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Lei de Imprensa: jornalismo capivara e o velório das ossadas

Mais uma vez, a imprensa em geral, e os repórteres em particular, provaram aquela teoria do jornalista Elio Gaspari: o estatuto do repórter-capivara. Pegue-se uma capivara. Meta-lhe pescoço abaixo um colar-pingente, na ponta do qual vê-se um gravador pendente. A capivara percorre, digamos, o Senado, adejando de gabinete em gabinete, oito horas por dia. Volta à redação. Traz uma pletora multitudinária de vozes de senadores, com informações fatiadas. O editor publica as notinhas. Algumas são singulares furos de reportagem. A capivara, como se tivesse ingerido noz-vômica, cumpriu seu papel: vomitou o que ouviu. Ao pé da letra. No caso da decisão do ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, de suspender alguns dispositivos da Lei de Imprensa, não foi diferente.

Os repórteres-capivaras, boa parte dos quais agônicos – jamais leram Constituição, Código Penal e Código Civil – transcreveram o que ouviram sem opor resistência ao que anotavam. Quem perdeu foi o público. E vamos aos fatos.

Todos festejam a decisão, fogos bonitos, tudo bem. Para o grande público não haveria notícia melhor para se divulgar. Mas, aqui entre nós, precisamos saber que o buraco é mais embaixo. A Lei de Imprensa faz tempo que deixou de ser um risco real. As milhares de condenações registrados depois de 1988 (antes não havia nenhuma) e os muitos milhões em indenizações que sangram a imprensa mensalmente não resultam de ferimentos da tal lei da ditadura. O ferro que nos fere vem dos códigos civil e penal, com poderes dados diretamente pela Constituição…

Indenizações eram tarifadas

A Lei de Imprensa caiu em desuso na maior parte dos artigos. Tem sido usada só na parte que protege jornalistas, exceto em uns poucos dispositivos. Não se tem conhecimento de jornalista preso por causa da Lei de Imprensa. Esse diploma é cruel na parte criminal, mas generoso na parte civil (prescrição e decadência curtíssimas, teto baixo para indenização).

A partir de 1988, com a constitucionalização do dano moral e da inviolabilidade da imagem, as leis regulamentadoras deixaram de ser a tal lei especial para ser o Código Civil e o Penal. Com o Código Civil, o volume de processos explodiu. Por quê? Porque não tem mais decadência (prazo para entrar com ação) e porque a prescrição é de três anos na área civil e de dois anos na área penal.

A Lei de Imprensa só é aplicada para o "mal" no artigo 75 (que obriga a publicação da sentença) e uma coisa aqui outra ali.

Com a Lei de Imprensa, as indenizações eram tarifadas: teto máximo de 200 salários mínimos! Nada além. Os jornais já estão pagando ou fazendo acordos na casa do milhão com o Código Civil. A decadência era de três meses. Eu quero a Lei de Imprensa (da ditadura) de volta!

Reparação por dano moral

A decisão do ministro foi tomada na quinta-feira (21/2) no julgamento de uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pelo deputado Miro Teixeira (PDT-RJ). Até o julgamento de mérito pelo plenário do STF, estão suspensas, por exemplo, as penas de prisão para jornalistas por calúnia, injúria ou difamação. O problema é que isso só vale para ações baseadas unicamente na Lei de Imprensa. Haverá alguma?

A maioria das regras da Lei de Imprensa já está em desuso porque os juízes têm entendido que elas não foram recepcionadas pela Constituição Federal e ferem o direito de ampla defesa e o devido processo legal. Vejamos os últimos estertores legais: as ações de indenização por danos morais que seguidores da Igreja Universal do Reino de Deus ajuizaram contra os jornais Folha de S.Paulo, Extra e O Globo, do Rio de Janeiro, e A Tarde, de Salvador, por exemplo, têm como base o Código Civil e a Constituição Federal. Apenas citam a Lei de Imprensa. Citadas a lei, o código e a Constituição, caberá ao juiz de cada caso decidir qual é a norma regente.

