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Um novo modelo do princípio de complementaridade na radiodifusão

O princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão (privado, público e estatal), contido no art. 223 da Constituição, exige um novo modelo de disciplina dos serviços de televisão para além do paradigma clássico, voltado unicamente para o serviço público de televisão por radiodifusão, associado à reserva da atividade em favor do Estado.

O novo modelo, que ora se defende, considera que os serviços de televisão devem ser classificados como: (i) serviço público privativo do Estado (sistema de radiodifusão estatal), (ii) serviço público não privativo (sistema de radiodifusão público) e (iii) atividade econômica em sentido estrito (sistema de radiodifusão privado).

A Constituição impõe a complementaridade entre os setores de televisão por radiodifusão privado, público e estatal, o que, evidentemente, implica harmonia e colaboração entre as estruturas de comunicação social. Em outras palavras, garante-se o equilíbrio apropriado entre os campos de comunicação social com funções diferenciadas, porém, complementares, considerando as diferenças de fundamentos e evitando-se, assim, distorções arbitrárias no processo de comunicação social.

Correção de oportunidades

Trata-se de uma manifestação particular do princípio do pluralismo no campo da comunicação social por meio da radiodifusão em prol da estruturação policêntrica do sistema de radiodifusão, isto é, em favor da diversidade das fontes de informação e da multiplicidade de conteúdos audiovisuais para a sociedade brasileira. Vale dizer, a interpretação da referida norma constitucional deve ser feita com base no princípio do pluralismo nos seus âmbitos quantitativo (pluralidade de estruturas organizacionais comunicativas) e qualitativo (pluralidade de conteúdo audiovisual diverso). Assim deve ser porque tal norma tem por função a oferta equilibrada de programas de televisão nos setores privado, público e estatal, cabendo ao Estado a adoção de normas e procedimentos para cumprir tal tarefa, que logo a seguir serão expostos.

A organização dos sistemas de televisão por radiodifusão há de ser feita pelo Estado, no exercício de sua função regulatória (art. 174), conforme os objetivos da regulação. Há, aqui, uma forte conexão entre o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão e o conceito de regulação. A idéia de complementaridade representa a negação de uma relação de hierarquia entre os sistemas de radiodifusão; e, por conseqüência, requer a funcionalidade integrada dentro do sistema de comunicação social.

O princípio da complementaridade exige, ainda, a fixação de critérios de facilitação do acesso prioritário às freqüências do espaço eletromagnético pelo setor público e pelo setor estatal. Isto porque, em face da hegemonia da radiodifusão privada em nosso país, há o dever de que as freqüências disponíveis para uso de canais de televisão sejam, preferencialmente, outorgadas aos setores estatal e público (aqueles responsáveis pela prestação de serviços públicos privativos e não privativos do Estado), pois em relação aos mesmos existem maiores exigências em favor dos interesses públicos e das obrigações constitucionais. Trata-se de uma medida de correção das oportunidades comunicativas no interior da comunicação social, sendo que a própria noção de regulação é que ampara tal medida de planejamento administrativo quanto à gestão do espaço radioelétrico, voltada para o equilíbrio entre os sistemas.

Educação e cultura

Enfim, a atribuição prioritária de freqüências justifica-se em razão da prestação do serviço público. Este, é importante destacar, não se limita à correção das falhas estruturais e (ou) conjunturais do sistema de radiodifusão privado (mercado de televisão). A sua função consiste em atuar mesmo quando o sistema comercial, hipoteticamente, funciona bem. Vale dizer, a existência do regime de serviço público de televisão não está atrelada às falhas do mercado (um paradigma liberal); ao contrário, sua causa originária encontra-se em razões que o transcendem, alcançando bens não-econômicos que necessitam de difusão perante o público em geral, daí a exigência do desempenho da função estatal de distribuição dos bens, por exemplo, culturais.

Os serviços públicos consistem em importante mecanismo de garantia dos direitos fundamentais. Alerte-se, contudo, que não se trata do único meio de satisfação dos mesmos. Nesse sentido, o serviço público de televisão é uma das formas de realização dos direitos à liberdade de expressão, liberdade artística, informação (inclusive informação jornalística), culturais, à educação e à comunicação social, entre outros.

No sistema de radiodifusão estatal, há maior espaço para a realização do direito dos cidadãos à informação de caráter institucional e, ao mesmo tempo, de cumprimento do dever do Estado em termos de comunicação institucional. Isto implica a possibilidade de criação e manutenção de canais de televisão para atendimento da referida obrigação.

