TV Pública: em nome da utopia da excelência

Reproduzido de O Globo, 9/4/2007; título original "Erro de origem"; intertítulo do Observatório da Imprensa.  

A polêmica gerada pela decisão do governo de criar uma rede nacional de televisão "pública" já teve o mérito de abrir os olhos da sociedade para a questão semântica, mas tem a possibilidade de ir bem além. Distinguir o que seja estatal e o que seja público é básico para que se procure entender o que o governo está pretendendo. 

Já o ideário da rede, apresentado pelo presidente Lula durante a posse de novos ministros na quinta-feira (29/3), não é animador. Diz o presidente: "O que nós queremos é dar oportunidade para que um jovem que queira aprender português possa ter aula de português às 9h da manhã, às 11h. Que as pessoas possam assistir a uma peça de teatro pela televisão a uma hora da tarde, ao meio-dia. Que a gente possa ensinar espanhol, ler inglês, que a gente possa ensinar matemática." Como programador de televisão, Lula é visivelmente um bom metalúrgico. O que há de verdadeiramente notável na questão, entretanto, não é o estabelecimento das diferenças entre uma TV estatal e uma TV pública. 

Televisão estatal sabe-se o que é: um simples meio de difusão das ações do governo. A confusão aparece quando se conceitua o que seja televisão pública. 

Televisão pública emana da sociedade e deve servir a ela. Mas não é uma escola, assim como não é qualquer outro serviço público essencial, como hospital ou meio de transporte. Televisão pública é, antes de tudo, televisão. E tem obrigação de se comportar como tal. A boa televisão pública não é a que substitui professores ou reproduz concertos. 

É a que revela as potencialidades e a grandeza do veículo em níveis que não podem ser explorados pela TV comercial. É a que se volta para a riqueza da expressão televisiva. A que dialoga com a diversidade da produção audiovisual, manifesta pela produção independente. A que não reproduz pobremente os modelos existentes, mas cultiva linguagens e formatos que estejam à frente do seu tempo. 

Desatar os nós 
A boa televisão pública é a que lança o olhar sobre o novo. Sobre a experimentação, a invenção, o laboratório de idéias. Televisão pública de verdade é a que garante a sua liberdade de analisar os fatos e vigiar as instituições, porque é isso o que ela é: pública. 

O presidente sustenta que televisão pública "é para apresentar a informação como ela é, sem pintar de cor-de-rosa. Mas sem pichar". 

É nessa sutileza que mora o perigo. A televisão pública deixa de ser pública se estiver sujeita a esse prosaico tipo de restrição. 

Uma televisão pública que cumpra de fato o seu compromisso com a sociedade é perfeitamente possível. Ela pode ser criada a partir do que já existe, e nem é necessário o lamento pelas utopias, como a do modelo da BBC, onde a televisão é financiada por uma taxa cobrada ao usuário, ou da PBS, onde o público e as empresas fazem contribuições espontâneas. 

O Brasil tem uma audiência televisiva fiel. Ela merece uma televisão pública que seja capaz de complementar o que a televisão privada lhe tem a oferecer. Uma televisão que possa de fato figurar entre as mais criativas e instigantes do planeta. 

O governo pode montar quantas televisões estatais quiser (tem duas na Radiobrás e controla indiretamente muitas outras). Mas já que começou a falar de televisão pública, poderia fazer história se aproveitasse a terminologia que está erroneamente usando e desenvolvesse o projeto de uma grande televisão pública. 

Teria que desatar os vários nós criados ao longo dos anos pelo apetite político e mostrar desprendimento para criar o modelo e lhe garantir uma gestão independente. 

Mas estaria resgatando a utopia de uma televisão não-comercial verdadeiramente voltada para a sociedade.

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