Entre apenas cerca de 10% de processos que tramitam pelo rito da Lei de Imprensa, está o pedido de reparação por dano moral que o apresentador Paulo Henrique Amorim ajuizou contra o colunista Diogo Mainardi. O colunista escreveu que Amorim usa seus espaços na imprensa para defender interesses privados e fazer propaganda do governo. Neste caso, já há sentença a favor de Mainardi. Mas como a ação tramitou conforme a Lei de Imprensa, o processo pode ser suspenso.

Cesura prévia

Perguntado se é possível que a lei caia totalmente, o ministro Britto confessou que não estudou tudo a respeito do assunto:

"Tenho de fazer uma análise mais acurada, mais detida. E se chegar à conclusão de que nenhum dispositivo escapa, sem dúvida proporei isso. Mas ainda não fiz essa análise, não dissequei toda a Lei de Imprensa."

Quanto a outros artigos que escaparam por enquanto, Britto diz que esses também "não resistirão à análise detida, à luz da atual Constituição", que o ministro descreve como…

"…meritória superlativamente pelo modo como tratou a imprensa. A liberdade de expressão, a liberdade de comunicação, o acesso à informação, o sigilo da fonte, a proibição de censura, tudo isso é um punhado de comandos constitucionais do mais alto valor. A imprensa é para ser azeitada, estimulada, desembaraçada. Sem isso não há democracia. Dois dos mais visíveis, vistosos pilares da democracia brasileira hoje são a informação em plenitude e de máxima qualidade e, em segundo, a visibilidade do poder, o poder desnudo".

Levantamento feito pelo publisher do site Consultor Jurídico, Márcio Chaer, foi aproveitado lá fora: semana passada a ONG britânica Article 19 enviou um relatório ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas chamando a atenção para seis áreas de preocupação no que diz respeito ao estado da liberdade de expressão no Brasil. O Brasil é o país do mundo em que mais se processam jornalistas. Segundo o relatório da Article 19…

"…existe atualmente um processo para cada jornalista trabalhando para os cinco maiores grupos de comunicação no Brasil. Muitos desses casos são relacionados a investigações de corrupção e outras questões de interesse público, envolvendo funcionários públicos. Há também um número muito alto de liminares proibindo a publicação de informações, o que caracteriza censura prévia – uma restrição extrema à liberdade de expressão que é completamente vedada por determinadas regras internacionais de direitos humanos".

Uma morte que já aconteceu

Segundo o levantamento, até abril de 2007, os cinco maiores grupos do setor de comunicação do Brasil empregavam 3.327 jornalistas e respondiam a 3.133 processos por dano moral. Além disso, enquanto o salário-base da categoria é de R$ 2.205,00, sem aumento real nos quatro últimos anos, o valor médio das penas pecuniárias aplicadas pelo Judiciário quadruplicou no mesmo período, passando de R$ 20 mil, em 2003 para R$ 80 mil, em 2007.

Quem mais trabalhou para agravar as indenizações da imprensa em casos de dano moral foi o deputado, então constituinte, Roberto Cardoso Alves, o falecido "Robertão". Ele não cansava de perguntar nos corredores do Congresso: "Como pode um cidadão que ofende o outro diante de três pessoas ter punição mais dura que outro que pratica a ofensa diante de 30 milhões de espectadores?". Robertão tramava em público contra a Lei de Imprensa porque ela protegia jornais e jornalistas, "em excesso", na sua opinião.

A transposição de estatutos – da lei para os códigos – foi feita. O diploma especial, nos estertores, assim como Fidel Castro, anuncia agora uma morte que já aconteceu faz tempo. A imprensa festeja. Resta entender o porquê.

Cargo de Ombudsman perde importância nos EUA

Jeffrey Dvorkin foi ombudsman da National Public Radio (NPR), rádio pública americana, de 2000 a 2006 e presidente da Organization of News Ombudsmen (ONO) em 2004 e 2005, além de fazer parte do conselho executivo da organização por cinco anos. É do alto desta experiência que ele lamenta, em artigo na Salon [12/2/08], o declínio do cargo nos EUA.

O papel do ombudsman – ou editor público – é ser os olhos e a voz dos leitores, ou ouvintes, ou telespectadores. O ombudsman ouve as preocupações do público, monitora o conteúdo produzido pelo veículo de comunicação, aponta os erros dos profissionais de imprensa e levanta debates preciosos para o bom funcionamento do jornalismo.

