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A ‘mídia’ sob profundo impacto de mudanças meteóricas

Nascido por volta de 1870 para dar voz ao crescente movimento republicano das oligarquias cafeeiras paulistas, o Estado (então Província) de São Paulo somente iria aderir ao movimento Abolicionista quando a Abolição já se tornara inevitável. Nascida por volta de 1950, da iniciativa de um imigrante ítalo-americano ligado aos interesses de Walt Disney (e sabe-se lá a que outros interesses), a Editora Abril (irmã da Editorial Abril que o irmão daquele imigrante, na mesma época iria criar em Buenos Aires), depois de fomentar o american way of life entre nós, através de revistas como Pato Donald e Claudia, iria praticamente conquistar, com Veja, o monopólio do mercado das revistas semanais de informação, não por acaso durante o auge da ditadura militar. Nascida nos agitados anos 1920, com o jornal O Globo, as Organizações de mesmo nome, aliadas de primeiríssima hora do golpe de 1964, conquistariam, também durante a ditadura, tanto o monopólio da televisão em todo o país, quanto o da imprensa escrita na cidade do Rio de Janeiro, na medida em que os ditadores deram decisiva contribuição para a decadência e morte de muitos outros importantes órgãos de imprensa escrita que então disputavam leitores na ex-capital federal, entre eles, os Correio da Manhã, Última Hora, Diário de Notícias e, por fim, recentemente mas depois de longa agonia que teve início naqueles tempos, o Jornal do Brasil.

Se a imprensa (hoje, em dia, chamada “mídia”) chegou dividida à Revolução de 1930, apoiada por Marinho e Chateaubriand mas encarniçadamente combatida pelo Estadão, desde então tem agido como bloco único, no Brasil. Derrubou Vargas duas vezes, na segunda levando-o ao suicídio. Opôs-se, como pôde, aos governos JK e João Goulart. Apoiou e estimulou todos os golpistas de ocasião. Colocou-se contra a última ditadura – depois de ter a ela servido, inclusive fornecendo caminhões para a Oban – só quando o conjunto da burguesia achou que era chegada a hora de mudar para, lampedusamente, tudo continuar como sempre esteve…

Agora, coerente com a sua história, quer derrubar o governo altamente popular do Presidente Lula.

Como explicar a atual posição da imprensa?, perguntou outro dia o professor Venicio Lima.

Certamente, muitas pesquisas precisarão ser feitas para explicar o atual comportamento dos meios de comunicação no Brasil. Se toda unanimidade é burra, como dizia Nelson Rodrigues, estamos diante de um caso que já se configura paradigmático. Somente idiossincrasias e preconceitos não explicam a posição da imprensa nesta campanha, posição que não é somente a dos “donos dos jornais”, nem apenas a de alguns e algumas importantes e hiper bem remunerados colunistas, mas a de ampla maioria dos profissionais que se dizem “jornalistas” – todos diplomados. Servem com denodo, dedicação e até alegria aos seus patrões assim com os soldados SS serviam a Hitler… É mais do que meramente “cumprir ordens”. É acreditar nelas. É se querer reconhecido e recompensado por cotidiana, diária, contumaz demonstração de absoluta fidelidade a elas. Nas palavras de Serge Halimi, são os novos “cães de guarda”.

Diante da pergunta, arrisquemos alguma hipótese. Não é possível dissociar o papel político-ideológico da “mídia”, de sua organização enquanto empreendimento capitalista e do seu lugar na reprodução do sistema do capital. E, considerando a condição periférica do capitalismo brasileiro, qualquer reflexão nos obriga a tentar entender o papel dessa “mídia” na reprodução de 500 anos de periferia.

