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Caso Sarney: Ninguém contesta o coronel

[Comentário para o programa radiofônico do OI, 10/2/2009]

Quem acessar durante esta semana o site do Observatório da Imprensa vai encontrar na enquete a seguinte pergunta: "É correto um político usar uma concessão pública de TV para atacar seus adversários?".

A questão vem à superfície porque o presidente do Senado, José Sarney, foi apanhado em gravação da Polícia Federal orientando seu filho Fernando a usar as emissoras da família para atacar um adversário político.

Sarney é dono de um conglomerado de comunicação que inclui emissora de televisão afiliada à Rede Globo. A legislação proíbe a concessão de serviços públicos, entre eles os de radiodifusão, a detentores de cargo eletivo.

O pesquisador Venício A. Lima, integrante deste Observatório, já demonstrou que 51 deputados são donos ou sócios de emissoras, enquanto o Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação constatou que pelo menos 27 dos 81 senadores são proprietários de veículos de comunicação, diretamente ou através de prepostos ou parentes. É o chamado coronelismo eletrônico.

O capítulo específico da Constituição de 1988 sobre Comunicação Social tem cinco artigos, que nunca foram regulamentados.

Pouco ânimo

Esse debate deveria estar fervendo na imprensa por esses dias, em função da conversa entre Sarney pai e Sarney filho, revelada pela Folha de S.Paulo. Mas o que os jornais destacam nas edições de terça-feira (10) é o projeto que livra da prisão os operadores ou responsáveis por emissoras clandestinas. Em vez de processo criminal, os acusados serão submetidos a processo administrativo no Ministério das Comunicações. Praticamente todos os jornais deram atenção à proposta, abordando corretamente o tema, com abertura de opiniões variadas.

A imprensa se manifesta contrária à existência das emissoras clandestinas, o que é razoável. Algumas delas estão nas mãos do crime organizado, mas na maior parte dos casos trata-se de emissoras comunitárias em situação irregular. É um problema que de fato precisa ser levado a debate, e até, eventualmente, a audiências públicas.

A imprensa está preocupadíssima com as emissoras clandestinas. Mas não tem o mesmo ânimo para a outra irregularidade, muito mais grave, que é a permanência do coronelismo eletrônico.

Caso Sarney: Como funciona o coronelismo eletrônico

Pesquisadores da área de comunicação social criaram, no final do século passado, o conceito de "coronelismo eletrônico" para explicar um fenômeno bastante particular, qual seja o da posse e utilização política de estações de rádio e de televisão por grupos familiares das elites políticas locais ou regionais. Uma boa explicação deste conceito está em entrevista concedida ao Observatório da Imprensa, em janeiro de 2002 [leia aqui] , pelo então assessor da bancada petista na Câmara Federal Israel Bayma, hoje integrante do Conselho Consultivo da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), e nas pesquisas promovidas pelo Instituto Projor e coordenadas por Venício A. de Lima ["Rádios comunitárias: coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)" – leia aqui, com Cristiano Lopes; e "Concessionários de radiodifusão no Congresso Nacional: ilegalidade e impedimento" – leia aqui].

Dizia Bayma:

"A literatura política brasileira tem utilizado o termo coronelismo como uma forma peculiar de manifestação do poder privado, com base no compromisso e na troca de proveitos com o poder público. A ciência política trata como coronelismo a relação entre os coronéis locais, líderes das oligarquias regionais, que buscavam tirar proveito do poder público, no século 19 e início do século 20. Hoje, não há como deixar de se associar esse termo aos atuais impérios de comunicação mantidos por chefes políticos oligárquicos, que têm, inclusive, forte influência nacional. O compadrio, a patronagem, o clientelismo, e o patrimonialismo ganharam, assim, no Brasil, a companhia dos mais sofisticados meios de extensão do poder da fala até então inventados pelo homem: o rádio e a televisão."

No domingo (8), o jornal Folha de S. Paulo traz uma reportagem [leia aqui] que ajuda imensamente a traduzir a linguagem dos pesquisadores para o mundo real da política brasileira. Trata-se do relato de uma conversa gravada pela Polícia Federal (e vazada sabe-se lá por quem, pois o jornal não informa) em que o novo presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), dá instruções ao seu filho Fernando sobre matérias que deveriam ser veiculadas na TV Mirante e no jornal O Estado do Maranhão, ambos de propriedade da família Sarney, com denúncias contra o governo de Jackson Lago (PDT), rival de Sarney no estado.