A importância do cargo cresce na América Latina, nas ex-nações soviéticas, na Índia e em partes do Oriente Médio. Nestes lugares, o ombudsman é visto como um "aspecto essencial para uma mídia independente em uma democracia em pleno funcionamento", diz Dvorkin. Nos EUA, entretanto, o posto parece correr perigo de extinção.

Há algumas semanas, o jornal americano Baltimore Sun anunciou que o cargo, ocupado por Paul Moore por quase quatro anos, seria abolido. Moore foi transferido para uma posição administrativa. O Sun alega que os leitores terão inúmeras oportunidades para expressar suas opiniões e interagir com o jornal – um blog será criado especialmente para isso. Dvorkin diz ter suas dúvidas quanto ao sucesso de ferramentas impessoais para este propósito.

Contato direto

Para ele, o público vê no ombudsman um contato direto e confiável com o veículo de comunicação. "Eu aprendi o valor de atender ao meu próprio telefone e a responder pessoalmente aos e-mails o mais rápido possível. Os ouvintes (e eu tive contato com mais de 750 mil deles) estavam ansiosos para interagir com uma pessoa de carne e osso. Eles queriam alguém que respondesse suas reclamações; queriam mais que uma resposta corporativa padrão", conta.

O Ombuds Blog, blog de uma organização que representa ombudsmans de outras áreas, questionou recentemente: "estão os ombudsmans da imprensa em declínio?". Nos EUA, aparentemente sim. Segundo o blog, o número de organizações de notícias americanas que contam com o cargo diminuiu de 65 para 40 nos últimos cinco anos.

Ainda que haja experiências bem sucedidas com ombudsmans em grandes veículos, como nos jornalões New York Times e Washington Post, por exemplo, há muitas companhias de comunicação que ainda relutam em manter um profissional deste tipo. Dvorkin nota que há organizações que, em meio à crise financeira que atinge a indústria jornalística americana, consideram um luxo manter o cargo na redação e dizem não ter dinheiro para tanto. Há também editores que se mostram hostis ao posto, como se o ombudsman pudesse, de alguma forma, diminuir sua autoridade. Também com freqüência, editores e publishers alegam que não adotam o cargo por orientação do departamento jurídico da empresa, pois podem ser prejudicados em processos legais.

Dvorkin refuta todas as explicações acima. Um estudo conduzido pelo jornal britânico Guardian revelou que os custos com processos diminuem – em até 30% ao ano – quando há um ombudsman na equipe. "Esta economia seria suficiente para custear o cargo do ombudsman", brinca. Além disso, pesquisas mostram que manter um ombudsman aumenta a credibilidade e o respeito da comunidade pelo veículo de comunicação.

Ouvir o público

Dvorkin lembra de sua própria experiência para defender a importância do cargo. "Ser ombudsman era um trabalho de sete dias por semana. Eu checava meus e-mails de casa nos fins de semana e nas férias. Como experiência jornalística, era sempre importante, interessante e intensa. Ocupar o cargo de ombudsman da NPR talvez tenha sido a melhor experiência jornalística da minha carreira. E eu sei de muitos ouvintes que apreciavam o fato de a rádio assumir o risco de criar e manter este posto, que ocasionalmente e intencionalmente fazia seus jornalistas se irritarem".

O ex-ombudsman diz acreditar que o cargo esteja realmente em perigo nos EUA. Desta vez, entretanto, a ameaça vem da própria indústria. "Quem poderá – e quem irá – argumentar com as organizações de notícias que os ombudsmans são, mais do que nunca, necessários? O público entende por que eles são necessários. Mas nestes tempos conturbados, quem está ouvindo as preocupações do público?".

A televisão que não ousa dizer o nome

Televisão pública ou televisão estatal? Qual a diferença entre elas? Existe alguma distinção significativa? A emissora que o governo federal está implantando é mesmo pública ou é uma estatal dissimulada? E as emissoras já instaladas em todo o Brasil, são emissoras de interesse e uso público ou são ferramentas de marketing governamental? Enfim, do que estamos exatamente falando, quando falamos em TV pública e em TV estatal?

