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A digitalização das ondas do rádio

No dia 7 de setembro de 1922, nas comemorações do centenário do aniversário da independência brasileira, os cariocas ouviram pela primeira vez, com certo espanto, o rádio. Foi a primeira vez que uma transmissão deste, então novo, veículo de comunicação foi feita na terra do cruzeiro do sul.   

O entusiasmo só não foi maior por que chiados em demasia atravessavam-se diante da voz empolada do presidente da República, Epitácio Pessoa, que discursava. Discurso à parte, coube mesmo ao pioneiro Edgar Roquette Pinto, em 1923, a inauguração da primeira estação de rádio do Brasil. Tratava-se de emissora Sociedade, do Rio de Janeiro.   

A partir de então, o rádio popularizou-se assustadoramente, tornando-se um dos mais capilares veículos de comunicação do país. Hoje, para se instalar uma emissora de baixa potência, bastam R$ 5 mil em equipamentos (Mídia com democracia, 2006). Mas a evolução do meio não parou aí. Assim como a televisão, o rádio também irá metamorfosear-se com a era digital, ganhando em qualidade e em possibilidades de transmissão.  

Custo alto   

Com o advento do rádio digital, as principais novidades serão: a agregação de componentes de interatividade, a possibilidade da transmissão de mais de um programa simultaneamente (revista Fonte, 2005), a melhoria significativa na qualidade do som, concedendo às estações AM a qualidade de som equivalente às estações FM atuais, e às FM, som com qualidade de CD (RABÊLO), o fim das interferências na transmissão das emissoras AM e a convergência de mídias – o que possibilitará a transmissão de textos e imagens, visualizados por meio de uma tela no aparelho de rádio digital (MASCARENHAS). Há também a possibilidade da ampliação do número de emissoras.   

Como se vê, as mudanças prometem reavivar o entusiasmo em torno do rádio. Todavia, para se ter acesso a tais melhorias não basta esperar a conversão do sistema analógico (atual) para o digital. O ouvinte terá que arcar com a compra de um aparelho de som compatível com a tecnologia digital. Caso contrário, não conseguirá observar diferença alguma. E, pelo menos por enquanto, seu preço não deve ser nada democrático. Embora sem valores consolidados, é possível estimá-los entre R$ 700 e R$ 1 000 – para os aparelhos fixos – e entre R$ 550 e R$ 700 para aparelhos automotivos (RABÊLO).   

As emissoras de rádio também pagarão caro, literalmente, pela conversão da tecnologia. A adaptação ao sistema digital vai requerer a compra de equipamentos, tais como novos transmissores e adaptadores de transmissores analógicos (revista Fonte, 2005). Diante do custo elevado, o governo acena com a possibilidade de desenvolver ações visando ao barateamento do processo. 

Testes   

Os custos aos radiodifusores e ouvintes não são às únicas barreiras para que os brasileiros possam sair escutando o tão propalado rádio digital. Ainda há a escolha do padrão a ser adotado no país. Existem quatro consórcios internacionais distintos sedentos por abiscoitar a preferência nacional. São eles: o Iboc (In-Band On-Channel), oriundo dos Estados Unidos; o DAB Eureka (Digital Audio Broadcasting) e o DRM, (Digital Radio Mondiale), ambos europeus, e, finalmente, o ISDB-TSB (Integrated Services Digital Broadcasting – Terrestrial), do Japão.   

Embora estejamos aparentemente bem servidos de opções, somente dois desses padrões foram aprovados pela União Internacional de Telecomunicações, UIT: o Iboc e o DRM (ZORNITTA e JUNIA). É justamente entre os dois que o debate em torno da escolha do padrão a ser adotado no Brasil, vem se intensificando.   

Diante dessa dupla possibilidade, o melhor a se fazer, deduz-se, é testar. E, de fato, é o que vem sendo feito. Desde setembro de 2005, a Agência Nacional de Telecomunicações, Anatel, passou a conceder autorizações para interessados em pôr à prova o novo sistema (Mídia com democracia, 2006), por meio de concessões provisórias de seis meses, com possibilidade de prorrogação. Os t

estes devem se restringir às regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre e Curitiba (RAMOS).   Oficialmente, o propósito dos testes contempla a avaliação do desempenho do sistema no tocante à qualidade do áudio, à área de cobertura e ao vigor diante de ruídos e interferências, dentre outros pontos declarados (Anatel).   