Mais sutil

No fundo, a matéria da Folha é o que de melhor este observador já viu para explicar um conceito teórico na prática. Está tudo lá: uma família (Sarney), proprietária de uma rede de veículos de mídia (além da TV Mirante, afiliada da Rede Globo, e do jornal, a família detém retransmissoras no interior e uma rede de rádios), faz uso político desses veículos, ao arrepio da legislação, conforme observa a reportagem da Folha (a lei 4.117/62 proíbe uso de emissoras de TV para fins políticos).

Para quem conhece minimamente o funcionamento de uma redação, o que Sarney pai fez – e isto fica muito claro no diálogo reproduzido na versão impressa do jornal, indisponível na internet – foi pautar o seu filho Fernando. A ordem é direta: "Põe na TV. Manda botar o destino do dinheiro recebido", diz o pai, referindo-se a uma denúncia envolvendo Aderson Lago, primo do governador Jackson, que por sinal enfrenta na Justiça um processo que pode lhe custar o cargo e colocar no lugar a filha de Sarney, senadora Roseana (PMDB-MA).

"O cara já está aqui, da Globo", responde o filho. "Falou com ele isso, não?", questiona o pai. "Falei com ele, mostrei tudo […]. Mas calma, não precisa pressa, não precisa pressão", devolve o filho.

Mais claro do que isto, impossível. Os pesquisadores ganharam um "estudo de caso" perfeito para explicar o conceito de coronelismo eletrônico e os leitores da Folha foram premiados por uma excelente reportagem, embora tenha faltado esclarecer a fonte do vazamento da conversa, porque há um óbvio interesse do vazador em desgastar o recém-eleito presidente do Senado. Também faltou explicar que a prática em questão não é exceção, mas regra.

Da mesma forma como a família Sarney domina a mídia do Maranhão, há coronéis eletrônicos por todo o país, talvez à exceção dos estados de São Paulo e Rio, onde a influência política nos meios de comunicação se dá de outra maneira, muito mais sutil. No Norte e Nordeste, especialmente, o coronelismo eletrônico é lei. Caberia um box, no mínimo, mas isto em nada diminui a boa matéria da Folha, editada com correção, ainda mais considerando o fato de José Sarney ser colunista do jornal.

* Luiz Antonio Magalhães é editor-adjunto do Observatório da Imprensa.

Rede pública abre novos horizontes

Quando se fala de televisão pública no Brasil, logo vem à mente de muitos a figura de um canal governamental, o que rendeu à TV Brasil o codinome pejorativo de TV Lula. Assim, a televisão não-comercial seria necessariamente um órgão de publicidade do Executivo. Isto é um equívoco que as redes privadas, detentoras dos maiores veículos de radiodifusão no país, fazem questão de ampliar. Uma TV pública é um projeto que passa por lógicas públicas, o que, se não ocorre plenamente no país, cabe à sociedade lutar por isso.

A maioria dos brasileiros também desconhece a televisão digital. Em virtude da lenta implantação, dos altos custos dos equipamentos e de poucas campanhas de esclarecimento, os telespectadores acreditam que a nova tecnologia apenas trará melhor resolução de imagem e chances de assistir à TV pelo celular. Deixa-se de lado a inclusão digital e a interatividade, transformando ainda o potencial desta em recurso de consumo ao longo do entretenimento.

No entanto, está surgindo uma excelente oportunidade para que questões como essas sejam esclarecidas a partir da prática. Em novembro de 2008, um protocolo de intenções assinado pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC), o Senado Federal, a Câmara dos Deputados, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Ministério da Educação acordou a formação de uma infra-estrutura única, para compartilhamento de transmissões digitais.

Conteúdos mais relevantes

Isto vai possibilitar uma rede pública de televisão digital, com as TVs Brasil, Câmara, Senado, Justiça, Educação e Cidadania, podendo contar ainda com um canal do Ministério da Cultura. Após a licitação para a montagem da plataforma integrada, a expectativa é de que a rede pública estréie em 2010 em todas as capitais e em 2012 nas 230 cidades com mais de 100 mil habitantes. Tal infra-estrutura corresponde à criação de uma importante rede pública, que retornará como patrimônio à EBC, de modo que cada um dos entes federais aderentes entrará com R$ 10 milhões anuais para cobrir os custos da operação.