Faz tempo que o país precisa de uma resposta mais clara para essa diferença. A rigor, desde 1988, quando a promulgação da "Constituição Cidadã" instituiu um modelo tríplice para a televisão brasileira – ao aludir, no artigo 223, ao "princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal". Como o artigo nunca foi regulamentado nesse aspecto, segue o país sem saber quais seriam precisamente, definidos em termos legais, os três sistemas apontados; e sem saber, muito menos, o que se entende pela complementaridade entre eles. E é assim que inúmeros equívocos e problemas acontecem, como esses que envolvem no momento o governador do Paraná e a TV Educativa local.

É de conhecimento geral que o governador Roberto Requião mantém uma relação tempestuosa com a mídia privada do Paraná. Seja pelo estilo agressivo e personalista do mandatário, seja porque ele cortou totalmente os polpudos gastos de publicidade do estado (que teriam sido de 1,5 bilhão de reais no governo Jaime Lerner), o fato é que os dois bicudos não se beijam. Como não encontra nos jornais, rádios e TVs comerciais o espaço que desejaria para divulgar suas ações de governo e debater suas idéias políticas, Requião decidiu utilizar a TV Educativa. Criou o programa Escola de Governo, onde é a atração máxima, e interfere sem hesitar na linha editorial da emissora.

Por meio da TV Educativa, o governador paranaense revida ou faz críticas a seus adversários políticos. Quando pôs em sua linha de mira o Ministério Público e o Judiciário estaduais, denunciando neles o que considera privilégios, o caldo entornou. Foi proibido de usar a emissora educativa e sujeito a multa pesada, em caso de desobediência. Revidou mandando pôr no ar a sua imagem com o áudio cortado e o letreiro "censurado". Proibido novamente, agora de repetir o estratagema, e com a TVE obrigada a inserir mensagem de desagravo a promotores e juízes, Requião foi adiante: tirou a programação do ar, inserindo apenas a mensagem obrigatória, para enfatizar a suposta censura a que o estavam submetendo.

Sociedade representada

Não é o caso de analisar aqui o problema específico de Roberto Requião com a mídia e os poderes judiciais do Paraná, tema que já foi tratado com competência por outros colegas neste Observatório. Mas há que se ressaltar, no episódio, a absoluta transparência do governador no uso político da televisão educativa paranaense. Ele não tem a menor dúvida de que a TVE é uma ferramenta de governo e não vê qualquer problema em afirmar o seu direito de utilizá-la, quando julgar conveniente. "É essa a finalidade da TV Educativa do Paraná?", pergunta-lhe o repórter Fausto Macedo, do jornal O Estado de S.Paulo. "É uma televisão pública, é a televisão do estado do Paraná", responde Requião. "Ela funciona na formação da opinião."

Aí está, límpida e clara, expressa objetivamente num problema político grave de um estado brasileiro importante, a confusão conceitual entre televisão estatal e televisão pública. O que o governador Requião entende por televisão pública seria, mal e mal, uma televisão estatal – supondo que, numa estação dessas, é aceitável a comunicação política do governante, e não apenas a comunicação institucional de sua gestão. Mas, com toda a certeza, a forma como o governo Requião relaciona-se com a TVE-PR não faz dela uma TV pública, nem favorece que ela se organize como tal.

Em linhas grossas, a distinção entre os dois tipos de TV é clara. A TV estatal seria aquela diretamente financiada e gerida por organismos de Estado, da administração direta, enquanto a TV pública seria bem mais complexa. Teria financiamento tanto do Estado (recursos orçamentários) quanto do mercado (na forma de patrocínio e apoio institucional), ou ainda da própria sociedade (por intermédio de doações, mecanismos de captação direta de recursos junto aos telespectadores e fundos públicos não-geridos pelo governo – algo que inexiste ainda no Brasil). A diferença se estenderia também à gestão. A TV pública estaria submetida, necessariamente, a um conselho de representantes da sociedade, que teria autonomia total para orientar a linha editorial e destituir dirigentes, caso não a cumprissem.

Discussão interditada

O problema é que, na prática, essa diferenciação não funciona. A televisão pública, entre nós, ainda é apenas um rótulo, ou no máximo um projeto. É um rótulo para todos aqueles que julgam insuficiente o conceito de televisão educativa, o único que está tipificado em lei para distinguir a televisão não-comercial. Como acreditam que a simples idéia de educação pela TV aborrece o público, não poucos operadores desse campo passaram a utilizar o termo "televisão pública", mais palatável e "vendável". Outros, por sua vez, encaram o conceito como uma meta, um projeto político-cultural de transformar a TV educativa existente, quase toda estatal, em efetivo organismo sob controle da sociedade, livre das ingerências políticas dos governantes.