A partir dos anos 1950, em parte devido a forças sociais endógenas mas em boa parte devido à configuração internacional do capitalismo sob liderança econômica, cultural e militar dos Estados Unidos, o Brasil, como muitos outros países, ingressou na época de sua industrialização e urbanização desenvolvimentista. Tratava-se de expandir aqui dentro uma sociedade de consumo similar à estadunidense. No entanto, como as forças econômicas que comandavam essa expansão nos eram externas, a concentração de renda era uma condição sine qua non de exportação de parte do excedente internamente gerado pelo próprio desenvolvimento, daí havendo-se que bloquear as possibilidades de sua melhor distribuição social. A sociedade do consumo a brasileira, ao contrário do que acontecia no “fordismo” estadunidense, não poderia estender-se para todos. Foi essa a natureza do debate, nos anos 1950. Para Celso Furtado e os desenvolvimentistas isebianos de esquerda, nacionalistas por obrigação e opção, a industrialização precisaria, principalmente, servir para a oferta e consumo de bens de salário. Para Roberto Campos e os desenvolvimentistas de direita, entreguistas por opção, a industrialização somente deveria servir para a oferta e consumo de bens “supérfluos”.

Para a “mídia” brasileira periférica, a segunda opção seria natural. Vendendo marcas, estilo de vida, valores consumistas, ascensão social, status, isto é, sustentada pela indústria automobilística, eletro-eletrônica, cosmética e similares estrangeiras, a imprensa se colocaria contra o projeto de desenvolvimento que, nas condições da época, exigiria reter a expansão acelerada do consumo conspícuo, de modo a favorecer, em primeiro lugar, a expansão do consumo básico, daí permitindo a inclusão social da maioria menos favorecida. Ela só podia falar para a classe média consumista, não para os pobres – ou, para estes, somente falava de crimes, através dos famosos jornais “espreme/sai sangue”. Falava para a Zona Sul do Rio de Janeiro; para o Morumbi, em São Paulo. Precisava identificar-se com os temores, preconceitos, senso comum, arrogância, identidade elitista dessa classe média, para conquistar os números de circulação que lhe permitiria angariar anunciantes. Por isso, expressando a maneira de pensar desse seu público, colocava-se radicalmente contra qualquer proposta que pudesse cheirar a “populismo”. E para escrever seus editoriais, suas colunas, suas reportagens podia contar com bons jornalistas egressos cultural e intelectualmente do mesmo meio social. Logo, com os mesmos preconceitos e as mesmas ambições.

Para enfrentar tal fogo de barragem, Getulio Vargas pensou em usar a mesma artilharia. Capitalizou Samuel Wainer para que criasse um jornal de alta qualidade que, na forma, na linguagem, nas seções editoriais se mostrasse similar ao que melhor se poderia fazer na “mídia” de então (inclusive com coluna de “mulher boa”), mas politicamente engajado, seja pelos editoriais, seja por opções na pauta e nos lides, com o seu projeto nacionalista popular. A Última Hora de Wainer obteve um estrondoso sucesso. Em poucos meses, superou a circulação individual dos seus principais concorrentes. Em princípio, pela lógica da audiência, deveria atrair copioso faturamento publicitário. Não atraiu. Foi sempre um empreendimento deficitário apesar do sucesso de público. É que sua fachada de indústria cultural não conseguia disfarçar a sua condição de imprensa política, ao não submeter também o seu conteúdo noticioso e editorial àquilo que a “mídia” (e, no caso, a “mídia” periférica), bem como as agências de publicidade, considerariam “objetivo”, “neutro”, “independente”.

O golpe de 1964 iria consolidar, de vez, essa relação entre uma sociedade de consumo excludente para uma “mídia” exclusiva, e uma “mídia” exclusiva para uma sociedade de consumo excludente. A estreita classe média consumista, encurralada por trás dos muros de seus condomínios de elite apartada, confirmou-se como base econômica, cultural e ideológica de uma “mídia” também estreita, aglomerada em seus poucos e imponentes canais oligopolistas de veiculação. É um mercado onde só cabe uma grande revista semanal de grande circulação; um ou dois jornais importantes nas grandes capitais, quaisquer deles com circulação, convenhamos, ridícula; não mais que 400 livrarias em todo o país vendendo best-sellers e auto-ajuda (o mesmo que existe apenas em Buenos Aires, vendendo livros da melhor qualidade); principalmente, duas ou três grandes redes nacionais de televisão.