Além da iniciativa, que por si só chama a atenção, devido ao ineditismo em um país com histórico de oligopólio midiático privado, uma segunda promessa se destaca: a rede pública de televisão digital protagonizará a multiprogramação. Inicialmente, os seis canais deverão veicular 12 programações simultâneas no sinal aberto, podendo chegar a 24, o que representaria um enorme impacto sobre o audiovisual brasileiro. Assim, a exemplo de países europeus, pode-se ter um verdadeiro sistema televisivo duplo, público e privado.

Grandes organizações, como Globo, SBT e Record, já sinalizaram que não pretendem trabalhar com multiprogramação em virtude de acreditarem que o mercado publicitário não daria conta de tantas opções. Assim, as redes comerciais do país ficarão a reboque das emissoras não-comerciais em uma das principais ferramentas da TV digital, por impedimento de um fator que sempre as distinguiu positivamente (quanto à abundância de recursos): o comercial.

O que essas novidades trarão de novo, por enquanto, ainda é uma grande incógnita, até porque o sistema público também é dotado de sérios problemas e carece de avanço. Mas o principal fato novo é que o dito campo público está se fortalecendo em estrutura no meio de comunicação presente em quase todos os lares do país, trazendo, inevitavelmente, conteúdos mais relevantes socialmente. A falta de compromisso com índices de audiência deve possibilitar a experimentação, inovando em termos de padrão técnico-estético.

Preparação do 2º Fórum Nacional de Televisão Pública

[Texto apresentado no pré-evento da XII Socine 2008 – Universidade de Brasília]

Desde o 1º. Fórum Nacional de Televisão Pública – que ocorreu em maio de 2007 e resultou na "Carta de Brasília" – a rede pública de televisão no país começou a ganhar contornos. Naquele momento, o presidente Lula entregou à Secretaria de Comunicação Social e ao recém-empossado ministro Franklin Martins a missão de instalar a Empresa Brasil de Comunicação. Criada em outubro de 2007, a EBC tem a missão de implantar e gerir o sistema público de comunicação previsto pelo artigo 223 da Constituição Federal.

Dezessete meses após o encontro, as entidades que representam as TVs públicas reuniram-se com o ministro das Comunicações, Hélio Costa, buscando apoio para a realização do II Fórum Nacional de TVs Públicas. O objetivo é debater questões que não foram esclarecidas na primeira edição do evento, como a regulamentação das emissoras públicas – já que falta um aparato jurídico para este campo das comunicações –, a programação e o processo de migração digital, segundo afirmação de Paulo Alcoforado, da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura.

O cidadão, um não-protagonista

O presidente Lula, de quem partiu a idéia de criação da televisão pública no país, entende esses novos canais como os veículos capazes de pôr no ar aquilo que as outras televisões não põem, as notícias positivas que não são dadas, os debates sobre grandes temas nacionais que não são realizados, os programas educativos que ficam confinados às emissoras educativas.

No entanto, dez meses após sua estréia a TV Brasil depara com o desafio de consolidar-se como emissora pública e de afastar definitivamente os receios que a cercam. Com orçamento limitado e programação baseada quase exclusivamente na grade herdada da extinta TVE, a direção da TV Brasil esforça-se para produzir a única novidade até o momento – o telejornal Repórter Brasil.

Fazer uma aposta quase que exclusivamente num jornalismo de qualidade e diferenciado pode ser um equívoco. As TVs privadas, depois da competição trazida pelas emissoras a cabo, apesar das críticas e de naturais falhas, já começam a ocupar este espaço. E como os recursos para a TV pública são escassos, outras áreas acabarão por ser menos contempladas.

A criação da TV Pública e de outros canais de comunicação sujeitos ao controle social é uma antiga aspiração da sociedade brasileira que ganhou expressão na Assembléia Constituinte de 1988.

No entanto, no projeto da nova TV patrocinada pelo governo Lula, há uma série de distorções, tanto nos pressupostos que lhe deram origem, quanto no meio escolhido para a sua implantação. A pressa com que o processo foi conduzido foi tão evidente que o principal interessado – o cidadão – como sempre não sentou à mesa de discussões. Pelo menos, não como protagonista. A iniciativa atropelou o escrutínio do Congresso e já está no ar desde 2 de dezembro de 2007, por força de uma medida provisória cujo cerne foi aprovado pela Câmara.