É assim que o termo TV pública serve a todos – especialistas, políticos, mídia, universidade e, cada vez mais, ao próprio cidadão comum – sem significar nada preciso para ninguém. O governo federal propõe a unificação de sua estrutura de televisão e transformação dela em TV pública, mas sob a égide de uma nova empresa estatal, a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). A oposição e a mídia, juntas e fechadas nessa questão, atacam o projeto por ver nele a formação de um braço governamental de propaganda e preferem nomear a recém-criada TV Brasil de "TV Lula".

Especialistas e a universidade gastam tinta e saliva para tentar aclarar os termos do debate, mas não logram o mínimo sucesso. E o cidadão segue absolutamente perdido em meio ao tiroteio, sem saber o que, de fato, está acontecendo e que bendita televisão estão lhe propondo.

Grave nessa história é que a medida provisória que institui a EBC e a TV Brasil será examinada pelo Congresso nas próximas semanas, sem que a balbúrdia conceitual esteja aclarada. As contingências da luta política impedem que o debate se faça, até porque, preciso ou impreciso, o discurso das duas partes em torno do assunto já está montado, a opinião pública já vem sendo submetida a ele, as posições (pró ou contra) vão se consolidando e não interessa mudar nada agora. Da mesma forma, a elevada temperatura política do Paraná neste momento impede que os contendores se dediquem a discutir qual o verdadeiro caráter, atual e futuro, da TVE – se é emissora pública de interesse coletivo ou se é estatal de interesse governamental.

Nada, nada, nada

A superação desse dilema – estatal ou pública – para o estabelecimento do que a Constituição propugna – estatal e pública, e também privada – é imperiosa para o desenvolvimento harmônico da televisão brasileira – e para a complementaridade de suas partes constitutivas.

Enquanto o país não enfrentar esse debate, apenas a televisão comercial seguirá crescendo, porque não carece de definição e não depende do Estado (até porque tem poder político suficiente para mandar mais nele do que obedecê-lo). A televisão estatal e, sobretudo, a pública não terão meios de encontrar seus espaços de atuação, suas formas de viabilização e a segurança jurídico-institucional que necessitam.

Sim, mas dirão alguns do que lêem este artigo: precisamos mesmo de televisão pública e de televisão estatal? A televisão comercial que temos, explorada em regime de concessão pela iniciativa privada, já não dá conta das necessidades do país? Não seria melhor gastar os recursos da TV pública e TV estatal em outras necessidades? Aqui se opõem as visões de quem julga que o mercado é a força-motriz de todo o progresso e de quem acredita num estado forte, regulando e fiscalizando o mercado.

Se a TV comercial desse conta de tudo que se espera dela – educação, informação e cidadania, além de diversão e comércio – não haveria o que discutir. Mas não é exatamente o que ocorre. Por outro lado, o campo público da televisão é hoje composto por cerca de 180 estações geradoras de conteúdo (educativas, comunitárias, universitárias, legislativas, institucionais), com quase 3.000 repetidoras em todo o Brasil. Não é a melhor televisão do mundo, mas faz o que pode para oferecer ao público o que a TV comercial sonega.

Alguém propõe que a TV pública seja privatizada? Os insatisfeitos com a TV comercial defendem que seja estatizada, ou convertida em TV pública? Não se ouve nada a respeito, de nenhum lado. Se é assim, tratemos de respeitar a Constituição do país, regulamentando o artigo 223 e começando a discutir as questões da televisão não-comercial com mais seriedade, precisão e objetividade do que vem ocorrendo até agora.

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Sobre o ministro das Comunicações, Hélio Costa

Agradeço a atenção que o sr. ministro Hélio Costa dedicou a comentários meus publicados neste Observatório [ver "Concessões de TV. Receita para superar a pizza"], contestando-os democraticamente no artigo "Ministério das Comunicações responde. A renovação das concessões das emissoras de TV". Mas lamento que tenha visto neles leviandade, maldade e desrespeito, quando procurei apenas exercer o direito de crítica, analisando assunto de interesse social com civilidade e estrito espírito público.