Já o sistema de radiodifusão público possibilita a concretização dos direitos à educação e à cultura por intermédio das televisões educativas e, especialmente no caso das televisões comunitárias, o exercício direto pelos cidadãos das liberdades de expressão e de comunicação social. Em outras palavras, o sistema público é o âmbito, por excelência, para a realização dos direitos sociais relacionados à educação e à cultura.

Pluralidade de fontes de informação

Por sua vez, no sistema privado há maior autonomia privada das emissoras de televisão quanto à execução dos aludidos direitos em função de sua liberdade de radiodifusão e, conseqüentemente, sua liberdade de programação. Os princípios constitucionais catalogados no art. 221 da CF, relacionados à produção e à programação das emissoras de rádio e televisão, consistem em manifestação especial dos direitos fundamentais à liberdade de expressão artística, à educação, à cultura e à informação jornalística, livre iniciativa e dignidade da pessoa humana, o que será visto mais à frente em item específico.

O eixo de estruturação dos três sistemas de radiodifusão consiste na liberdade de comunicação. Esta manifesta-se, de modo especial, no campo da comunicação social (arts. 220 a 224, da CF), sem, no entanto se confundir com a liberdade de comunicação pessoal ou de âmbito coletivo (art. 5.o, IX, CF). Com efeito, é sintomático que o princípio da complementaridade esteja contemplado no capítulo constitucional dedicado à Comunicação Social. Portanto, em virtude disso, os "sistemas de comunicação de massa" atuam como mecanismos de realização das liberdades comunicativas asseguradas aos cidadãos e à sociedade. Tais liberdades servem tanto à autodeterminação individual quanto à autodeterminação democrática do povo brasileiro. Daí a imprescindibilidade da pluralidade das fontes de informação em um país proclamado como Estado Democrático de Direito em garantia da livre formação da opinião pública.

Concessões de rádio e TV: o que precisa mudar e por que

O recente lançamento, por entidades da sociedade civil, da "Campanha por Democracia e Transparência nas Concessões de Rádio e TV", sob o mote "Concessões de rádio e TV: quem manda é você", renova as esperanças de que a cidadania finalmente desperte para uma velha questão de interesse público que historicamente tem sido tratada e decidida por um reduzido grupo de atores em benefício próprio.

O conjunto de reivindicações da campanha, divulgado publicamente e encaminhado às autoridades do governo, é o seguinte:

"(a) ações imediatas contra as irregularidades no uso das concessões, tais como excesso de publicidade, outorgas vencidas e emissoras nas mãos de deputados e senadores;

(b) fim da renovação automática: por critérios transparentes e democráticos para renovação, com base no que estabelece a Constituição;

(c) instalação de uma comissão de acompanhamento das renovações, com participação efetiva da sociedade civil organizada; e

(d) convocação de uma Conferência Nacional de Comunicação ampla e democrática, para a construção de políticas públicas e de um novo marco regulatório para as comunicações."

Razões para o debate

Há razões de sobra para se promover o debate sobre as concessões de rádio e TV no Brasil. Aí vão algumas:

1. Existem normas legais diferentes que regem a TV aberta, as operadoras de TV a cabo, as operadoras de TV por MMDS e por satélite. É inadiável a elaboração de um marco regulatório que uniformize essas regras.

2. As emissoras de rádio e TV aberta são concessões de um serviço público outorgadas pela União – com a participação do Congresso Nacional – por prazo determinado e sob determinadas condições. O prazo de concessão é de 10 anos para emissoras de rádio e de 15 para as de TV. Esse prazo dilatado é um dos fatores que acaba por transformar as concessões, na prática, em propriedade dos concessionários.

3. Ao contrário de outras concessões de serviço público, as regras para a outorga e renovação das concessões de rádio e TV aberta privilegiam os concessionários. A não-renovação de uma concessão precisa ser votada no Congresso Nacional por dois quintos dos seus membros, em votação nominal, e o cancelamento durante a vigência do contrato só pode ocorrer com decisão judicial. Essas condições criam uma assimetria em relação aos demais contratos de prestação de serviços públicos que precisa ser corrigida.