Origem de concessões e outorgas

As MPs, por terem prazo exíguo de andamento na Câmara e no Senado, sempre tramitam de maneira precipitada, sem as necessárias reflexões, sem debates mais aprofundados. E, ao final, são aprovadas com poucas modificações com relação ao texto original.

Ou seja, o que saiu em matéria de televisão pública da mesa de trabalho dos grupos escolhidos pelo governo foi o que ficou valendo, com alterações cosméticas. Do modo como o processo foi conduzido, a sociedade foi brindada com uma televisão pública sem saber o que isso significa, o que é na vida real, e se lhe interessa pagar por tal oferta.

É baixa a credibilidade de uma empreitada que nasceu de uma medida provisória e que deixa intocada a estrutura das comunicações estatais no país, moldada pelo aparelhamento e pelo empreguismo – e sem relevância em termos de audiência. Prova disso é que em maio de 2008 uma pesquisa CNT/Sensus revelou que 62% dos entrevistados não sabem da existência da nova TV pública.

Grosso modo, a televisão comercial, de massa, estaria mais voltada para o entretenimento e um pouco de jornalismo, sustentada por inserções comerciais; a estatal, sustentada pelo governo, estaria mais voltada para a divulgação dos feitos oficiais do governo de plantão, com alguma prestação de serviços de utilidade pública e programas educacionais; e a pública, eqüidistante das duas, sustentada pela sociedade, estaria voltada para os interesses dos cidadãos em sua dimensão mais humana. Nas outras duas, ele seria o consumidor, o eleitor apenas.

A rigor, merecem maiores reflexões os conceitos de televisão pública, estatal e comercial, visto que todos se originam de concessões e outorgas "públicas".

Três vertentes de independência

Os sistemas estatal/governamental e privado/comercial são velhos conhecidos nossos. Um, o governo paga; o outro, os anunciantes sustentam.

Individualmente, têm qualidades e defeitos. Falta conhecer a televisão pública e quais seriam suas apregoadas vantagens. Por estar livre dos compromissos dos dois outros modelos, tanto do ponto de vista do financiamento quanto de gerência, a televisão pública, segundo seus defensores, estaria também livre para perseguir uma televisão de qualidade, não voltada exclusivamente para o entretenimento ou para defender os interesses do governante (e financiador) de turno. Poderia inovar, experimentar, criar sem limites.

Poderia dar voz àqueles que não têm voz na televisão comercial e àqueles que aos governantes só servem na urna. Todos os tipos de diversidades culturais, étnicas, de gênero teriam nela uma fonte de expressão.

Ela funcionaria, acredita-se, até mesmo como um êmulo para as televisões comerciais, forçadas que seriam a buscar novos formatos, a encontrar novos temas para seus programas, a optar por conteúdos de melhor qualidade, a partir da concorrência trazida pela televisão pública. Cita-se, como exemplo, o caso do programa infantil Castelo Rá-Tim-Bum, da TV Cultura de São Paulo.

As outras emissoras teriam sido forçadas a melhorar a programação para as crianças porque perderam audiência para a televisão do governo paulista.

Portanto, para estar eqüidistante dos binômios mercado/audiência e governo/propaganda oficial, a televisão pública teria de ser totalmente independente desses entes, em três vertentes: independente financeiramente, independente gerencialmente e, por fim, independente editorialmente.

Condicionantes inegociáveis

Se a TV pública não tiver fontes permanentes de recursos, intocáveis, não será pública; será estatal. Se não puder tomar decisões de contratar, demitir, que salários pagar e tudo mais que caracteriza o gerenciamento de uma empresa, não será pública; será estatal. Se não for editorialmente independente, não puder decidir o que veicular, como tratar os assuntos, seja no jornalismo ou em outro tipo de programação, não será pública; será estatal. Estará sujeita aos humores e desejos do seu financiador governamental (com o dinheiro público, óbvio).

Orlando Senna, logo após sua exoneração do cargo de diretor-geral da Empresa Brasil de Comunicação (EBC, controladora da TV Brasil), divulgou carta pública alertando os representantes da sociedade civil para que intervenham no sentido de tornar a emissora "blindada contra os poderes e interesses governamentais e econômicos".

Esses são requisitos básicos, condicionantes inegociáveis. A televisão pública deveria funcionar no Brasil como deveriam funcionar, idealmente, as agências reguladoras em alguns setores da economia, como a Anatel, a Aneel e a Ancine. As agruras pelas quais elas passam – corte de recursos, interferências ministeriais – mostram que no Brasil a prática é outra. E o exemplo da Anac, com suas indicações políticas – que deram no que deram – não recomenda entusiasmos nesse campo.