Nada tenho a acrescentar ao já colocado. As complexas relações entre a radiodifusão e o Estado, no Brasil, são de conhecimento geral, em particular dos informados leitores do OI. Todos sabem que este é um campo em que presidem as circunstâncias políticas, com a normatização jurídica sempre subordinada a estas. Se o sr. ministro assegura que "vem adotando medidas duras e severas" no enquadramento das emissoras de rádio e televisão aos imperativos legais, cabe conhecê-las, acompanhá-las e desejar que tenham a máxima efetividade.

Apenas esclareço que, embora pertencente – há menos de um mês – ao quadro diretivo da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura de São Paulo, escrevi o artigo em caráter estritamente pessoal, sem externar nele qualquer conceito que possa ser entendido como o pensamento oficial da emissora pública paulista. Estou certo de que, no momento de renovação de sua outorga, a TV Cultura demonstrará sem a menor dificuldade a sua estrita obediência às determinações constitucionais e legais da radiodifusão.

Funtelpa e TV Liberal, por mais um semestre

A direção da Fundação de Telecomunicações do Pará anunciou, no final do ano, que o sinal da TV Cultura retornará, no início de 2008, a 13 localidades do interior do Estado, depois de 10 anos retransmitindo a programação da Rede Globo, através da TV Liberal. Em junho o sinal da emissora chegará em mais 65 municípios. Assim, todos os 78 retransmissores que a Funtelpa cedeu durante uma década inteira para a emissora da família Maiorana, e ainda por cima pagando-lhe 35 milhões de reais durante esse período, a título de "convênio", serão reincorporados ao patrimônio da fundação estadual.

Mas a direção da Funtelpa não esclareceu qual a relação jurídica que manterá sua estranha relação com a TV Liberal por pelo menos mais seis meses, nesse período já sem qualquer tipo de cobertura legal, mesmo a sujeita a questionamento. Para todos os efeitos práticos (e jurídicos), ainda que em junho os 78 retransmissores sejam retomados, até lá a Funtelpa continuará a transmitir a programação original da Globo, via emissora afiliada de Belém, para os 78 ou 65 municípios do interior.

Via judicial

Em 31 de dezembro de 2006 o governo anterior prorrogou por mais um ano, através de aditivo, o "convênio" (na verdade, um contrato) entre a Funtelpa e a TV Liberal. O novo governo anulou o "convênio" e deixou de pagar à emissora, mas continuou a transmitir a programação dela. A TV Liberal recorreu da decisão administrativa da Funtelpa. Argumentou que estava cumprindo seus compromissos e que investira em equipamentos e pessoal para transmitir para o interior uma programação voltada para a integração do Pará, conforme lhe fora exigido.

Se essa programação continuava a ser veiculada pela Funtelpa, naturalmente esse direito (de receber uma mensalidade para prestar o serviço) continuava a poder ser reivindicado, ainda mais por contar com uma decisão a si favorável da lavra da juíza Rosileide Filomeno, a mesma envolvida em denúncias de tráfico de influência a partir de gravações feitas pela Polícia Federal. A quebra unilateral de contrato deverá ser cobrada em juízo, com as multas e indenizações previstas.

Se essa situação perdurará, não contando nem mesmo com a prorrogação adotada no final de 2006 para vigorar até 31 de dezembro de 2007, mais fortes se tornarão as razões que a TV Liberal poderá usar se recorrer à via judicial para definir o contencioso. A história, que já era torta, a cada tentativa de correção ou retoque fica cada vez mais torta. Aliás, essa é uma das marcas do atual governo.

* Reproduzido pelo Observatório da Imprensa do Jornal Pessoal nº 408, 1ª quinzena de janeiro/2008

Retrato de uma imprensa às vésperas dos seus 200 anos

A mídia, especialmente a mídia impressa e principalmente a diária, chega atarantada às festas de fim de ano. Ao esquema de fechamento insano, desumano, precário, acrescenta-se o extraordinário volume de páginas para acompanhar a avalanche de anúncios.

Faturar alto seria muito bom se o empresário de jornal não se comportasse exatamente como o empresário que fabrica salsichas, despreocupado com contrapartidas.

