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Por que a franquia de dados na internet é absurda e o que ela causará

O argumento falacioso de que é inviável oferecer acesso ilimitado à rede mudará a forma do brasileiro navegar e, de novo, prejudicará os mais pobres

Por Pedro Ekman*

Recentemente, a Anatel, agência que regula as telecomunicações no Brasil, anunciou que autorizaria a limitação do consumo de dados de internet pelas operadoras. Depois, voltou atrás por “tempo indeterminado”, devido à forte rejeição popular à medida. A crítica foi tamanha que já ensejou o pedido de uma CPI da Anatel no Congresso e a realização de uma audiência pública sobre o tema no Senado, convocada para esta terça-feira 3.

Motivos para a grita dos consumidores não faltam. Até hoje, o negócio funciona assim: na internet móvel (celular), contratamos uma determinada velocidade e volume de dados para se utilizar por mês, seja no plano pós-pago, seja no pré-pago.

Quando o volume de dados previsto na franquia se esgota, a velocidade contratada deixa de valer e praticamente inviabiliza a navegação. Na internet fixa instalada nas casas, escritórios e estabelecimentos que oferecem acesso via wi-fi, até hoje a diferença contratual é apenas em função da velocidade, sem um limite máximo de consumo de volume de dados por mês.

Citando uma comparação que tem sido usada pelas operadoras: se a internet fosse água, a velocidade seria equivalente ao tamanho da boca do cano instalado na sua casa e o volume de dados seria equivalente ao volume de água consumido. Se você quer uma velocidade maior, contrata um cano mais largo. E, independente da largura do cano, não paga pela quantidade de água que consome; ela é ilimitada. Parece um erro, não?

Acontece que há uma diferença básica entre água e os dados da internet. Enquanto o primeiro é um bem finito e pode acabar – fazendo sentido não permitir seu consumo ilimitado ou então a cobrança diferenciada para quem consome mais –, no caso dos dados de internet eles são infinitos e o funcionamento das aplicações varia apenas em função da velocidade de transmissão desses dados.

Limitar o consumo de dados na internet fixa terá enormes impactos para os usuários da rede. O primeiro deles será justamente para aqueles que, hoje, apenas possuem acesso à internet via aparelhos celulares, e que são a maioria da população.

Apenas 50% dos lares brasileiros estão conectados por planos de internet fixa, e nas classes D e E esse índice não passa de 14%. A esmagadora maioria da população se conecta, portanto, apenas através do celular. Boa parte desse grupo não tem mais de cinco reais por mês para gastar em um plano pré-pago. Essa condição faz com que seus planos tenham volumes de dados ofertados muito baixos e, em poucos dias ou horas, sua navegabilidade fique comprometida.

Para continuar navegando no restante do mês, essa enorme parcela da população utiliza o acesso via wi-fi nos mais diversos estabelecimentos Brasil afora. Se o volume de consumo de dados também for limitado na internet fixa, serão raros os locais que vão oferecer acesso gratuito via wi-fi, e a imensa maioria da população ficará simplesmente sem qualquer possibilidade de conexão.

O outro grande impacto será na forma como se navega na rede fixa e se utilizam as aplicações disponíveis na rede. A mudança será brutal. Não se poderá mais assistir a quantos filmes quiser, assistir aulas em cursos de educação à distância, jogar por muito tempo ou fazer longas ligações pelos aplicativos. Quem fizer isso, terá seu pacote de dados esgotado rapidamente. E é justamente isso que as operadoras de telecomunicação querem barrar.

Interesses comerciais e não limitações técnicas

Alegando motivos técnicos para impor a franquia limitada de dados na internet fixa, na realidade, o oligopólio nas telecomunicações busca interesses puramente comerciais. Para compreendê-los, é preciso analisar como a convergência tecnológica vem diminuindo o vasto mercado de telefonia fixa e móvel, internet fixa e móvel e TV por assinatura – serviços explorados hoje por poucas empresas transnacionais.

A possibilidade de se fazer ligações por Skype ou pelo Whatsapp, por exemplo, reduziu fortemente o mercado da telefonia móvel e fixa. Ao mesmo tempo, Netflix, HBO On Demand, YouTube Red e outros canais de conteúdo com preços mais baratos do que os caros pacotes de TV por assinatura estão aniquilando o faturamento das empresas que, até pouco tempo, tinham a exclusividade da oferta deste tipo de conteúdo.

As operadoras Vivo, Claro (NET), Tim e Oi tentaram de toda forma cobrar essa perda de mercado das empresas de conteúdo e das aplicações de internet. Queriam poder reduzir a velocidade de aplicações como o Netflix, YouTube, Whatsapp ou Skype se elas não pagassem pelo direito de funcionar adequadamente na rede.

Mas o Marco Civil da Internet consagrou o princípio da neutralidade de rede no Brasil, obrigando as operadoras de infraestrutura a serem neutras em relação ao conteúdo que trafega em seus cabos. Não conseguindo extorquir as empresas de conteúdo, partem agora para a tentativa de extorquir o consumidor.