4. Apesar de a Constituição de 1988 definir claramente os princípios que devem orientar a produção e a programação das emissoras de rádio e TV aberta, eles não são utilizados como critério para o cancelamento e/ou a renovação das concessões. Nem é utilizada como critério a determinação constitucional de que os meios de comunicação não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio. Também não é critério o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. Além disso, a norma legal reza que se a concessionária requerer a renovação e não houver decisão dos órgãos competentes no prazo de 120 dias, a renovação é automaticamente deferida.

5. O vínculo histórico de deputados federais e senadores com as concessões de rádio e TV cria uma situação absurda na qual o membro de um dos poderes concedentes (o Congresso Nacional) se confunde com o próprio concessionário. Além disso, a controvérsia legal em torno da legalidade ou não de político no exercício do mandato eletivo ser concessionário de radiodifusão esconde a desigualdade na disputa política entre aquele que usa o rádio e a TV em benefício próprio e aquele que não tem acesso – ou só tem acesso parcial – a esses meios de comunicação.

6. A lei proíbe a duplicidade de outorgas. Como, no entanto, o cadastro dos concessionários do serviço público de rádio e TV não é de acesso público, na maioria das vezes não há como verificar se existe ou não duplicidade. Aliás, não se pode sequer saber quem são os concessionários.

7. Não há fiscalização adequada sobre as transferências (vendas) de concessões de rádio e TV para terceiros.

Boicote da mídia

Essas são apenas algumas das razões que justificam a necessidade e a urgência do debate sobre as concessões de rádio e TV no Brasil.

Há, todavia, um obstáculo formidável a ser vencido na mobilização da opinião pública e promoção desse debate democrático: a instituição que tem e exerce o maior poder de definir a agenda pública de discussão – a própria mídia – não se interessa pelo debate e, mais do que isso, boicota a cobertura jornalística das iniciativas e eventos que tentam promovê-lo, como foi o caso agora do lançamento da "Campanha por Democracia e Transparência nas Concessões de Rádio e TV".

A democracia brasileira será a grande vencedora quando o debate sobre as concessões de rádio e TV conseguir romper o bloqueio da grande mídia e alcançar a maioria da população brasileira.

A liberdade de imprensa entendida como um dever

Segundo de uma série de quatro artigos sob o título geral "A imprensa e o dever da liberdade – A responsabilidade social do jornalismo em nossos dias"

Não há razoabilidade, como já ficou demonstrado, em supor que a liberdade de imprensa deva se condicionar à inexistência de erros. Ela não é uma recompensa que se outorgue aos veículos que acertam ou um privilégio que se interdite aos que erram; é, sim, premissa inegociável para a prática do jornalismo, seja ele bom ou ruim. A ninguém no governo pode caber a tarefa (ou a veleidade) de melhorar (ou de pretender melhorar) o nível do jornalismo. Isso não faz sentido.

Desde que o governo, qualquer que seja ele, não atrapalhe, o jornalismo, qualquer que seja ele, pode se dedicar a se aprimorar – e ele só melhora quando cumpre o seu dever de ser livre. Dever: esta é a palavra. Fala-se muito no dever da verdade, e com razão. Fala-se na fidelidade com que se devem reportar os fatos e o debate das idéias, também com razão. Mas a busca da verdade factual começa pela busca da verdade essencial do jornalismo, cujo nome é liberdade. Esta é a verdade interior que o anima e, sem cultivar sua verdade interior, ele seria incapaz de divisar a verdade que lhe é exterior. O profissional do jornalismo não pode admitir – nem a sociedade pode admitir que ele admita – a hipótese de que o exercício do jornalismo não seja livre, afirmativamente livre.

Ser livre é um imenso desafio, o maior de todos. A liberdade não é apenas letra. Ela só existe se for exercida de fato, por meio da visão crítica, do rigor, da objetividade, na obstinação por tornar públicas as informações que o poder preferiria ocultar. A liberdade floresce mais no conflito que no congraçamento, tanto que alguns a confundem com a mera falta de educação – o que também é uma forma de rebaixá-la. De um modo ou de outro, por um caminho ou por outro, ela precisa ser explícita, ostensiva mesmo, pois disso depende a confiabilidade, a credibilidade e a autoridade da imprensa. Se não reluzir na liberdade quente, a imprensa morre.

Cânones da ética

Quanto à responsabilidade, esta não deve ser entendida como um contrapeso da liberdade. Ao contrário, a liberdade é a maior e a primeira das responsabilidades do jornalismo. O resto vem depois: justiça, equilíbrio, ponderação, elegância etc. As chamadas virtudes do ofício existem para sustentar seu bem maior, a liberdade. Ela é a virtude-mãe, diante da qual as demais são acessórias.