E assim deveria seguir o mundo. Pelo menos, o Brasil.

Mas o Brasil decidiu diferente. Por um conjunto grande de fatores, não apenas devido aos dois mandatos de Lula, mas também a eles, o país realmente mudou. Aquela classe média estreita e elitista viu-se superada quantitativa e qualitativamente por uma nova classe média, mais popular pelas suas origens, consumista também, mas desconectada e desinteressada da opinião publicada da grande “mídia”. Finalmente, uma grande massa da população foi incorporada à sociedade de consumo. Mas, talvez até pelos seus defeitos, sobretudo o seu baixo nível educacional e cultural, não foi incorporada à leitura semanal de Veja, nem à diária de O Globo. Ao mesmo tempo, neste preciso instante, emergem novos meios de comunicação, todos eles audiovisuais, como a TV por assinatura, a internet, o “celular”, que atraem essa audiência neoconsumidora para novas formas de produção e consumo de cultura industrial e publicidade. A realidade fabricada por aquela “mídia” parece nada dizer a esta audiência. Sobretudo quando ela insiste em denunciar supostos arrivistas da política, já que, de muitos modos, arrivistas são todos esses neoconsumidores.

A velocidade com que essas mudanças estão se dando na sociedade brasileira pode, realmente, estar ameaçando todo o modelo de negócios de oligopólios que se pretendiam eternos, logo também as relações, carreiras e ambições profissionais a eles endógenas. Parece que foram surpreendidos, tanto as empresas, quanto os seus cães de guarda, sejam os assalariados, sejam os PJs, paridos e educados, todos e todas, na mesma arrogante elite social. Daí o desespero…

Se a hipótese estiver correta, ainda testemunharemos, nos próximos anos, grandes mudanças econômicas e políticas nesta centenária “mídia” nativa. No entanto, a vitória de Dilma Rousseff ou a de José Serra será decisiva no encaminhamento de medidas legais e regulatórias, a esta altura inadiáveis, que definirão o tempo e condições de sobre-vida dos dinossauros mediáticos brasileiros. A “mídia” brasileira parece apostar que Serra será o seu Capitão Spurgeon “Fish” Tanner (Robert Duvall) de “Impacto Profundo”, jogando sua nave contra o meteoro econômico-cultural que lhe ameaça a própria sobrevivência… Só que a história é um processo real, não um roteiro hollywoodiano.

Quem ‘controla’ a mídia?

Você já ouviu falar em Alexander Lebedev, Alexander Pugachev, Rupert Murdoch, Carlos Slim ou Nuno Rocha dos Santos Vasconcelos? Talvez não, mas eles já “controlam” boa parte da informação e do entretenimento que circulam no planeta e, muito provavelmente, chegam diariamente até você, leitor(a).

Enquanto na América Latina, inclusive no Brasil, a grande mídia continua a “fazer de conta” que as ameaças à liberdade de expressão partem exclusivamente do Estado, em nível global, confirma-se a tendência de concentração da propriedade e controle da mídia por uns poucos mega empresários.

Na verdade, uma das conseqüências da crise internacional que atinge, sobretudo, a mídia impressa, tem sido a compra de títulos tradicionais por investidores – russos, árabes, australianos, latino-americanos, portugueses – cujo compromisso maior é exclusivamente o sucesso de seus negócios. Aparentemente, não há espaço para o interesse público.

Na Europa e nos Estados Unidos

Já aconteceu com os britânicos The Independent e The Evening Standard e com o France-Soir na França. Na Itália, rola uma briga de gigantes no mercado de televisão envolvendo o primeiro ministro e proprietário de mídia Silvio Berlusconi (Mediaset) e o australiano naturalizado americano Ropert Murdoch (Sky Itália). O mesmo acontece no leste europeu. Na Polônia, tanto o Fakt (o diário de maior tiragem), quanto o Polska (300 mil exemplares/dia) são controlados por grupos alemães.