Mas o argumento de que é inviável oferecer acesso ilimitado à internet é absolutamente falacioso do ponto de vista técnico. A rede fixa está desenhada para entregar determinada velocidade em determinado ponto. O que importa é a largura do cano e não quantos dados irá passar naquele ponto durante o mês.

Se o volume de dados utilizados na rede como um todo está crescendo – e isso é positivo –, a resposta deve ser novos investimentos, que devem ser feitos para acompanhar esse crescimento.

Isso acontece desde o início da história da internet; o volume trafegado sempre irá crescer. O problema é que as operadoras, que seguem tendo altíssimos lucros, não querem se responsabilizar pelos custos da expansão da rede que elas próprias exploram.

Querem que alguém pague pelo seu desenvolvimento – no caso, o lado mais fraco da corrente, o usuário brasileiro, que já é obrigado a arcar com um dos mais altos custos de acesso à rede do mundo.

Em seu discurso para justificar a mudança nos contratos, as empresas tentam criar a ilusão de que, com a existência de planos limitados, seria possível oferecer pacotes de conexão mais baratos para quem usa pouco a rede e planos mais caros por quem joga muito on-line ou assiste a muitos filmes.

Mas isso não passa de conversa de vendedor, que quer abrir a porta para um modelo onde todos vão acabar pagando mais e onde as infinitas possibilidades da internet acabarão exclusivas para os usuários mais abastados.

Além de injusta, limitação é ilegal

Assim como a quebra da neutralidade de rede, a limitação da franquia na internet é ilegal no Brasil. O Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, proíbe que um serviço essencial seja interrompido (ou degradado a ponto de ficar inviável) por qualquer outro motivo que não o da falta do pagamento.

Isso vale para o fornecimento de água, eletricidade e também para o acesso à internet, que não podem ser interrompidos se o pagamento estiver em dia. Foi o mesmo Marco Civil da Internet que definiu, na letra da lei, a internet como um serviço essencial para o exercício da cidadania. Quem insiste em não reconhecer sua essencialidade são o Ministério das Comunicações, a Anatel e as operadoras de telecomunicações, numa atitude de franco desrespeito legal.

A realidade é que a ameaça de limitação da internet brasileira é mais um episódio de um complexo cenário de disputas entre os interesses das operadoras e os direitos dos usuários da rede no País.

Um quadro que vem sendo agravado por uma tentativa de acordo criminoso entre as empresas e o poder público, que pode resultar na total privatização do que ainda resta de serviço público neste campo. Algo que vai na contramão do interesse público e que atropela a lei vigente, nos tornando ainda mais vulneráveis à sanha das empresas campeãs em reclamações.

Não apenas a forma como você usa a internet está em jogo, portanto, mas todo e qualquer direito dos cidadãos acerca dos serviços de telecomunicações. Silenciar neste momento pode nos levar a um caminho sem volta.

* Pedro Ekman é integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

O olhar da imprensa internacional sobre o impeachment no Brasil

Enquanto a mídia tradicional brasileira mantém discurso de legitimação do impeachment, veículos internacionais dão visibilidade ao risco à democracia.

Por Camila Nóbrega*

Diversidade de narrativas e análises sobre a crise política não faltam no Brasil, mas ela segue engolida pelo monopólio dos veículos tradicionais. Em tom bastante conservador e politicamente localizada à direita, a narrativa que pauta o noticiário do país faz desaparecer boa parte das nuances e oculta personagens e fatos importantes da crise. Neste contexto, a cobertura internacional ganha holofotes e acende o alerta sobre o perigo da concentração da chamada grande mídia brasileira. Protegidos pelo distanciamento e pautados por analistas políticos, pela mídia alternativa nacional e por movimentos sociais, alguns veículos estrangeiros têm chamado atenção por terem mudado seu próprio discurso. Se inicialmente a imprensa internacional acompanhava a ode aos protestos pró-impeachment criada pelos grandes conglomerados da imprensa nacional, houve uma meia-volta significativa. A mudança, que marcou a cobertura da votação na Câmara no dia 17 de abril, tem repercutido.

“O deputado votou ‘sim’ pela abertura do processo de impeachment e disse que fez a escolha pelo futuro do Brasil e por sua esposa e filhos”, traduzia um repórter da BBC Internacional, em flash com imagens diretas da Câmara dos Deputados no domingo 17 de abril, seguido de uma análise sobre a ausência de argumentos relacionados às acusações feitas à presidenta nos discursos dos parlamentares.

“O presidente da Câmara brasileira, Eduardo Cunha, que conduz a votação no dia de hoje, é acusado de corrupção e alvo da Lava Jato”, explicava o canal Euronews. “Milhares de pessoas estão nas ruas, divididas; enquanto há quem comemore, são muitos os brasileiros e brasileiras que denunciam um golpe em curso”, esclarecia a jornalista da Al Jazeera ao vivo, apenas alguns minutos antes da confirmação da abertura do processo.