Nem mesmo o apartidarismo, um cânone da boa prática de imprensa, é para o jornalista um imperativo tão alto quanto o de ser livre. O apartidarismo é uma exigência? Sem dúvida, é uma exigência – mas apenas porque reforça o primado da independência editorial, que está na base da qualidade da informação. Isso significa que uma revista ou um jornal têm todo o direito de apoiar abertamente uma causa partidária, desde que não o faça com dinheiro fornecido pelos cofres públicos – nesse caso, teríamos o erário financiando uma legenda em detrimento de outras, o que configuraria uma forma de uso da máquina pública para fins partidários ou pessoais.

Essa distinção não é menor. Basta ver que uma emissora de TV ou de rádio, sendo concessão pública, sofre – e deve sofrer – restrições que a impedem de promover editorialmente uma candidatura a cargo público, por exemplo, pois os serviços públicos não devem se prestar à promoção partidária, o que também caracterizaria uma forma de apropriação privada de serviços públicos. Quanto a um veículo impresso ou eletrônico que não seja concessionário da administração pública, este pode, dentro da sua esfera de liberdade, lançar apelos para que seus leitores se filiem a uma campanha ou mesmo que votem num determinado candidato.

Claro que, no plano ético, não se deve burlar o pacto de comunicação com o público. Para o seu próprio bem, não é recomendável que uma publicação dissimule o seu conteúdo, fingindo que está veiculando uma coisa – informação objetiva – para entregar outra – proselitismo. Agindo assim, além de ameaçar a si mesma com o risco do descrédito, ela macularia as bases da instituição da imprensa. Fora isso, no plano da legalidade ou da normalidade institucional, um veículo impresso pode muito bem exercer a sua liberdade abraçando uma bandeira que o identifique com um determinado partido, num determinado momento.

Assumirá o risco: se o seu gesto deixar a impressão de que renunciou à sua própria liberdade para se converter num apêndice de uma agremiação ideológica, a perda de credibilidade virá. Esse veículo terá jogado no lixo a razão pela qual um dia mereceu o respeito do público, mesmo daquele público que, eventualmente, concorde com as causas que ele abraçou. De resto, o apoio a uma causa de um partido, num momento delimitado, não significa partidarismo, mas, é bom ter claro, até mesmo a prática ou a aparência de prática do partidarismo, que contraria um dos cânones da ética de imprensa, só é um problema para o jornalismo porque implica a renúncia da liberdade – esse sim, o valor maior.

Direito e dever

Em resumo, a liberdade não funciona como redoma, um manto protetor que acolhe maternalmente os profissionais, livrando-os de cobranças, de julgamentos e condenações. Liberdade não é impunidade, mas um fator que impele o jornalista a se expor a julgamentos e punições. É uma bandeira que a imprensa tem o dever de empunhar, por mais que isso lhe custe – e custa. Quando negocia algumas de suas franjas, ainda que mínimas, ela deixa de ser imprensa e se converte na sua pior negação, traindo suas origens passadas e turvando o seu futuro.

Para o jornalista, exercer a liberdade é um dever porque, para o cidadão, ela é um direito. Para que este possa contar com o respeito cotidiano ao seu direito à informação, o jornalista não pode abrir mão do dever da liberdade.

Concessões de radiodifusão: antes de democratizar, moralizar

"É um assunto importante demais para ser decidido entre quatro paredes", disse o ministro Franklin Martins (da Comunicação Social) na sexta-feira (28/9). Referia-se à necessidade de um amplo debate sobre o atual sistema de concessões de radiodifusão, reconhecidamente desatualizado, precário e injusto. 

O vencimento, na sexta-feira (5/10), das concessões recebidas por entidades que controlam as redes Globo, Record, Bandeirantes, Gazeta e Cultura é uma oportunidade que não deve ser desperdiçada. O ministro tem razão, é preciso desentocar a questão das concessões de canais de rádio e TV, mas quem amarra o debate e impede que se transforme em mudança tem nome e endereço: o Congresso Nacional, Praça dos Três Poderes, Brasília, DF.

Pela Constituição cabe ao Congresso decidir sobre as concessões, depois dos pareceres técnicos do Executivo. O Congresso não é uma entidade abstrata, é integrado por partidos, e os partidos têm programas, compromissos, interesses e representantes. O vetor capaz de empurrar o Congresso na direção de mudanças são as maiorias – na Mesa Diretora das duas Casas, nas comissões técnicas e nos plenários.