Nos Estados Unidos, a News Corporation de Murdoch avança a passos largos: depois do New York Post, o principal tablóide do país, veio a Fox News, canal de notícias 24h na TV a cabo; o tradicionalíssimo The Wall Street Journal; o estúdio Fox Films e a editora Harper Collins. E o mexicano Carlos Slim é um dos novos acionistas do The New York Times.

E no Brasil?

Entre nós, anunciou-se recentemente que o Ongoing Media Group – apesar do nome, um grupo português – que edita o “Brasil Econômico” desde outubro, comprou o grupo “O Dia”, incluindo o “Meia Hora” e o jornal esportivo “Campeão”. O Ongoing detem 20% do grupo Impressa (português), é acionista da Portugal Telecom e controla o maior operador de TV a cabo de Portugal, o Zon Multimídia.

Aqui sempre tivemos concentração no controle da mídia, até porque , ao contrário do que acontece no resto do mundo, nunca houve preocupação do nosso legislador com a propriedade cruzada dos meios. Historicamente são poucos os grupos que controlam os principais veículos de comunicação, sejam eles impressos ou concessões do serviço público de radio e televisão. Além disso, ainda padecemos do mal histórico do coronelismo eletrônico que vincula a mídia às oligarquias políticas regionais e locais desde pelo menos a metade do século passado.

Desde que a Emenda Constitucional n. 36, de 2002, permitiu a participação de capital estrangeiro nas empresas brasileiras de mídia, investidores globais no campo do informação e do entretenimento, atuam aqui. Considerada a convergência tecnológica, pode-se afirmar que eles, na verdade, chegaram antes, isto é, desde a privatização das telecomunicações.

Apesar da dificuldade de se obter informações confiáveis nesse setor, são conhecidas as ligações do Grupo Abril com a sul-africana Naspers; da NET/Globo com a Telmex (do grupo controlado por Carlos Slim) e da Globo com a News Corporation/Sky.

Tudo indica, portanto, que, aos nossos problemas históricos, se acrescenta mais um, este contemporâneo.

Quem ameaça a liberdade de expressão?

Diante dessa tendência, aparentemente mundial, de onde partiria a verdadeira ameaça à liberdade de expressão?

Em matéria sobre o assunto publicada na revista Carta Capital n. 591 o conhecido professor da New York University, Crispin Miller, afirma em relação ao que vem ocorrendo nos Estados Unidos:

“O grande perigo para a democracia norte-americana não é a virtual morte dos jornais diários. É a concentração de donos da mídia no país. Ironicamente, há 15 anos, se dizia que era prematuro falar em uma crise cívica, com os conglomerados exercendo poder de censura sobre a imensidão de notícias disponíveis no mundo pós-internet (…)”.

Todas estas questões deveriam servir de contrapeso para equilibrar a pauta imposta pela grande mídia brasileira em torno das “ameaças” a liberdade de expressão. Afinal, diante das tendências mundiais, quem, de fato, “controla” a mídia e representa perigo para as liberdades democráticas?

*Pesquisador Sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília – NEMP – UNB.

Atenas, a ANJ e a liberdade

Na comemoração dos seus 30 anos, a Associação Nacional de Jornais, ANJ, divulgou 31 casos que considera de “violação à liberdade de imprensa”, ocorridos no país ao longo dos últimos três meses: dezesseis se referem a decisões judiciais de Primeira Instância e outros, por exemplo, dizem respeito à “proposta” feita pelo Ministro da Defesa de mudança no princípio constitucional do sigilo da fonte e ao “projeto de lei” enviado pelo Executivo ao Congresso Nacional “para punir jornalistas”. Da lista consta ainda a criação do blog da Petrobras.

Nada de novo. Apesar de dizer que defende o Estado de Direito, a ANJ não aceita que cidadãos ou entidades que se considerem prejudicados pela ação de jornais recorram à Justiça; também não aceita que sejam feitas “propostas” ou que “projetos de lei” que considera contra seus interesses tramitem no Congresso Nacional. Além disso, a ANJ, apesar de dizer defender a liberdade de expressão, considera a criação de blogs de fontes públicas uma “violação à liberdade de imprensa”.