O padrão Iboc
  

 Embora estejamos apenas na fase de testes, já é claramente perceptível a preferência do setor privado da radiodifusão nacional pelo padrão norte-americano, o Iboc. As rádios Excelsior FM; Bandeirantes, de São Paulo; e Gaúcha, de Porto Alegre, são exemplos de emissoras que estão realizando testes com o padrão Iboc. Em contrapartida, apenas a rádio da Faculdade de Tecnologia da UnB, de Brasília, e a Radiobrás, ambas públicas, estão conduzindo testes com o padrão DRM. As demais opções seguem ignoradas, inclusive a DAB Eureka, cujo ônus para viabilização é considerado demasiado (Anatel).  

O padrão Iboc é gerido pela empresa norte-americana Ibiquity, dona de seus direitos. Há algo em torno de 40 patentes internacionais assegurando a sua propriedade. Possui, inclusive, um notável preço para licenciamento: US$ 5 mil, o que seguramente assusta os radiodifusores de estações comunitárias ou de situação financeira semelhante.
   

A transição de tecnologia, sob a bandeira do padrão norte-americano, é bastante cara. Em seu país de origem, Estados Unidos, há um fundo não-governamental auxiliando as rádios públicas em sua "metamorfose" digital (Mídia com democracia, 2006). A despeito do orçamento, alinhado aos Estados Unidos, Canadá e México optaram pela sua escolha (revista Fonte, 2005).   

Sua vantagem mais divulgada reside na possibilidade da transição para o sistema digital ser efetuada sem exigir a troca da freqüência das emissoras. Da mesma forma, o padrão Iboc permite que a transmissão da emissora seja feita para aparelhos digitais e analógicos, concebendo a coexistência de ambos. Em se tratando do Brasil, onde provavelmente grande parte da população não terá acesso imediato à nova tecnologia e, conseqüentemente, permanecerá servindo-se do rádio analógico, tal atributo se mostra relevante.   

Em sua aberta defesa, a Associação Brasileira de Rádios e Televisão, Abert, tem incentivado experiências com o padrão norte-americano. Todavia, o consultor técnico da associação, Djalma Ferreira, reconhece que o Iboc possui notáveis falhas no que diz respeito à transmissão de ondas médias. Falhas estas acentuadas no período noturno. Ainda assim, Djalma Ferreira afirma ser uma "alternativa indesejável" aguardar conclusões sobre o padrão DRM.   

Outro ponto considerado negativo por muitos é que, entre os padrões apresentados, o Iboc é o que mais apresenta barreiras à criação de novas emissoras. Este elemento poderia ser um entrave à democratização da comunicação via rádio.   

O padrão DRM   

O padrão DRM, embora apontado como europeu, é fruto de um extenso consórcio envolvendo instituições européias famosas, como a francesa Radio France Internacionale, a inglesa BBC, a alemã Deutsche Welle e de outros continentes, como a NHK, do Japão. Também constam emissoras de países fora do eixo das nações desenvolvidas, como Tunísia e Equador (CABRAL, 2006).   

O fato de não contemplar a faixa FM, tem se mostrado "o calcanhar de Aquiles" do padrão DRM. Embora estejam sendo realizados estudos no sentido de incluir as freqüências FM no bojo das transmissões do padrão, atualmente o DRM permite somente o uso das faixas de onda média, ondas tropicais e ondas curtas.   

Movimentos sociais
   

Enquanto as grandes organizações de comunicação social brasileiras realizam seus testes com os padrões que elas próprias escolheram, os movimentos sociais tentam ser ouvidos. A maior queixa refere-se ao perigo do interesse econômico se sobrepor aos interesses da sociedade, altamente dependente de veículos de massa, como o rádio.   