Durante as cerca de oito horas de votação, o Brasil esteve nas notícias mais importantes (“breaking news”) de centenas de canais de televisão, jornais, rádios e sites de todo o mundo.

E, durante todo este tempo, jornalistas enfrentavam em diferentes sotaques o desafio de explicar o emaranhado de relações de poder e alianças no Congresso brasileiro e a construção de um discurso conservador e autoritário, no caminho que levou à abertura de processo para julgamento de um possível impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Entre os veículos de comunicação que adotaram uma linha mais crítica e apostaram na apuração jornalística própria, especialmente com correspondentes enviados ao Brasil ou até mesmo a partir de escritórios instalados no País, os obstáculos não eram menores.

Afinal, imagine o desafio de explicar que vários dos parlamentares que tinham direito ao voto naquele momento figuravam na lista da operação Lava Jato sob graves acusações de corrupção, incluindo o presidente da Casa.

Se a tarefa de esclarecer a situação é árdua entre brasileiros, imagine o fardo de quem precisa fazer isso para pessoas que não estão sequer familiarizadas com o contexto político do País, apresentando a biografia extensa desses parlamentares que ali vociferavam contra a “corrupção”.

Some a isso a necessidade de traduzir, além de centenas de dedicatórias a filhos e esposas, declarações como a do deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que homenageou Brilhante Ustra, primeiro militar reconhecido pela Justiça Brasileira como torturador.

Em meio às dificuldades – e também às facilidades, é bom lembrar – impostas pelo distanciamento, a cobertura internacional de um dos principais momentos na história recente brasileira marcou grandes diferenças em relação ao que figurou na mídia tradicional nacional. E, acima de tudo, marcou uma virada.

Onde, apenas um mês atrás, veículos descreviam os protestos nas ruas com um certo glamour de luta contra a corrupção, os espaços de questionamento cresceram. Veio à tona o fato de que os motivos para a abertura de um processo de impeachment são, no melhor dos casos, duvidosos, assim como a credibilidade e idoneidade dos deputados que estavam à frente do processo.

A narrativa na imprensa internacional

Enquanto a imprensa brasileira seguiu retratando a votação do impeachment como um jogo de futebol, ficou a cargo da mídia internacional o chamado a reflexões e à garantia de princípios jornalísticos de apuração.

Ganharam espaço detalhamentos sobre o processo da votação em si, o que aconteceria daqui para frente e o fato de que a crise política não se encerraria na votação, independentemente do resultado.

Foram órgãos de mídia internacionais também os responsáveis por pautarem e explicarem os motivos que levam uma grande parcela da população brasileira a denunciar um golpe em curso.

Assim seguiu a semana com uma cobertura mais equilibrada vinda dos meios de comunicação estrangeiros. Entre os impressos, o jornal britânico The Guardian, após o resultado da votação na Câmara, optou por reportar a situação dando espaço à fala do líder do governo na Câmara, José Guimarães, que pediu aos brasileiros e brasileiras contrários ao golpe que permaneçam mobilizados.

O jornal é um dos poucos a dar nome e sobrenome ao processo. Afirmou abertamente que há uma ansiedade da oposição em conseguir o impeachment de Dilma Rousseff a fim de instalar no Brasil o primeiro governo de centro-direita em 13 anos.

O periódico é um dos que também tem feito questão de ressaltar as acusações nas costas do presidente da Câmara.

Aliás, se a ficha de Cunha está longe de ganhar destaque no Brasil, ela é considerada elemento central por muitos veículos da mídia internacional. A versão brasileira do jornal El País também ressaltou na última semana o preço que a oposição aceitou pagar para que o impeachment passasse, em referência à aliança com Cunha e à ocultação de seus milhões não declarados no discurso que passou a apontar apenas a presidenta e o ex-presidente Lula como focos dos escândalos.

Os mesmos questionamentos também ganham espaço nos três principais jornais norte-americanos, de linha liberal: The New York TimesThe Wall Street Journal e The Washington Post, que têm destacado as suspeitas de corrupção contra vários parlamentares à frente do impeachment.

Já a revista alemã Der Spiegel, apesar de manter em seu site um vídeo da votação mostrando apenas as manifestações verde-amarelas, descreveu o processo de votação como “a insurreição dos hipócritas”.

Na América Latina, a cobertura dos jornais hermanos também têm tido um papel importante. O colombiano El Espectador ressaltou a falta de argumentos dos deputados durante a votação, apontando que falas com cunho religioso e até mesmo contra “o comunismo” foram feitas de forma absolutamente descontextualizada.

O La Nación, da Argentina, afirmou que a crise política está longe de acabar e apontou que o País tem uma presidência “na porta da saída de emergência, um Congresso que festeja com euforia a crise política que divide o País e um novo eventual mandatário também suspeito de corrupção”.

Agências independentes de notícias como a PressenzaInternational Press Agency, que tem foco na América Latina – ficam a cargo de análises mais aprofundadas e questionamentos que posicionam a crise política no cenário e de interesses econômicos internacionais.