No dia dos seus 30 anos a ANJ publicou também, sob o título “Pela Liberdade”, artigo assinado por sua presidente em diversos jornais brasileiros. O texto omite as verdadeiras razões que levaram à criação da ANJ (cf. texto de Alberto Dines, “ANJ, 30 anos: Para celebrar é preciso contar a verdade”), e reafirma a velha posição de que “o governo” é a ameaça número um à sociedade democrática e que cabe aos jornais a defesa da democracia e do interesse público.

A presidente da associação dos donos dos jornais afirma no “Pela Liberdade” que “a tensão entre jornais e governos é inevitável e existe mesmo nas democracias mais consolidadas. Não é fácil erigir a maturidade para administrar esta convivência tensa por natureza – especialmente quando, como é o caso brasileiro, também está em curso o amadurecimento das próprias instituições, em parte forçado pelos jornais, que são vitais na exposição pública das vísceras do organismo político”. Até aí, nada de novo.

Atenas, a deusa grega
A novidade no “Pela Liberdade” foi a dupla citação da deusa da mitologia grega Atenas (Minerva, para os romanos) no contexto de uma guerra – a guerra de Tróia.

Primeiro, evoca-se Atenas pelo grau de “sofisticação” da atual luta pela liberdade de expressão. Está lá: “a luta pela liberdade de expressão agora é muito mais sofisticada e por isso mesmo exige muito mais prontidão e obsessão analítica, num esforço cotidiano e discreto, mas poderoso, como o papel desempenhado por Atena, de apoio e proteção aos guerreiros gregos na luta contra Tróia”.

E segundo, compara-se o papel da ANJ ao longo dos últimos 30 anos com aquele de “coadjuvante” desempenhado por Atenas e, por conseqüência, os jornais com guerreiros em luta: “Nestes 30 anos, a ANJ tem desempenhado seu papel de coadjuvante imprescindível, como o de Atena na defesa dos guerreiros em Tróia”.

Quem era Atenas?
Atenas (ou Minerva) é mais conhecida pelo seu famoso voto de desempate no julgamento de Orestes. Como se sabe, Orestes havia matado sua própria mãe para vingar a morte de seu pai. Apolo fez a defesa de Orestes, reafirmando a posição patriarcal. O voto dos jurados deu empate e coube a Atenas o desempate que foi favorável a Orestes (daí a expressão “voto de Minerva”). Orestes e os princípios patriarcais foram os vencedores.

Já o comportamento de Atenas como estrategista durante a guerra de Tróia foi eticamente condenável. Numa das situações mais conhecidas, no auge da guerra, para proteger seu favorito Aquiles que duelava contra Heitor, Atenas fez com que o herói troiano acreditasse que seu irmão estava ao seu lado com o porta-lança. Depois de ter atirado a última lança, no entanto, Heitor se deu conta que estava sozinho. Ele havia sido enganado por Atenas.

Para Atenas não interessava a questão ética ou moral. Quando se tratava de “manobras enganadoras”, este era o terreno onde ela se saia bem. O que importava era se sua ação estratégica era efetiva.

Qual liberdade?
Diante da inédita evocação da deusa Atenas, do cenário de guerra e dos jornais como guerreiros, antecipa-se que a “luta” da ANJ “Pela Liberdade” será cada vez mais ativa e mais “efetiva”.

Como nunca tivemos qualquer regulação sobre a propriedade cruzada dos meios de comunicação, alguns dos maiores e mais poderosos grupos de mídia do país são, ao mesmo tempo, controladores da mídia impressa e da mídia eletrônica. Isso torna a ANJ capaz de articular a atuação das diferentes associações representativas dos (mesmos) empresários de mídia, seja de jornais, de revistas ou de radiodifusão.