Ao conceder a livre licença para que os próprios radiodifusores façam sua escolha e empreendam suas avaliações – sem um debate que inclua sequer os usuários do rádio –, corre-se o risco de manter a ordem vigente com a tecnologia analógica: poucos e grandes conglomerados de comunicação, servindo aos interesses de algumas famílias e políticos. É o que se chama de manutenção do status quo da radiodifusão brasileira.   

Josué Franco Lopes, representante da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária no Estado do Rio Grande do Sul, ABRAÇO-RS, declarou-se surpreso com a falta de debates em torno da digitalização do rádio. Para ele, no caso da radiodifusão, a ausência de democracia no processo foi ainda mais acentuada que nos debates envolvendo a TV digital (Mídia com democracia, 2006).   

Tribuna de debates   

À margem do processo, e sem condições de seguir os passos das grandes emissoras – que já estão testando o padrão Iboc –, as rádios comunitárias temem a falta de recursos para se adaptarem ao caro padrão norte-americano, exaltado pelo lobby dos meios de comunicação de massa privados.   

Em audiência pública na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2006, representantes dos movimentos sociais reclamaram da condução da digitalização do rádio no país. Na ocasião foram feitas reivindicações, dentre as quais a realização de um debate claro e democrático por parte do governo, visando ao desenvolvimento da rádio digital no Brasil (ZORNITTA e JUNIA).  Ironicamente, o rádio, que não raro realizou um verdadeiro papel de tribuna de debates em momentos chaves da história do Brasil, atualmente encontra-se praticamente mudo quando a questão é debater, ou mesmo informar, sobre questões relativas à sua tão esperada digitalização.   

Referências bibliográficas: 

ANATEL. Disponível aqui. Acessado em 11 de abril 2007. 

CABRAL, Adilson. DRM é a nova onda da rádio digital. Informativo eletrônico Sete Pontos, n. 32, fevereiro de 2006. Disponível aqui. Acessado em 12 de abril de 2007.  ____. Convergência no século da mobilidade: a história vem de longe, a revolução ainda está no começo. Revista Fonte, Belo Horizonte: Prodemge, N. 03, Pág. 14 – 38, Dezembro de 2005.  

FERREIRA, Djalma. O caminho do rádio digital. Disponível aqui. Acessado em 12 de abril de 2007. 

MASCARENHAS, André. País inicia testes de rádio digital: a partir de hoje, Anatel autoriza rádios a experimentar a nova tecnologia, no padrão "In Band On Channel", dos EUA. Disponível aqui. Acessado em 11 de abril de 2007.  

RABÊLO, Paulo. O rádio digital já começou no Brasil. Sabia? Disponível aqui. Acessado em 11 de abril de 2007. ____. Rádio digital: decisão antes da hora? Revista Mídia com Democracia.

FNDC, n 03, Pág. 16 – 18, Setembro de 2006 

RAMOS, Luiz Carlos. 83 anos no ar: o rádio renovado com força digital. Disponível aqui. Acessado em 11 de abril de 2007. 

ZORNITTA, Bruno e JUNIA, Raquel. Rádio digital: democratização ou "cala-boca tecnológico". Disponível aqui.. Acessado em 11 de abril de 2007.

 

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Nasce em Boston o jornal de todos

Começa nesta semana, em Boston (EUA), uma experiência que vale a pena acompanhar: o jornal BostonNow estreou na internet nesta segunda-feira (16/4) anunciando para o dia seguinte sua estréia nas ruas, sem custo para os leitores. A novidade: ele foi construído em apenas dois meses, a partir de um convite geral à adesão de centenas de blogueiros da região.  

O aspecto inovador da iniciativa é que o conteúdo será uma mistura das colaborações de blogueiros amadores ou internautas comuns com o trabalho de jornalistas profissionais. Todas as manhãs, às 9h55, 60 pessoas serão admitidas numa teleconferência que irá decidir a pauta do dia e o futuro imediato da publicação. O número é limitado pela tecnologia, mas pode ser ampliado com o tempo, avisa um dos fundadores, o editor-chefe John Wilpers.  

A versão impressa do BostonNow será distribuida gratuitamente e conterá uma consolidação do conteúdo mais relevante que tiver sido veiculado na versão eletrônica, evidentemente sem os vídeos e áudios. Trata-se de um jornal comunitário coordenado, dirigido e administrado por jornalistas profissionais, com amadores participando de um conselho editorial informal, mas decisor.  