Detalhamos abaixo estas vertentes.

O modelo da BBC

Carta de Brasília: "A TV Pública deve ser independente e autônoma em relação a governos e ao mercado, devendo seu financiamento ter origem em fontes múltiplas, com a participação significativa de orçamentos públicos e de fundos não-contingenciáveis"

Os mecanismos de financiamento da nova emissora são um dos pontos mais controversos desde sua formação. Se a verba da emissora vier apenas do orçamento da União, não haverá a independência necessária – a TV pública deveria ter sua gestão assegurada através de verbas públicas ou de setores sociais.

A TV Brasil simplesmente ajuda a inflar o número de rádios e TVs educativas que, na primeira gestão petista, subiu 26%. Ela já nasce contando com 2.000 funcionários, reunião do quadro da Radiobrás com o da TVE do Rio de Janeiro.

Pelas informações disponíveis, do próprio ministro Franklin Martins, a operação da rede pública custará R$ 500 milhões anualmente. Fala-se em financiamento via serviços prestados, patrocínio institucional, uso das leis de incentivo. Mas esse nem sempre é um recurso certo. Para ter uma qualidade constante, a TV pública deverá ter recursos certos.

Aqui cabe um paralelo. A BBC traz um modelo interessante de financiamento: seus recursos provêm basicamente do pagamento, por todos os britânicos que possuem televisão, de uma taxa de 136 libras por ano, dinheiro que não pode ser apropriado pelo governo, nem contingenciado, nem congelado. O orçamento da BBC em 2007 passou dos 3 bilhões de libras.

A derrota de Blair

Afinal, por que o contribuinte será obrigado a arcar com um canal de TV tão caro e tão redundante em relação a seus antecessores? O II Fórum Nacional de TVs Públicas deveria procurar explicações plausíveis para a existência deste novo canal no Brasil.

A instituição de um Conselho Curador composto por representantes da sociedade civil – da sociedade civil próxima ao petismo – não nos dá garantia alguma de que a nova TV vai se livrar do chapa-branquismo. Isto porque os 15 conselheiros da TV – assim como o diretor-presidente e o diretor-geral – foram escolhidos e nomeados pelo presidente, e não por entidades da sociedade civil.

Novamente, a BBC pode ser citada como um tipo ideal: existe uma tradição na emissora em que os conselhos públicos, formados por pessoas reconhecidamente não partidárias, servem para impedir que os produtores de rádio e televisão sofram interferências políticas e comerciais. Seu conselho é indicado pela sociedade, representa de fato a sociedade, e não grupos restritos de pressão e interesse. São eleitos pelo Parlamento, têm mandatos, não podem ser trocados livremente ao bel-prazer de um primeiro-ministro insatisfeito. No episódio envolvendo reportagem da BBC sobre a participação da Grã-Bretanha na guerra do Iraque, Tony Blair pressionou para afastar pessoas do jornalismo da emissora e não conseguiu. A BBC se pôs contra, por exemplo, a guerra das Malvinas e do Iraque e nada abalou sua vida.

"Comunicação moderna, democrática e financeiramente saudável"

Há exemplos no mundo de televisões públicas; as nossas (TV Cultura paulista, e as educativas estaduais e federais), não o são. Mesmo a TV Cultura, que mais se aproxima do modelo no Brasil, sofre influências indiretas constantes do grande patrocinador. E sua quase permanente penúria financeira a torna dependente, sim, do governo paulista, em maior ou menor grau, dependendo do inquilino de ocasião no Palácio dos Bandeirantes.

Não há naturalmente nenhum modelo pronto e acabado para a realização de um projeto dessa ordem. Reproduzir modelos externos bem-sucedidos, como o da BBC, é desaconselhável. Há o modelo norte-americano, mais recente, também tido como exemplar, mas muito longe do alcance e prestígio da BBC. Quem já assistiu à RAI (Itália), TVE (Espanha) e RTP (Portuguesa) tem, às vezes, a impressão de estar sintonizado em alguns dos programas menos recomendáveis de algumas redes privadas brasileiras.

Será necessário pesquisar um caminho próprio e não é impossível que do mero processo de busca surjam decisões cruciais – como a de relativizar (sem, no entanto, desprezar) a importância do fator audiência; ou de perceber a real importância da independência total da TV pública em relação ao poder político.