Diante de tudo isso, talvez, na comemoração dos 30 anos da ANJ, o cidadão comum devesse questionar: quando a ANJ defende “a liberdade”, de quem é a liberdade que está sendo defendida? Contra que tipo de restrições? E a favor de quem?

*Venício Lima é Pesquisador Sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília – NEMP – UNB

 

Alvéolos da democracia

A tão celebrada interatividade da Internet permite que um número pequeno de pessoas possa ser ouvido por muitos. Um articulista escreve, outros comentam. Um repórter constrói uma notícia, seus leitores dizem o que pensam. Obviamente, isto é possível quando existem canais para isto. Na Internet, a inexistência deles é superada pelos inúmeros blogues, grupos de discussão, comunidades virtuais, páginas pessoais etc.

É impossível pensar, nesta teia atual, a possibilidade de se censurar completamente o fluxo da opinião. É verdade, que existem várias tentativas neste sentido. A mais conhecida é a do controle nacional ou empresarial da liberdade de opinião, exercida no meio eletrônico. Este não tem pátria ou governo, mas depende de recursos econômicos, equipamentos e de políticas de países, sociedades e grupos bem específicos. O mesmo meio vive um paradoxo tecnopolítico de difícil solução e que demanda esforços expressivos de resistência. Países ricos e pobres, de inúmeras orientações, registraram e ainda fomentam tentativas autoritárias deste gênero. Mesmo neste meio, a opinião continua sendo vigiada e controlada, lutando para se libertar de suas amarras.

Escrever e publicar um comentário sobre um artigo guarda relação com as antigas seções de cartas dos jornalões tradicionais. Difere-se profundamente das mesmas, por serem comentários quase sempre imediatos, publicados na íntegra e dirigidos ao autor de um artigo ou, mesmo, à discussão entre os próprios comentaristas. Nas velhas cartas, o endereço era o Jornal, um organismo público ou privado, ou, ainda, um assunto ou polêmica específica. Nos comentários de hoje, fala-se diretamente ao autor sobre o assunto que ele tratou. É verdade que por vezes o ‘tiro’ é dado em várias direções, usando-se do espaço para se falar de si próprio ou de outras pessoas.

Tais comentários, existentes na imprensa empresarial e nanica difundidas pela Internet, consistem em fontes de rara significação para se compreender o mundo mental de classes e segmentos sociais do país. Ao que parece, os comentaristas internéticos são, em sua maioria, jovens de até 40 anos e pertencentes às classes médias. Deduz-se isto, observando-se o acesso que dispõem, seus enfoques e modos de usar a língua portuguesa. Eles são, também, ávidos consumidores de inúmeras mídias e se acham obrigados em dizer o que pensam, sobre o que lêem. O nível de consciência entre eles é muito diversificado, indo desde a militância, passando pela arrogância, a superficialidade e a vontade legítima de retificar e contribuir para o debate.

Existem os ‘profissionais’, e os que colaboram eventualmente em algum assunto ou emoção que lhes são caros. É verdade, que alguns estão ali apenas para dizer não, para reafirmar diuturnamente suas discordâncias. Outros escrevem para complementar ou apenas para reafirmar suas concordâncias parciais ou totais com o que leram. Muitos lêem e alguns, apenas, comentam, e isto é um problema a ser analisado. Os comentaristas podem ser entendidos como co-redatores das notícias que vemos nas versões eletrônicas dos jornalões, ou como críticos dos artigos de fundo da imprensa nanica, transformada em bits. Por que assim se comportam?

Os signos de seus comportamentos remetem diretamente a necessidade de novos canais democráticos, da reconstrução da velha Ágora. O que se vê é que os canais disponíveis são poucos e ineficientes. Esta aceitação dos leitores internéticos de participar, mesmo que nem sempre de modo polido e educado, demonstra como se está longe da construção de uma verdadeira pólis democrática. Nesta, a troca civilizada de argumentos permitiria que se compreendessem melhor os fenômenos da contemporaneidade.