Direitos de autor 

A comunidade online sobre a qual o jornal pretende se consolidar será autocontrolada. Um sistema de comunicação direta com os editores é colocado à disposição dos leitores, para que informem sobre conteúdos obscenos ou inapropriados. Os editores não pretendem editar o material tido como inadequado, pois eles consideram que a integridade do material postado representa a voz do blogueiro e precisa ser conhecido integralmente pelos leitores. Nos casos extremos, textos, imagens ou locuções considerados inadequados serão apagados da edição.  ^

A edição impressa, que estréia com 150 mil exemplares, conterá sempre uma seleção das contribuições de blogueiros e outros cidadãos comuns, integrada ao material produzido por jornalistas profissionais. Os anunciantes podem comprar espaço apenas na edição online, apenas na impressa ou em ambas, combinando diversos formatos, como anúncios estáticos, spots de áudio e vídeos. O projeto prevê a predominância de anúncios do setor imobiliário.  

Fotógrafos e cinegrafistas são convidados a expor seus trabalhos, inicialmente postados em sites específicos, com link para o endereço do BostonNow, e futuramente será criada a condição para que esse conteúdo seja postado diretamente no site do jornal. Os direitos dos autores serão preservados, embora seus conteúdos sejam mantidos nos arquivos do jornal.  

Modelo subversivo 

Ao postar o material, os autores escolhem a seção onde gostariam de vê-lo publicado, o que facilita o trabalho dos editores que cuidam da edição em papel. A seleção para publicação na versão impressa será feita pelos jornalistas editores do BostonNow, seguindo critérios como originalidade, relevância, relação com temas da comunidade ou com os interesses locais, textos sem erro, fotos e vídeos com alta qualidade digital.  

A webmaster Regina O´Brien, co-fundadora do jornal, explica que a idéia é oferecer um ambiente integrador, em vez de competir com os blogueiros – que atuam às centenas na região onde se concentram muitos intelectuais, estudantes e profissionais que têm muito a partilhar com a comunidade.  

Com o tempo, o BostonNow pretende oferecer alguma forma de remuneração aos autores de conteúdos que forem selecionados para o jornal impresso. Para isso, está prevista a revenda de conteúdos para a mídia de outras regiões dos Estados Unidos e do exterior. Os editores contam com a capilaridade que o jornal deverá apresentar, na medida em que vem arregimentando um grande número de blogueiros bem informados em variados setores das comunidades acadêmicas, de negócios e sociais da cidade.  

Segundo os editores John Wilpers e Regina O´Brien, a opção pela transparência é absoluta. Todas as pessoas que participarem da reunião de pauta, a cada manhã, ficam sabendo o que pensam os editores sobre cada tema proposto para a cobertura diária, e podem influenciar na linha editorial do jornal online e na versão impressa.  


Esse é um modelo que subverte completamente a prática geral da imprensa tradicional, baseada numa rígida estrutura de mando que se inicia e sempre desemboca, no topo, na voz do dono.

 

 

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A forma gloriosa da notícia

Não é raro perguntar-se, entre os observadores que avaliam as novas tecnologias e sistemas informativos usados nas redações dos jornais, que mudança estaria reservada para a velha forma de relato do acontecimento denominada "notícia".

Como bem se sabe há mais de 200 anos, essa forma, razoavelmente simples, guarda a "essência" da atividade jornalística porque, como uma espécie de retrato "três por quatro" do acontecimento, ela acena com a bandeira de uma pequena verdade real-histórica, garantida pela presunção técnica da objetividade. De fato, em sua prática profissional e mesmo em seus eventuais posicionamentos doutrinários, os jornalistas costumam apoiar-se na presunção de que expressam a verdade do cotidiano ou da vida social imediata.

"Verdade" é então entendida do modo mais familiar ao senso comum, que é a noção da correspondência do enunciado aos fatos do mundo: "S é verdadeiro se S corresponde a um fato". Assim, a notícia "o homem mordeu cachorro" é verdadeira se um homem efetivamente mordeu um cachorro. Os lógicos e os filósofos da linguagem não se cansam de demonstrar que a noção correspondentista não funciona em muitos casos.

