de forma sensacionalista e alarmista, teria servido sim de gatilho para um efeito de imitação: a mentira se fez verdade a partir de sua veiculação e alguns grupos de jovens em situação vulnerável passaram a se dedicar a fazer bullying online.
O tema é muito delicado. Pensando nisso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) editou um guia com recomendações para o tratamento do tema pela mídia, sugerindo maneiras de como os meios podem atuar na prevenção do suicídio.
Uma das recomendações refere-se justamente ao perigo da veiculação de imagens, trechos de conversas, cartas e outros conteúdos que possam apontar caminhos e formas de cometer suicídio para pessoas que estão vulneráveis.
Segundo a publicação, isso pode gerar um indesejável efeito em cadeia, ao invés de enfrentar o tabu, informar a população e ajudar a prevenir.
Crianças e jovens em situação de vulnerabilidade podem, de fato, ser influenciados pela incitação de práticas de suicídio, mas responder a este problema apontando a mudança nas regras da web é inócuo e problemático, conforme apontado.
A solução é educar – jovens e adultos – para a mídia (e não apenas para o uso de recursos digitais), com compromisso da educação pública neste sentido. Ainda, responder aos anseios de jovens que querem encontrar espaço para se desenvolver nos mais diversos campos da vida.
Eles precisam de mais oportunidade e menos bombardeio de consumo e pressão por sucesso.
*Marina Pita é jornalista e integrante do Conselho Diretor do Coletivo Intervozes