Não se acredita que a Internet seja o lócus único desta democratização da informação e da argumentação. Ela é apenas um meio de comunicação, poderoso, sem dúvida, mas, como os demais, cheio de limitações. Pensa-se que a Ágora real é a das ruas, dos locais de trabalho e de estudo, a do diálogo direto entre as pessoas. Os parlamentos, nos três níveis da governabilidade, estão muito longe de oferecer às pessoas os meios necessários para que troquem informações e argumentos. Sem esta troca, a democracia não tem chance de se consubstanciar entre as maiorias da população.

A imprensa nanica, sobretudo a veiculada pela Internet, preenche alguns alvéolos dos pulmões da democracia formal brasileira e do mundo contemporâneo. Entretanto, não é capaz de fazer que funcionem à plena capacidade. Mesmo que aumentemos cada vez mais a audiência, algo ficará faltando. Isto tem que ser buscado em toda parte da vida real, onde exista alguém pronto para falar, escutar, debater e concluir. Os que escrevem artigos desejam, se possível, ajudar nos debates, desde uma simples conversa até uma manifestação pública mais efetiva.

Alô, alô, TV Pública: aquele abraço

O governo acerta ao convidar Luiz Gonzaga Belluzzo para presidir a rede de TV Pública. Mas erra ao propor a extinção da Radiobrás. Parece assumir a idéia neoliberal de que tudo que vem do Estado é ruim. 

O governo deu um passo na direção certa ao convidar o professor Luiz Gongaga Belluzo para presidir a rede de TV Pública a ser instalada no país. Para um projeto de tal envergadura, era preciso começar com uma liderança do mundo da cultura e do saber.

Inexplicavelmente, o mesmo governo está andando para trás na definição do modelo gerencial e operacional da TV pública. A proposta de extinguir a Radiobrás, fundindo todo o seu acervo com o da TVE para criar uma nova entidade, tem todas as chances de dar errado, além do equívoco fundamental de acabar com o único sistema importante de comunicação oficial do Estado brasileiro. No seu lugar haveria um contrato de prestação de serviços pelo qual a TV pública produziria informação de Estado minimamente necessária.

Como se vê, o caminho escolhido é de todos o mais complicado. Implica em fundir entidades totalmente diferentes, cada uma carregando pesos mortos, inclusive passivos trabalhistas e problemas funcionais. Só se explica se há um objetivo oculto de aproveitar a oportunidade para se desfazer desses “pesos mortos.” Cria-se um monstro jurídico, para resolver oportunisticamente problemas antigos que nada têm a ver com o projeto. Além disso, já começa dando à TV pública, ainda que sob contrato de prestação de serviços, também a tarefa de comunicação estatal.

O que mais intriga é que a solução para a separação entre comunicação pública e comunicação oficial já estava dada, bastando aprofundar a demarcação existente: atribuir à TVE, que é uma Organização Social de fins públicos, portanto já bem independente do Estado, o papel de esqueleto ou núcleo articulador da rede pública e limitar a Radiobrás ao papel específico e exclusivo de comunicação oficial, transferindo parte de seus equipamentos, programas e concessões para a TVE.

Das nove concessões de rádio e TV da Radiobrás, pelo menos metade tem vocação para comunicação pública e poderiam reforçar o esquema TVE, constituindo o embrião do novo sistema público, sem precisar criar novas empresas ou extinguir a Radiobrás. Agencia Brasil, TV a cabo NBR e o canal internacional “integración” poderiam continuar como partes de um sistema estatal de comunicação.

Realmente não dá para entender a lógica da fusão. Por que criar tantos problemas e descartar uma solução óbvia? Solução que já havia sido proposta várias vezes durante o primeiro mandato, na ocasião, para acabar com a ambigüidade dos papéis da Radiobrás que atuava ao mesmo tempo como sistema público e estatal.