A crítica internacional à mídia brasileira

A emissora do Catar Al Jazeera trouxe como alvo de questionamentos a própria mídia brasileira, fazendo crescer a discussão sobre o cenário de concentração dos meios de comunicação no Brasil e tocando no calcanhar de Aquiles dos principais veículos do País.

A Al Jazeera foi uma das primeiras a utilizar com mais clareza a palavra “golpe”, explicitando o posicionamento crítico de grande parcela da população em relação à tentativa da oposição de centralizar acusações e investigações sobre o Partido dos Trabalhadores e sobre a presidenta, passando por cima de processos e instituições democráticas e protegendo um número considerável de parlamentares envolvidos nos escândalos da Lava Jato.

A publicação online norte-americana The Intercept também têm colocado a mídia nacional em xeque, principalmente por meio das reportagens do jornalista Glenn Greenwald, que mora no Brasil e se tornou conhecido após publicar reportagens sobre os documentos revelados por Edward Snowden.

No último mês, Greenwald publicou textos no The Intercept sobre a concentração da mídia brasileira e o papel dos veículos do País na construção do discurso conservador contra a corrupção e a favor da retirada de Dilma Rousseff.

O The Intercept também apontou, na última semana, a possível investida do vice-presidente Michel Temer em angariar apoios de setores nos Estados Unidos, por meio de uma viagem de um senador Aloysio Ferreira Nunces (PSDB-SP) ao País.

Por esses exemplos e outros mais, a cobertura internacional tem desempenhado um papel importante nesse momento da história brasileira e tem ganhado status de mais equilibrada, contundente e aprofundada.

A situação, porém, está longe de ser ideal. Os casos relatados acima ganharam repercussão aqui no Brasil exatamente por conterem informações ocultadas pela mídia brasileira. No entanto, a maior parte do que é divulgado sobre a crise política no País ainda se limita a reproduzir fragmentos de agências internacionais e a superficialidade da cobertura dos canais nacionais.

A agência Press Trust of India, principal daquele país, limitou-se, por exemplo, a falar da votação. A leitura descontextualizada não dá sequer a dimensão da divisão de opiniões.

A cobertura restrita se repete também nas agências de notícia russas, que só agora começaram a falar do tema, após semanas de silêncio. A Russian Information Agency só deu espaço ao caso no Brasil após a votação do impeachment na Câmara.

Logo após, o jornal Russia Today publicou uma matéria intitulada “As Olimpíadas serão um sucesso, independentemente do impeachment”, tentando apaziguar os ânimos para os jogos.

Alguns russos têm interpretado o silêncio da imprensa local sobre o que se passa no Brasil como uma tentativa de não trazer ao debate público um caso de impeachment em um dos BRICS – e assim não inspirar críticos de Putin.

Fugindo das armadilhas

Nessa análise sobre cobertura internacional, é importante não cair em algumas armadilhas. Os elogios à cobertura internacional devem ser ponderados, para não resultar em mais retrocessos. Uma coisa é sabida por todo correspondente internacional: é sempre mais fácil falar dos problemas alheios.

É natural que a mídia local tenha mais dificuldades de falar de problemas do próprio território. Com menos relações diretas com poderes locais, às mídias estrangeiras sobra mais liberdade.

Isso não significa, entretanto, que essas mesmas mídias poderão chegar a fazer associações mais amplas, questionando as relações de seus países de origem com escândalos em outras nações, como o que ocorre no Brasil, por exemplo.

Segundo ponto: não faltam exemplos de como a globalização no campo da comunicação também traz prejuízos às narrativas. Nesse olhar geral de contexto mundial faltam, entre outros aspectos, espaço para o esclarecimento sobre o que aconteceu com o Brasil nas décadas que sucederam a ditadura militar e que mantiveram no poder parlamentares que lá estão desde então, assim como as características de coronelismo, que permanecem.

A falta dessas perspectivas a partir de uma mídia brasileira não será suprida por veículos e jornalistas internacionais. Não nos iludamos.

Por fim, um dos maiores erros é olhar para a cobertura internacional como uma idealização em termos de técnica jornalística. As mídias independentes que têm surgido no Brasil são uma boa imagem disso. Se aqui não há espaço para uma boa cobertura, isso nada tem a ver com um padrão de jornalismo. Colocar as coisas nesses termos seria aceitar um enquadramento realizado de fora para dentro, fazendo com que nosso olhar acabe se rendendo a uma análise eurocêntrica.

O que falta no Brasil nesse sentido é uma mudança política, que vem sendo pautada há muito tempo pelos movimentos pela democratização da comunicação. O desafio é a alteração do cenário atual, que viola o direito à comunicação e aos diferentes lugares de fala, absolutamente necessários em um país como o nosso, onde a mídia atribui aos discursos pesos políticos absolutamente desiguais e desproporcionais à composição da população.

* Camila Nóbrega é jornalista e integrante do Intervozes.