Aprofundamento da informação

Mas a partir deles próprios é possível salvar para o jornalismo uma definição de verdade, desde que vinculada ao humano: "[as teorias desses lógicos] têm o mérito de relacionar o conceito de verdade aos interesses humanos, como linguagem, crença, pensamento e ação intencional, e essas conexões é que tornam a verdade a chave de como a mente apreende o mundo", diz o scholar norte-americano Donald Davidson, uma verdadeira celebridade entre os pesquisadores da filosofia analítica.

A credibilidade junto ao público leitor comum sustenta o conhecimento jornalístico, não com a garantia da verdade lógica, e sim com a caução da veracidade, entendida como um apego ou uma inclinação para a verdade consensualmente estabelecida em torno do fato. O aprofundamento das verdades costuma ser atribuído de preferência ao conhecimento sistemático, que é o tipo de saber produzido pela ciência.

O conhecimento jornalístico não é sistemático, claro. Mas um conhecimento dessa ordem, mesmo sem conexões lógicas de conceitos e expressões, pode comportar graus diferentes de aprofundamento de um fato, a exemplo do jornalismo. É que são vários os níveis de significação possíveis de um fato: a escolha do nível superficial ou do profundo depende do sistema de produção de conhecimento a ele pertinente.

Ainda na primeira metade do século passado, o jornalista e sociólogo norte-americano Robert Ezra Park, membro da Escola de Chicago, divisava dois tipos de conhecimento na notícia, a saber, acquaintance with ("familiaridade com") e knowledge about ("saber sobre"), distinguindo um do outro pelo maior grau de profundidade: o segundo é mais sistemático ou analítico, enquanto o primeiro é não-sistemático, fragmentário e comunitariamente partilhado em maior extensão.

Pois bem, hoje são vários os que se aventuram a fazer prognósticos sobre o futuro da forma noticiosa, apostando na idéia do "saber sobre", isto é, no aprofundamento da informação rumo à complexidade do fato.

Verdade consensual

Não raro, porém, a simplicidade da notícia ainda oferece hoje boas lições de jornalismo. Um exemplo recente é o noticiário dos grandes jornais cariocas e paulistas sobre a recepção calorosa dada por políticos de todos os partidos ao senador Fernando Collor em seu retorno triunfal às hostes parlamentares. Com exceção do senador Pedro Simon, que reavivou na tribuna do Senado a memória das circunstâncias da cassação de Collor, todo o resto pautou-se pela "lavagem" do passado. Lava-se dinheiro, por que não História?

A atitude da imprensa pareceu-nos correta. Registrou o discurso do ex-presidente com todas suas denegações dos fatos e suas alegações de inocência. Deu conta igualmente de todas as efusões ao redor do recém-chegado ao Senado. E, de sua parte, em vez de opiniões ou comentários, limitou-se a editar uma retranca em que rememorava a verdade publicamente consensual dos fatos passados. Sem aprofundamento sistemático, sem opiniões, a forma noticiosa que reapresentava o histórico do senador foi bastante, em sua simplicidade "cortante", para fazer pensar sobre a realidade penosa da política.

Um ponto glorioso para a velha objetividade da notícia.

 

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TV Pública: em nome da utopia da excelência

Reproduzido de O Globo, 9/4/2007; título original "Erro de origem"; intertítulo do Observatório da Imprensa.  

A polêmica gerada pela decisão do governo de criar uma rede nacional de televisão "pública" já teve o mérito de abrir os olhos da sociedade para a questão semântica, mas tem a possibilidade de ir bem além. Distinguir o que seja estatal e o que seja público é básico para que se procure entender o que o governo está pretendendo. 

Já o ideário da rede, apresentado pelo presidente Lula durante a posse de novos ministros na quinta-feira (29/3), não é animador. Diz o presidente: "O que nós queremos é dar oportunidade para que um jovem que queira aprender português possa ter aula de português às 9h da manhã, às 11h. Que as pessoas possam assistir a uma peça de teatro pela televisão a uma hora da tarde, ao meio-dia. Que a gente possa ensinar espanhol, ler inglês, que a gente possa ensinar matemática." Como programador de televisão, Lula é visivelmente um bom metalúrgico. O que há de verdadeiramente notável na questão, entretanto, não é o estabelecimento das diferenças entre uma TV estatal e uma TV pública. 