O debate público desejado pelo ministro Franklin Martins ainda não aconteceu simplesmente porque o Congresso e as maiorias que o controlam são beneficiários de um sistema viciado de privilégios que ninguém tem a coragem de denunciar e combater.

Forças da resistência

A democratização das concessões de radiodifusão passa antes por uma aberração que não é propriamente política, é moral: o parlamentar que autoriza concessões públicas não pode ser ao mesmo tempo um concessionário. Legislar em causa própria é quebra de decoro.

Calcula-se que metade dos congressistas é concessionária direta ou indireta do sistema de radiodifusão. A dificuldade em quantificar a anomalia e coibi-la decorre justamente do abuso de laranjas, formais ou informais.

A mácula das concessões nunca foi escondida, não está confinada entre quatro paredes: o programa Observatório da Imprensa na TV já dedicou ao assunto quatro edições completas, o material publicado por este portal em seus 11 anos de existência daria para completar um tratado sobre desvios de conduta parlamentar [ver remissões abaixo]. A Folha de S.Paulo já produziu impressionantes levantamentos sobre as irregularidades no sistema de concessões. Nada aconteceu, nada mudou.

O Instituto Projor (mantenedor do projeto Observatório da Imprensa) entregou em 2005 à Procuradoria Geral da República (PGR) um minucioso cruzamento de dados comprovando que mesmo integrantes da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados (CCTCI), encarregada de verificar as concessões, são concessionários de radiodifusão. A PGR recebeu a contribuição, agradeceu, examinou o estudo ao longo de dois anos e… arquivou. Promete usá-lo oportunamente. Esqueceu que ao Ministério Público também cabe iniciar ações em nome da sociedade.

Este nova omissão do Poder Público na questão das concessões dá a dimensão das forças que resistem às mudanças. Este é um lodaçal que ninguém tem a coragem de sanear.

Imperativo político

Não são as redes de TV que se agarram ao status quo, são os parlamentares-concessionários. "Franciscanos" ou assumidos coronéis eletrônicos, nenhum congressista vai abdicar de uma vantagem que lhe rende tanta "sustentabilidade" (leia-se votos, poder e dinheiro).

Quando o Conselho de Comunicação Social, órgão auxiliar do Congresso, então presidido pelo jurista José Paulo Cavalcanti Filho, ganhou alguma desenvoltura para colocar em pauta a questão da concentração da mídia [ver aqui a transcrição dos debates no CCS], que logo desaguaria nas concessões de radiodifusão, o manda-chuva do Senado, José Sarney, conseguiu desarticular o Conselho e colocou na presidência o seu parceiro especializado, Arnaldo Niskier.

Acreditar que o PT ou algumas de suas alas estão efetivamente interessados em mexer no sistema de concessões equivale a acreditar na possibilidade da Câmara Federal aprovar uma reforma política. Mais fácil será intensificar a cruzada pela "democratização dos meios de comunicação" que jamais sairá do papel, mas terá grande serventia para manter a mídia na defensiva.

A mudança no sistema das concessões é um imperativo político e moral. Para ser bem sucedida, deve ser encarada sob estes dois aspectos. Avanços democráticos não podem acontecer em ambientes marcados pela bandalheira.

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Tribunal Superior Eleitoral: o poder da mídia em julgamento

O plenário do Tribunal Superior Eleitoral julgou improcedente, na terça-feira (18/9), o pedido de cassação do mandato da senadora Rosalba Ciarlini (DEM-RN), que havia sido acusada por seu principal adversário nas eleições de 2006, o empresário Fernando Bezerra (PTB-RN), ex-ministro e ex-líder do governo no Senado, de abuso do poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação.

A senadora elegeu-se com 645.869 votos, equivalentes a 44,184% da votação. O empresário obteve 634.738 votos, ou 43,423%. A diferença foi de 11.131 votos, equivalente a 0,76% do total.

O julgamento do TSE, na verdade, decidiu que a vitória de Rosalba Ciarlini não podia ser atribuída às 64 entrevistas concedidas por ela, entre janeiro e junho de 2006 (média de uma a cada 2,34 dias) na emissora TV Tropical, retransmissora da Rede Record, que alcança cerca de 80% do eleitorado potiguar.