Governo e PT pagam a conta por não investir em agência de notícias

Ausência de agência que informe a imprensa estrangeira sobre o Brasil deixa a narrativa nas mãos de grupos privados

A crise política que o Brasil vive virou manchete na imprensa internacional. Mas como essas informações são produzidas e qual relação existe entre esse processo e a arquitetura do sistema de comunicação brasileiro? Para compreender essas questões, o Intervozes convidou o jornalista e pesquisador Pedro Aguiar para abordar a situação das agências de notícias em nosso país e em outras nações.

Por Pedro Aguiar*

Os correspondentes que cobrem a crise política brasileira agora já entendem um pouco melhor os meandros do nosso sistema político. Quando começaram a mandar matéria, no segundo semestre do ano passado, sobre a crise em curso, a maioria estava bastante perdida.

Mesmo alguns que já estão baseados no País há anos tiveram certa dificuldade para explicar como é que uma presidenta sabidamente ilesa de qualquer acusação de corrupção estava sofrendo impeachment por uma tecnicalidade contábil e não por acusação objetivamente relacionada ao escândalo da investigação Lava Jato.

Repórteres estrangeiros expatriados no Brasil vivem o que chamo de “Síndrome de Magu”, em referência ao antológico personagem criado por Fritz Utzeri (1944-2013).

Com seu humor sarcástico, o premiado jornalista inventou, em suas crônicas, o infeliz Harald Magnussen, o “Magu”, correspondente do fictício jornal sueco Montbläat, que sofria de descrédito junto ao editor para quem mandava matérias do Brasil. Da longínqua e perfeitinha Suécia, o chefe não conseguia acreditar nas rocambolescas, porém reais, tramas da política brasileira.

Certa vez, o editor deu a Magu o prazo de 24 horas para desmentir a existência do PMDB. “Como é possível que exista um partido que seja, ao mesmo tempo, da oposição e do governo? Isso é simplesmente impossível! Ou você para de beber ou vai para o olho da rua!”, vociferava o chefe sueco contra o pobre correspondente, numa crônica de julho de 2005.

É, no entanto, exatamente essa a função dos correspondentes. Eles precisam não só explicar, mas frequentemente convencer os seus superiores e colegas nos países de origem de que estamos, sim, à beira de um impeachment sem crime, reféns de umparlamento cujo presidente da câmara baixa é réu por corrupção, mas campeão da moralidade, em que setores da social-democracia pedem a volta do autoritarismo e em que a esquerda corteja o apoio do partido da ditadura militar para tentar se sustentar no poder.

E essa tarefa seria bem menos árdua se o País contasse com um aparato institucional de distribuição de notícias sobre nós mesmos e que fossem escritas pelos nossos próprios jornalistas, nas línguas estrangeiras. Isso seria feito com uma agência de notícias internacional. Mas não.

O Brasil fez uma opção histórica por não ter uma agência de notícias voltada para fora, publicando em inglês e em espanhol, dada a nossa inserção na América Latina, e enviando– não só publicando, mas fazendo a logística da informação da fonte até o cliente, até que chegue nas mãos dos jornalistas estrangeiros – esse tipo de conteúdo.

Fizeram essa opção tanto o governo, que em 13 anos de PT abdicou de construir uma política nacional de comunicação, confiando na docilidade da mídia privada nacional, quanto os empresários dessa própria mídia, que nunca articularam uma agência cooperativa formada por joint-venture entre os principais jornais brasileiros, como são aAssociated Press norte-americana, a Ansa italiana, a DPA alemã e a Kyodo japonesa, entre muitas outras.

Todas essas agências são resultado da associação entre os jornais, revistas e emissoras de seus respectivos países, que deixam de lado a concorrência setorial para montar um serviço que beneficie a todos, compartilhando custos de cobertura e de distribuição externa de seu material original (sem abrir, é claro, mão do material exclusivo nem dos furos).

Em vez disso, temos basicamente dois tipos de “agências” brasileiras: ou a dos conglomerados (Agência Estado, Folhapress, Agência O Globo), que são balcões de revenda de fotos e textos já produzidos pelas equipes dos jornais de cada grupo; ou nossa única agência de notícias estatal federal**, a Agência Brasil, a qual produz uma quantidade ínfima de quatro ou cinco matérias em inglês e espanhol por dia (ainda que o trabalho, conduzido pela jornalista Olga Bardawil, seja admirável, respeitável e melhor que nada, já que era rigorosamente nada até 2012).

Nos dois casos, essas agências produzem notícias brasileiras para brasileiros. Para os gringos, de fato, ninguém escreve nada.

Mas a “introspecção” da Agência Brasil não é a única causa, e sim um ponto entre uma série de escolhas políticas feitas pelos governos Lula e Dilma. Não aderir à Telesur, criada em 2005 com participação de Venezuela, Argentina, Uruguai e Equador, foi uma escolha. Acabar com o Canal Integración, que produzia conteúdo audiovisual em espanhol para a América Latina, em 2010, foi outra escolha.