Televisão estatal sabe-se o que é: um simples meio de difusão das ações do governo. A confusão aparece quando se conceitua o que seja televisão pública. 

Televisão pública emana da sociedade e deve servir a ela. Mas não é uma escola, assim como não é qualquer outro serviço público essencial, como hospital ou meio de transporte. Televisão pública é, antes de tudo, televisão. E tem obrigação de se comportar como tal. A boa televisão pública não é a que substitui professores ou reproduz concertos. 

É a que revela as potencialidades e a grandeza do veículo em níveis que não podem ser explorados pela TV comercial. É a que se volta para a riqueza da expressão televisiva. A que dialoga com a diversidade da produção audiovisual, manifesta pela produção independente. A que não reproduz pobremente os modelos existentes, mas cultiva linguagens e formatos que estejam à frente do seu tempo. 

Desatar os nós 
A boa televisão pública é a que lança o olhar sobre o novo. Sobre a experimentação, a invenção, o laboratório de idéias. Televisão pública de verdade é a que garante a sua liberdade de analisar os fatos e vigiar as instituições, porque é isso o que ela é: pública. 

O presidente sustenta que televisão pública "é para apresentar a informação como ela é, sem pintar de cor-de-rosa. Mas sem pichar". 

É nessa sutileza que mora o perigo. A televisão pública deixa de ser pública se estiver sujeita a esse prosaico tipo de restrição. 

Uma televisão pública que cumpra de fato o seu compromisso com a sociedade é perfeitamente possível. Ela pode ser criada a partir do que já existe, e nem é necessário o lamento pelas utopias, como a do modelo da BBC, onde a televisão é financiada por uma taxa cobrada ao usuário, ou da PBS, onde o público e as empresas fazem contribuições espontâneas. 

O Brasil tem uma audiência televisiva fiel. Ela merece uma televisão pública que seja capaz de complementar o que a televisão privada lhe tem a oferecer. Uma televisão que possa de fato figurar entre as mais criativas e instigantes do planeta. 

O governo pode montar quantas televisões estatais quiser (tem duas na Radiobrás e controla indiretamente muitas outras). Mas já que começou a falar de televisão pública, poderia fazer história se aproveitasse a terminologia que está erroneamente usando e desenvolvesse o projeto de uma grande televisão pública. 

Teria que desatar os vários nós criados ao longo dos anos pelo apetite político e mostrar desprendimento para criar o modelo e lhe garantir uma gestão independente. 

Mas estaria resgatando a utopia de uma televisão não-comercial verdadeiramente voltada para a sociedade.

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A sociedade sem direito à informação

A criação do escritório brasileiro da organização não-governamental de direitos humanos Article 19, ocorrida em 30 de março, em São Paulo, produz oportunidade interessante para uma reflexão da nossa imprensa e da sociedade sobre a montanha dos documentos e estatísticas oficiais que ficam longe do alcance da opinião pública e nos quais nem mesmo jornalistas têm facilidade para colocar os olhos. Os registros sobre a guerrilha do Araguaia e outros episódios do regime militar são apenas uma parte dessa história.  

A Article 19, criada em Londres em 1987 e com atuação em mais de 30 países, dedica-se a promover e proteger a liberdade de expressão e a liberdade dos meios de comunicação, com ênfase especial na luta pelo acesso à informação oficial e privada de interesse público. O nome da ONG é uma referência ao Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU:  

"Todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão; esse direito inclui a liberdade de ter opiniões sem sofrer interferência e de procurar receber e divulgar informações e idéias por qualquer meio de comunicação, sem limite de fronteiras".