Por fim, a TV Brasil certamente ainda não é a rede nacional pública de televisão que muitos sonhamos. Embora não tenha sido discutida a contento, talvez seja um importante passo no sentido de provocar o necessário debate sobre o papel dos meios de comunicação no Brasil – procurando "alcançar o seu objetivo de empresa pública de comunicação moderna, democrática e financeiramente saudável", como disse Senna em sua carta pública de despedida.

* Alessandra Meleiro é pesquisadora de pós-doutorado no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
* José Márcio Mendonça é presidente do Instituto Iniciativa Cultural.

TV pública: O direito democrático à informação e à cidadania

Disse Alexis de Tocqueville (1805-1859) que somente os jornais podiam depositar ao mesmo tempo, em milhões de mentes, as mesmas idéias. Daí que sua responsabilização formativa poderia ser autora tanto das virtudes públicas fundamentais ao processo civilizatório democrático, como ser uma perigosa arma de destruição da controvérsia saudável e do amor à cultura por parte de uma nação. Soren Kierkegaard (1813-1855) temia esta última possibilidade e dizia: os jornalistas não conhecem limites porque podem descer sempre mais baixo na escolha dos seus leitores.

No decênio de 1990, David Broder, importante colunista político americano, em uma série de artigos publicados no Washington Post, ao retomar o espírito que presidiu algumas reflexões do século 19 sobre a imprensa, afirmava que os jornalistas deveriam utilizá-la primordialmente para modificar e melhorar o debate público sobre a cidadania. Ainda apostava na força da palavra e dos argumentos como os melhores meios de exercitar as faculdades críticas dos cidadãos.

O mandamento primeiro do jornalista consistia em contribuir para a elevação moral dos homens, ajudando-os na formação de um juízo público esclarecido e responsável. Para tanto, pressupunha-se o pluralismo informativo e a capacidade de resistir às pressões dos interesses privados, voltados tão somente para o lucro e para a conquista de audiência e, por isso, incompatíveis com o direito democrático à informação devido à cidadania.

Fórmulas batidas e viciadas

No atual momento da comunicação no país estamos diante de algo muito mais complexo e perturbador: a força da imagem advinda da televisão, a qual está presente nas residências de todos, como um verdadeiro totem. A tecnologia das comunicações nos coloca diante de algo que até a segunda metade do século 20 sequer se suspeitava. A invasão totalizante da imagem para o interior dos espaços mais recônditos da subjetividade das pessoas. Nada lhe escapa; sobretudo torna as crianças e adolescentes as maiores vítimas indefesas. A televisão tem força plástica e modeladora: os comportamentos daqueles que comparecem na "telinha" são percebidos como normativos.

A barbárie valorativa presente nos programas televisivos, pautados substancialmente por critérios privados de mercado e pela tirania dos índices de audiência, tem relegado sua função de serviço público formativo a uma negligência perigosa. A festejada liberdade dos interesses de mercado tem se sobrepujado a qualquer outra consideração de ordem ético-educativa da sociedade. O imperativo maior deste tipo de negócio é "caçar audiência", custe o que custar.

Isto tem produzido como conseqüência o avassalador nivelamento por baixo dos seus conteúdos programáticos. Sabe-se muito bem que a qualidade da oferta condiciona o gosto e a exigência cultural dos telespectadores e ouvintes. Há experiências feitas na área cultural em várias partes do mundo que comprovam isto.

Diante deste quadro, qual seria o papel de uma televisão pública? A resposta parece cristalina. Ser aquela que tem por obrigação precípua restabelecer padrões programáticos compatíveis com uma nação que se quer mais integrada, mais culta, mais coesa moralmente e mais democrática.

A TV pública tem de ser modelar em ousadia de programação cultural, tem de priorizar a qualidade intelectual de seus programadores para que possam fazer ofertas culturais e artísticas que os coloquem de forma diferenciada no mercado televisivo. Que deixem para trás o lugar-comum da programação habitual, fincada na acomodação preguiçosa das fórmulas batidas e viciadas que infantilizam o espectador, reduzem-lhe as possibilidades de aquisição do juízo crítico e, portanto, não auxiliam na longa e difícil tarefa de construção de cidadãos esclarecidos.