Não redistribuir a verba publicitária federal, atribuída pela Secretaria de Comunicação Social (Secom), levando ao sufocamento financeiro de mídias independentes, inclusive algumas históricas que também tinham edições internacionais em outros idiomas, como aCadernos do Terceiro Mundo, foi mais uma escolha.

Tudo isso contribuiu para a manutenção do isolamento midiático do País, a despeito de esporádicas capas da The Economist. Esse tipo de ausência faz o Estado brasileiro pagar caro por não ter quase ninguém que entenda de Brasil publicando na imprensa internacional.

No fim de março, o jornalista Glenn Greenwald notou, em artigo, que grande parte da cobertura estrangeira sobre o Brasil é feita citando a mídia corporativa privada brasileira, que tem partido tomado na crise e está longe de tentar isenção.

No começo de abril, na TV Brasil, o professor Laurindo Leal Filho, especialista em comunicação pública, elogiou o trabalho dos correspondentes baseados por aqui, mas notou a dificuldade em manter a soberania informativa sobre as informações a respeito do País e que saem deste.

Brasil está isolado no cenário mundial da produção de notícias

Em outros países de mesmo grau de desenvolvimento que o Brasil, como os que compõem os BRICS, há alguma agência de notícias que distribui, de forma permanente, notícias em inglês. Os modelos e arranjos institucionais são variados, mas os exemplos servem para ilustrar as possibilidades de organização das agências.

A China sustenta a gigantesca Xinhua, que presta serviço noticioso em dez idiomas, emprega 8 mil jornalistas e tem 138 escritórios espalhados pelo mundo.

A Rússia mantém duas agências distintas – a TASS, desde os tempos soviéticos, e a recém-criada Sputnik, que produz conteúdo para rádio em cinco idiomas e web em 31 idiomas, além de enviar 790 matérias por dia, em média. A PTI, da Índia, é outro colosso formado pela cooperação entre jornais concorrentes indianos, com 400 jornalistas que produzem 2 mil matérias por dia.

Para ficarmos só em nossa região, a Argentina mantém a Télam (Telenoticiosa Americana) desde a primeira época de Perón. Embora ameaçada pelos cortes orçamentários do governo Mauricio Macri, segue como um canal de referência nacional e internacional para bom jornalismo – e para cobrir as notícias argentinas.

Os governos da guinada à esquerda latino-americana entenderam o potencial multiplicador das agências e, por isso, investiram no setor.

A Venezuela de Chávez remodelou sua antiga Venpress como a AVN (Agencia Venezolana de Noticias), enquanto o Equador de Rafael Correa estabeleceu a Andes (Agencia de Notícias del Ecuador y Sudamérica), a Bolívia de Evo Morales criou a ABI (Agencia Boliviana de Información) e o Paraguai de Fernando Lugo fundou a IP-Paraguay.

Os países sul-americanos que não têm agências públicas de notícias são Colômbia e Chile, justamente os dois geopoliticamente mais próximos dos Estados Unidos.

Nenhuma dessas empresas é só “um site”, como ocorre com a nossa Agência Brasil. Ao contrário desta, as demais contam com estrutura de transmissão de informação até os destinatários finais, seja por linha dedicada, intranet ou conexão via satélite.

Com exceção da ABI e da IP-P, elas operam em mais de um idioma (em geral, pelo menos o nativo e o inglês), fazendo da tradução parte central de sua rotina produtiva. E, com isso, conseguem tornar-se referência mundial na cobertura do noticiário sobre seus respectivos países, especialmente garantindo que os jornalistas estrangeiros tenham acesso aos pormenores do dia a dia.

Mesmo que só publiquem uma pequena fração do conteúdo, eles pelo menos recebem e leem conteúdos mais completos. Assim, na hora de cobrir uma crise, não partem do zero, mas de uma base informativa construída paulatinamente.

Não podemos esperar que os jornalistas lá fora aprendam português para nos cobrir com propriedade, factualidade, apuração própria e checagem minuciosa. Não podemos contar com a boa vontade deles em vir buscar informações verídicas e de fonte confiável sobre nossa realidade, nosso contexto e nossos processos históricos.

Não podemos confiar na imparcialidade já há muito abandonada da nossa imprensa privada para ser referência junto aos repórteres e editores do exterior.

O cenário só será alterado quando o Estado brasileiro contar com uma agência de notícias voltada para fora, com serviço permanente em língua estrangeira e volume significativo deoutput, com entrega garantida por canais de distribuição e logística de transmissão própria e soberana.

Enquanto isso não ocorre, continuamos largamente ignorados e vistos como exóticos pela cobertura estrangeira – que, na falta do fluxo contínuo de notícias em língua estrangeira, só fala do País na excepcionalidade de crises ou do pitoresco –, deixando que os outros contem para o mundo os acontecimentos que definem a nossa própria história.

*Pedro Aguiar é jornalista e doutorando em Comunicação Social na UERJ. 