Casos de desinteligência 
O encontro que celebrou o início de sua atuação no Brasil, marcado pela divulgação de estudos sobre o estado da informação pública, revela que nossa jovem democracia tem crescido com sérias deficiências no que se refere a esse direito fundamental. Desde documentos importantes sobre fatos essenciais para o conhecimento da nossa história recente, até detalhes corriqueiros de riscos ambientais em projetos de obras de infra-estrutura, omite-se de tudo sob a proteção da ignorância a respeito das leis.  

O sistema penitenciário e o setor de segurança pública são verdadeiras caixas-pretas em praticamente todos os estados brasileiros. Quase tudo o que se publica sobre esses temas precisa ser revisado, o que pode estar produzindo um amontoado de nulidades estatísticas e, a partir daí, uma corrente de equívocos que certamente irão desaguar em políticas públicas inadequadas.  

Até mesmo estudiosos vinculados a centros de excelência em pesquisa, como o Instituto de Estudos Avançados da USP, têm dificuldades para obter informação de qualidade. No caso dos estudos sobre a violência, por exemplo, utiliza-se com freqüência exagerada a técnica de projeções, dada a inexistência ou impossibilidade de se levantar dados em comunidades onde os órgãos públicos estão ausentes – ou onde simplesmente os funcionários responsáveis pela coleta de dados não dão a menor importância à acuidade dos registros.  

Quanto por cento dos estupros ou dos furtos acabam alimentando as estatísticas oficiais? No Rio de Janeiro, os policiais militares responsáveis por cabines de atendimento a turistas desestimulam a prestação de queixas, quando não há morte ou danos físicos às vítimas, porque não querem que seus postos fiquem visados pelos superiores hierárquicos em função do número elevado de ocorrências. A rigor, ninguém sabe quantas pessoas são furtadas ou assaltadas no Rio, ou nos bairros menos assistidos de São Paulo.  

Da mesma forma, muitos casos de desinteligência, geralmente atendidos pelo Centro de Operações da Polícia Militar (Copom) no estado de São Paulo, são eventualmente "resolvidos" por cabos ou sargentos, sem que isso resulte em documentação oficial. Há estudos indicando que certa proporção desses conflitos pode evoluir para casos mais graves, como agressões domésticas ou até assassinatos. Um cidadão desempregado, que se envolve num conflito familiar, poderia ter sido encaminhado a tratamento contra depressão antes que seu quadro evoluísse para aqueles casos graves que acabam na TV. 

Brios da imprensa 
Mesmo quando existem, nem sempre os dados estão disponíveis para consulta. Embora haja uma legislação garantindo o acesso a informações de interesse público, a burocracia e a má vontade de servidores costumam se apresentar como barreiras intransponíveis. No caso de documentos classificados como sigilosos, a situação se tornou ainda mais complicada a partir de 2002, com o decreto 4.553, assinado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso quatro dias antes de deixar o governo, permitindo que alguns documentos sejam classificados como indisponíveis por até 50 anos, renováveis indefinidamente – o que, na prática, criou o conceito do sigilo eterno.  

"São considerados originariamente sigilosos, e serão como tal classificados, dados ou informações cujo conhecimento irrestrito ou divulgação possa acarretar qualquer risco à segurança da sociedade e do Estado, bem como aqueles necessários ao resguardo da inviolabilidade da intimidade da vida privada, da honra e da imagem das pessoas", diz o parágrafo 2º do decreto. Os dados são classificados como "reservado", "confidencial", "secreto" e – este o caso a discutir – "ultra-secreto". Estes documentos poderão ficar sob o manto do sigilo para sempre.  

O decreto 4.553 define, na prática, que o Estado brasileiro considera a sociedade brasileira indefinidamente imatura para conhecer certos detalhes de sua história. Ele se encaixa perfeitamente no modelo que impera em praticamente todas as instâncias do poder público, o que explica, por exemplo, como um cidadão é obrigado a pagar as contas de serviços essenciais sem ter o direito de saber o que exatamente está pagando.  Do guichê da prefeitura de uma cidade interiorana aos ultra-secretos arquivos do Estado, a ausência do direito à informação tem no decreto 4.553/2002 um verdadeiro monumento.  

Em nome da real liberdade de informação, não seria hora de a imprensa brasileira ter um pouquinho de brio e exigir a eliminação ou adequação desse estrume autoritário de uma vez por todas? 

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