Os quatro ministros que votaram contra o provimento do recurso alegaram, dentre outras razões, que não é possível medir a influência da veiculação das entrevistas no resultado das eleições e que elas foram concedidas antes do registro da candidatura.

Horário gratuito resolve?

Houve, no entanto, dois votos a favor da cassação – e vale registrar o do ministro Cezar Peluso. Ele se valeu de, pelo menos, dois argumentos fundados nos estudos de mídia. Primeiro, colocou em dúvida o critério de noticiabilidade da TV Tropical ao afirmar que as qualidades da candidata – três vezes prefeita de Mossoró, segunda maior cidade do estado – "não explicam ou justificam a exposição sistemática", isto é, 64 vezes em cinco meses, na mesma emissora. Segundo, reconheceu a capacidade da TV de influir na formação da opinião pública. Disse ele: "Seria preciso negar a força extraordinária do meio de comunicação mais poderoso, que é a televisão, para se dizer que não tivesse a potencialidade de alterar seis mil votos". E concluiu: "Houve o uso indevido e estudado dos meios de comunicação".

Independente de qual tenha sido a utilização da mídia pelos dois candidatos a senador no Rio Grande do Norte em 2006, a decisão do TSE e os votos de seus ministros oferecem uma interessante oportunidade de se refletir sobre duas questões que, aparentemente, estarão cada vez mais sendo objeto de decisão nas cortes de Justiça: a legalidade de políticos no exercício de mandato eletivo controlarem concessões do serviço público de radiodifusão e a influência da mídia no processo eleitoral.

Seria democrática a disputa entre um candidato que não tem ou tem pouco acesso à mídia e outro que conta com o apoio maciço da mídia controlada por ele próprio ou por seus correligionários? O horário gratuito de propaganda eleitoral, garantido por lei, seria suficiente para corrigir essa assimetria, sobretudo em eleições para cargos majoritários, como os de senador, governador e presidente da República?

Normas legais e reflexão crítica

Apesar do acórdão ainda não ter sido publicado, é de se supor que, no caso em tela, os ministros do TSE tenham levado em conta outros fatos relativos à mídia no Rio Grande do Norte que poderiam também ter influído no resultado da disputa pela vaga no Senado Federal.

Vale lembrar, por exemplo, que a TV Tropical – onde a ainda não-candidata Rosalba Ciarlini deu as 64 entrevistas – faz parte da rede Tropical de Comunicação, composta não só pela TV Tropical Canal 08, Natal, mas também pela FM Tropical, 103.9, Natal, a CBN Natal, 1.190 AM, a Rádio Salinas, 1.510 AM, Macau, a Rádio A Voz do Seridó, 1.100 AM, Caicó, a Rádio Cultura, 1.560 AM, Pau dos Ferros, a Rádio Curimataú,1.530 AM, Nova Cruz, a Rádio Libertadora, 1.430 AM, Mossoró e a Rádio Ouro Branco, 1.360 AM, Currais Novos.

Um dos sócios da Rede Tropical, conforme dados do SIACCO da Anatel, é o senador José Agripino Maia (DEM-RN), líder do DEM no Senado Federal e correligionário da senadora.

Outro correligionário da senadora, o senador Garibaldi Alves (DEM-RN), segundo estudo do Epcom, controla direta ou indiretamente sete emissoras de rádio FM e AM no estado; as duas emissoras de televisão afiliadas às redes nacionais Globo e SBT em Natal e ainda a operadora local de TV a cabo da NET.

Em outra ocasião lamentei aqui, data venia, o incrível descolamento existente entre as normas legais e o pensamento jurídico vis-à-vis a reflexão crítica contemporânea sobre a mídia na academia e nos observatórios da imprensa, tanto no Brasil como no exterior.

Excluídos do processo

Não há dúvida de que a questão permanece atual e há sinais, embora ainda tímidos, de que alguns ministros começam a levar em conta décadas de pesquisa no campo da mídia.

Por outro lado, as rápidas transformações tecnológicas não indicam que diminuirá a centralidade que a mídia ocupa na vida contemporânea e nem que haverá mudanças de curto prazo no histórico vínculo entre ela e as oligarquias políticas regionais no Brasil.

A crescente consciência em relação ao direito à comunicação faz crer que, cada vez mais, a Justiça será chamada a decidir sobre o poder de influência da mídia. Isso vale tanto para as disputas eleitorais entre membros das oligarquias, como para disputas entre elas e cidadãos excluídos do acesso democrático ao serviço público de comunicações.