** O Intervozes trabalha com o conceito de comunicação pública ao referir-se à Agência Brasil, mas manteve, no texto, o termo apresentado pelo autor que, como convidado do nosso blog, manifestou livremente sua opinião sobre os assuntos abordados.

A legitimidade do impeachment construída pela grande mídia

A aprovação do impedimento de Dilma foi alvo de uma construção de sentidos junto à “opinião pública” e se mostrou elemento essencial deste jogo

Por Mônica Mourão e Helena Martins*

A ausência de discussões profundas sobre a situação do país e o excesso de discursos reacionários que vimos no domingo 17 não se restringiram às falas de parlamentares na Câmara dos Deputados. Nos últimos meses, foram recorrentes também nos meios de comunicação brasileiros.

Desde o ano passado, toda uma construção de sentidos veio legitimando a aprovação daadmissibilidade do pedido de impedimento da Presidenta Dilma Rousseff. Assim, a “opinião pública” – em essência, a “opinião publicada” pelos órgãos de comunicação hegemônicos –, um elemento essencial deste processo, se mostrou garantida neste jogo.

Não era preciso, portanto, ir muito além neste domingo. Assim, a cobertura do dia da votação foi permeada por uma maior sutileza em relação à exposição dos posicionamentos dos grandes conglomerados midiáticos – seguindo a tendência dos últimos dias, como já tínhamos mostrado neste blog.

Exceções em tom mais agressivo ficaram a cargo de emissoras de rádio como a Jovem Pan, que transmite em cadeia nacional e manifestou sistematicamente, num discurso grosseiro e conservador, seu apoio à queda do governo.

A TV Globo anunciou que acompanharia as movimentações no Congresso Nacional a partir das 9h da manhã. Poucos minutos depois, começou a entrar com flashes do jornalismo em meio à programação de esportes e entretenimento.

A partir das 14h, com o início da sessão na Câmara, deu exclusividade à cobertura política. Durante todo o dia, o equilíbrio da reportagem foi bem maior do que no início da crise, quando a Globo atuou como agente político importante, conclamando a população a ir às ruas contra o governo.

Contudo, o equilíbrio pretendido foi apenas aparente. Uma análise atenta permite perceber as artimanhas do discurso. Até o início da votação, ele se baseou principalmente em dois pilares complementares: a defesa da legitimidade do processo de impeachment e das manifestações de rua a favor da derrubada da Presidenta.

Logo em sua primeira participação, Alexandre Garcia tratou da derrubada de Fernando Collor, comparando os dois processos. Segundo o jornalista, desta vez, houve bem mais tempo entre o pedido de saída da Presidenta e sua análise pela Câmara do que ocorreu com Collor, em 1992.

Garcia também afirmou que o Supremo Tribunal Federal (STF) legitimou o processo, ignorando as opiniões contrárias de dezenas de juristas que defendem não haver motivos legais para o impedimento de Dilma e o fato de o Supremo ter se debruçado sobre o rito e não sobre o mérito da questão.

Mais tarde, destacou os atos pró-impeachment, dizendo que “a cidadania está nas ruas, mostrando que não fica em casa pra ver a banda passar”. As “ruas” foram identificadas com uma parte dos manifestantes apenas, constituindo mais um argumento a favor da legitimidade da mudança no comando do país.

Ao longo das entradas ao vivo dos atos, os milhares de manifestantes que saíram às ruas em todo o país contra a medida foram caracterizados como ligados a partidos políticos, à base aliada do governo, a centrais sindicais e ao PT (representado pela cor vermelha, ignorando que o simbolismo político dela é mais amplo e anterior à existência deste partido).

Na manhã da segunda 18, a manchete na capa do portal d’O Globo era nítida: “Manifestantes contra Dilma comemoram; petistas choram”. Dessa forma, a legitimidade das “ruas” foi construída de acordo com a agenda política da emissora, que optou inclusivepor invisibilizar setores críticos ao governo, mas que protestaram em defesa da democracia.

Cobertura rasa

A estratégia do Grupo Globo, seguida por boa parte da mídia brasileira, também se manifestou na cobertura rasa dos fatos e na ausência de jornalismo de fato. Registros dos atos e de declarações de deputados foram abundantes. Não se viu, contudo, apuração, investigação, contextualização e problematização do processo em curso.

Os argumentos que embasam o pedido de impeachment não foram apresentados, muito menos os de sua defesa. Nenhum convidado externo – nem mesmo um “especialista” alinhado ao posicionamento da Globo – foi convidado a discutir a situação do país.

Ao longo de toda a manhã, a GloboNews, principal canal jornalístico do país, se limitou a acompanhar atos favoráveis e contrários ao impeachment em diversas cidades, na cobertura comandada por Leilane Neubarth e Raquel Novaes. Uma vez mais, a escolha dos ângulos das imagens, em geral, favoreceu o primeiro grupo. Imagens muito abertas ou muito fechadas do ato em Copacabana contra o impeachment deram a entender que a quantidade de presentes era menor do que a realidade.