"Fatos" deformados pela opinião

O debate contemporâneo sobre justiça distributiva, reconhecimento de direitos, cidadania, democracia e dignificação da vida aponta para o papel dos meios de comunicação, em especial a televisão, como meios de vital importância na difusão e orientação de valores democráticos permanentes e irrenunciáveis à construção de uma sociedade democrática. Contudo, estes pressupostos são negados cotidianamente nas televisões comerciais. De modo geral, os conteúdos nelas veiculados infelizmente percorrem sentido oposto à afirmação destes valores.

Quanto ao direito democrático da cidadania ao máximo possível de verdade na atividade informativa, o que vemos no Brasil de hoje é o desprezo impressionante pelos fatos e a celebração da opinião do jornalista que a apresenta com todos seus preconceitos e pré-noções como substitutivos dos fatos. Semelhante fenômeno alcançou dimensões assustadoras na sociedade contemporânea, o que suscitou o livro do jornalista italiano Marco Travaglio, cujo titulo emblemático é “O desaparecimento dos fatos”. Pede-se a abolição das noticias para não perturbar as opiniões.

Os âncoras dos grandes jornais televisivos opinam claramente utilizando-se de contrações faciais, exclamações aparentemente inocentes e espontâneas, técnicas de convencimento como se estivessem em espaço privado, conversando com amigos pessoais. O telespectador sequer imagina que estes profissionais da informação estão em uma concessão pública, prestando um serviço público.

A conseqüência disto, infelizmente, é que na consciência coletiva se enraízam e se fixam estes "fatos" deformados pela opinião e, assim, se usurpa sem mais o direito democrático à informação factual realizada com a objetividade necessária à verdade informativa, aliás, função originária da atividade jornalística.

Construção e resgate da memória

A televisão pública pode ser inestimável instrumento de política da memória pública, resgatando fatos da história sobre os quais pesa grande silêncio, tanto quanto fatos do presente, que não são noticiados na expectativa de criar a realidade conforme os interesses e desejos dos poderosos, portanto de parte da sociedade.

A seleção dos fatos da memória como modo de decidir o que os telespectadores devem esquecer, ou não saber, e àqueles que devem ser incessantemente lembrados, constitui uma das operações de poder persuasivo mais arbitrário, fartamente utilizado pelos regimes antidemocráticos.

Construir uma televisão pública no sentido maior que o termo indica pressupõe grande responsabilidade cívica, sendo que uma das mais importantes é o profundo compromisso com a verdade dos fatos, pois este dever preliminar fertiliza a construção e o resgate da memória pública. É fator importante de estímulo do debate público democrático. Somente assim será possível que uma nação discuta abertamente seu presente para incluir todos no debate sobre seu destino comum.

Convívio cívico e bens coletivos

Fato irrenunciável à tarefa de uma televisão pública é sua contribuição à luta pela dignidade da vida, na medida em que constitui valor supremo da democracia como modo de vida coletivo. Desta feita, sua diferenciação fundamental, em meio aos critérios comerciais que presidem as televisões privadas, nas quais a indignidade da vida se torna mercadoria muito vendável, é enfrentar o desafio de se fazer portadora da política democrática de dignificação do telespectador, ofertando-lhe noticiosos e programas culturais do melhor nível possível. Assim fazendo, se torna veículo de elevação da educação nacional, contribuindo fundamentalmente para a dissolução de estereótipos e preconceitos que pesam duramente sobre os pobres, as mulheres, as minorias étnicas e culturais, os negros, os homossexuais. Assim sendo, podemos imaginar a televisão pública como força auxiliar à imperiosa necessidade da revolução educacional no Brasil, cumprindo o papel de meio de revolucionar as referências culturais dominantes.

A universalização da escola, a melhoria dos conteúdos escolares em todos os níveis, a expansão da universidade pública e do ensino profissionalizante serão insuficientes como meios imprescindíveis de elevação do nível geral de educação. Exige, para se efetivar como processo educativo mais profundo e duradouro, o acompanhamento de uma mudança radical dos paradigmas valorativos da televisão brasileira. Para tanto, a televisão pública, voltada para a tarefa de inaugurar novos modelos de veiculação cultural à televisão, pode desempenhar papel decisivo na melhora da qualidade dos padrões gerais de civilização e cultura.

O significado maior deste processo se inscreve na exigência normativa de democratização incessante da democracia como forma política de convívio cívico e construção incessante de padrões mais altos de cultura, de ética, e de política como bens coletivos.

* Walquiria Domingues Leão Rego é professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).