Pode ser que o verdadeiro objetivo seja o de acabar com a obrigatoriedade de transmissão da Voz do Brasil, cedendo à campanha lançada em 1995 por 850 emissoras privadas de rádio. Os barões da mídia não satisfeitos em faturar 23 horas por dia sem pagar nada pelas concessões outorgadas pelo Estado, ainda querem acabar com a única hora em que o Estado tenta se comunicar diretamente. A Voz do Brasil é ouvida por mais de 50% da população, sendo que 11% a ouvem regularmente. A desconfiança se justifica, porque a campanha foi apoiada publicamente pela direção da Radiobrás já no governo Lula. Dentro dessa lógica, o governo ofereceria a Voz do Brasil no altar do sacrifício para aplacar a ira do baronato contra a criação da TV pública.

Se for isso, o governo está cometendo um erro grave. Está aceitando ingenuamente a tese de que comunicação estatal é necessariamente “jornalismo chapa-branca”, ou seja, algo condenável; de que a comunicação do Estado é por natureza autoritária enquanto a dos barões da mídia é a democrática e pluralista. Ora, informação oficial, precisa, abrangente e acurada dos atos de governo e suas razões, é hoje uma obrigação de todos os estados democráticos, um atributo da sociedade da informação.

A diferença entre comunicação oficial de Estado, num regime democrático, e a produção de uma rede pública, não está no grau de veracidade, independência, e pertinência social dos conteúdos que deve ser elevado em ambos os casos, e sim nas funções de cada programação, portanto no seu “mix”: a estatal tem as funções principais de divulgar as campanhas sanitárias, educativas e outras de utilidade pública, e prover informação básica, precisa e acurada sobre os atos do governo . Serve, inclusive, como fonte de informação primária para o jornalismo das empresas privadas, como era o papel histórico da Agência Brasil da Radiobrás. Ainda hoje, a Agência Brasil é acessada de quatro e cinco milhões de vezes por mês por pessoas e entidades de todos os tipos, em especial pauteiros e correspondentes estrangeiros, à busca de informação primária sobe atos e agenda de governo. Também produz mais de mil fotos por mês de uso livre pela mídia.

Já a rede pública tem a função de produzir informação jornalística, cultura , crítica e entretenimento movidos estritamente pelo interesse público, em competição qualificada com o jornalismo das redes privadas, esse movido essencialmente pela busca de lucro e portanto pelos índices de audiência. A competição da rede pública não é com a do Estado, é com a da empresa privada.

Comunicação oficial de Estado não é propaganda. É um serviço público essencial nos estados modernos. Por trás dessa concepção de que comunicação do governo é algo nefasto está também a idéia de que o estado é nefasto, quanto menor melhor. É a proposta neoliberal do Estado mínimo. E também o equívoco conceitual de considerar que o Estado não faz parte da esfera pública, quando ele é a mais pública de todas as partes dessa esfera.

Se o governo extinguir a Radiobrás estará caminhando na contramão da história. O que ele deve, isso sim, é acabar com prática nefasta de usar dinheiro público para fazer propaganda de si mesmo. E proibir essa prática também nos Estados e municípios.

Deixar a Radiobrás e a TVE onde estão, apenas desbastando e separando mais claramente seus papéis é a solução orgânica mais simples para a instalação da rede pública de TV no Brasil. E tem mais: é a solução que mantém até geograficamente a separação entre comunicação pública e estatal, deixando a Radiobrás perto do poder, e localizando o núcleo de produção jornalística da rede pública bem longe desse poder, no Rio de Janeiro, a cidade civilista e libertária por excelência , ou mesmo em São Paulo. É um equívoco adicional sediar o jornalismo da TV pública em Brasília, com seu Plano Piloto elitista, contaminado pelas relações promíscuas de poder.

Uma nova rede pública de tevê deve começar como se começa uma nova universidade: atraindo para o seu projeto as melhores cabeças de cada campo do conhecimento e partindo diretamente para a produção desse conhecimento. No caso da TV, Para a produção de três ou quatro programas de grande qualidade e impacto. O resto é imbróglio burocrático. Não leva a nada.

* Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é colaborador da Carta Maior e autor, entre outros, de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro” (1996) e “As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998” (2000).

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