Na atual alucinação natalina subverteu-se o critério de relevância que há 400 anos comanda o processo de escolher e destacar informações nos veículos periódicos. O que entra numa edição não é necessariamente o que mais importa ao leitor, o que é destacado nem sempre é o mais pertinente. No lugar do princípio da transcendência, o império da aleatoriedade.

Dogmas "da casa"

Como se não bastassem estes desacertos elementares, nossa redações estão engessadas por fórmulas burocráticas estabelecidas pelo departamento comercial ou decretadas pela direção para preservar o vício da segmentação e do cadernismo.

Antes mesmo de traçado o primeiro esboço da primeira página já estão anotadas tantas recomendações e proibições, tantos preceitos e preconceitos, que a soma das criatividades do diretor de arte e do editor reduz-se a 10% do seu potencial.

A obrigação de valorizar os cadernos para adolescentes, comes & bebes, informática, turismo, TV ou a crônica feminina deixam um espaço mínimo para a valorização decente dos fatos do dia. Além disso, há os "especiais" que antigamente designava-se como "picaretagens", sem eufemismos porém com certo recato, e agora são vendidos despudoradamente com a promessa de destaque na primeira página.

Como se não bastasse, há os dogmas "da casa" ("uma cifra, qualquer cifra, vale mais do que um fato, qualquer fato"), os acertos do pool corporativo, as orientações da direção e a fogueira das vaidades dos colunistas. A sobra é mínima.

Ladeira abaixo

Se o panorama é desanimador nas capas dos jornais, nas páginas internas a deformação é produzida pela licenciosidade publicitária. As agências de propaganda pagam altíssimos salários aos seus criativos (aplausos calorosos!), mas isso não deve significar que esses geniais criativos tenham o direito de pisotear os cânones de leitura e da arquitetura interior de nossos jornais. Quem deve ser endeusado não é o anunciante, mas o leitor que paga para receber um jornal bem informado, bem escrito e… minimamente legível.

Um pouco de hombridade e honestidade da parte dos departamentos comerciais tornaria nossos jornais menos vulneráveis aos malabarismos circenses que infernizam a vida de quem precisa ler jornais. E, atenção: eles são em número cada vez menor.

Pouco interessa ao leitor se a agência ganhou um prêmio em Cannes ou no Canindé com a sua barafunda psicodélica concebida para liquidar as diferenças entre informação e anúncio (caso da recente campanha da agência África para a Phillips). O leitor gosta de anúncios desde que oferecidos como anúncios, sem truques ou mistificações.

As mazelas do nosso grande jornalismo não são políticas, ou melhor, podem não ser claramente políticas, mas são tantas e tão entranhadas que acabam criando padrões jornalísticos inconfiáveis no resto da mídia. Não esqueçamos que no Brasil inexistem agências de notícias autônomas, o jornal é ainda o grande pautador do rádiojornalismo, do telejornalismo e do webjornalismo. Uma pequena asneira produzida pela balbúrdia no fechamento rola ladeira abaixo com tal velocidade que em apenas 60 minutos converte-se numa asneira enorme, difícil de erradicar ou contraditar.

Reserva de qualidade

O quadro parece menos desolador nas temporadas opulentas quando a quantidade disfarça a qualidade. Fica mais visível na saison das vacas magras. Breve, em janeiro, teremos o indefectível "jornalismo de verão" com edições mirradas, mais complicadas para preencher por causa dos recessos, férias, recheadas de modismos e abobrinhas sob o pretexto de atrair o público feminino.

A idéia de que leitoras só se interessam por superficialidades e mundanidades é terrivelmente injusta e preconceituosa, porém condenada à clandestinidade – tabu. Nenhuma jornalista ou colunista ousaria propor uma discussão sobre o assunto numa reunião de pauta. Nenhum jornal ou revista encomendaria uma sondagem a respeito. E, no entanto, quando as tiragens começam a cair a solução mais comum é apelar para a mulher e insistir na tal da "leveza".

Temos editores da melhor qualidade, redatores talentosos, repórteres incansáveis, temos até recantos de bom nível jornalístico (caso do Valor Econômico), mas o quadro geral às vésperas das comemorações dos 200 anos da fundação da imprensa brasileira é lamentável. A festa merece convidados menos mambembes.