No Salão Verde da Câmara, após uma das entrevistas de Cristiana Lôbo com deputados, ao falarem dos parlamentares indecisos, Novaes chegou a questionar se a indecisão era porque eles não teriam chegado a uma conclusão jurídica ou se, de fato, o processo estava completamente “politizado”. A pergunta ficou sem resposta.

Apesar da crise profunda que vivemos, a política foi reduzida pelos meios de comunicação a artimanhas de bastidores e o processo do impeachment, a uma troca de ocupantes da cadeira. Assim, a suposta imparcialidade escondeu, na verdade, a escolha de não aprofundar a análise do fato e de suas implicações para o presente e o futuro do país.

A mesma abordagem tem marcado a cobertura do dia seguinte à votação. Os principais canais de TV insistem apenas em recuperar os números e movimentações que ocorreram no domingo e a descrever as próximas etapas do afastamento, agora no Senado. As críticas, uma vez mais, ficam a cargo da imprensa internacional.

O conservador La Nación, da Argentina, falou em “vergonhosa tentativa de golpe”. OPágina 12 tamém destaca, na capa desta segunda, a ocorrência de um golpe, anunciado em letras garrafais na edição. A votação de domingo é definida assim: “em um virtual golpe institucional, a Câmara dos Deputados do Brasil, presidida pelo político mais denunciado por corrupção, aprovou o impeachment contra a Presidenta Dilma Rousseff”.

Cunha protegido

Se lá fora a ficha corrida de Eduardo Cunha é considerada um elemento central deste processo, por aqui ela está longe de ganhar destaque. A TV Globo, antes da votação, cuidou de contextualizar seletivamente as figuras políticas envolvidas no jogo. Enquanto o líder do governo José Guimarães (PT) mereceu uma associação ao irmão José Genoíno, condenado no processo do mensalão, o presidente da Câmara não teve sua reputação posta em xeque.

William Bonner chegou a lembrar que ele é alvo de processos, mas sem explicar quais ouinformar que já há provas contundentes de corrupção praticada por Cunha, réu no Supremo Tribunal Federal e investigado pela Comissão de Ética da Câmara. Afinal, colocar dúvidas sobre quem conduz o processo de impeachment seria questionar a própria legitimidade da ação contra Dilma.

A imprensa escrita também aliviou para Cunha. Em matéria da Folha de S. Paulo que detalha biografias de participantes dos processos de Collor e de Dilma, Cunha é descrito como “presidente da Câmara dos Deputados, acolheu pedido de impeachment contra Dilma após ter perdido apoio do PT contra sua cassação”.

Já Dilma é a “acusada de ter praticado as pedaladas fiscais, entre outros” e Lindberg Farias é “senador (PT-RJ) investigado pela Operação Lava Jato, é um dos defensores de Dilma; afirma que o impeachment é ‘golpe’”.

Ao olharmos para a imprensa internacional, a diferença de abordagem fica clara. Nos últimos dias, The New York Times, The Wall Street Journal e The Washington Post, os três principais jornais americanos, destacaram as acusações que pesam contra aqueles que conduzem o processo de impeachment, especialmente Eduardo Cunha.

Nesta segunda, o britânico The Guardian, ao comentar a derrota do governo, não apenas citou corruptos como Cunha, Paulo Maluf e vários outros deputados que votaram contra Dilma quanto destacou o teor reacionário de suas falas.

“Numa noite escura, o ponto mais baixo foi quando Jair Bolsonaro, um deputado de extrema direita, dedicou o seu voto ‘sim’ à Carlos Brilhante Ustra, um coronel que chefiou a unidade de tortura do Doi-Codi contra a ditadura. Rousseff, uma ex-guerrilheira, estava entre os torturados”, escreveu o correspondente, fazendo críticas a diferentes partidos políticos brasileiros.

Depois das falas ouvidas neste domingo na Câmara, está claro que os desafios colocadossão enormes. Um deles, até hoje não efetivado, embora reivindicado historicamente, é umamudança estrutural no sistema de comunicação do país. Ou enfrentamos esse debate, mesmo em meio à crise, ou não garantiremos qualquer diversidade de vozes e opiniões na mídia, e o poder da liberdade de expressão seguirá nas mãos de poucos.

Outras vezes veremos a democracia ser atropelada pela articulação de instituições que se valem de seu poder político, econômico e simbólico para definir os rumos da vida coletivado país. O Brasil acordou hoje mais cinza. E isso se deve também à ausência de reformas e à atuação dos meios de comunicação no jogo político.

* Helena Martins e Mônica Mourão são jornalistas e integram o Intervozes. Colaborou Iara Moura.

O que o direito à comunicação tem a ver com você?

Por Raquel Dantas*

A comunicação é algo tão natural da nossa lógica de funcionamento humano e tão intrínseca a nossa existência em sociedade que dificilmente percebemos as várias limitações que se apresentam a nós, cidadãs e cidadãos, no seu exercício.

Afinal, estamos nos comunicando a todo instante. Talvez por isso seja difícil, a princípio, identificar a comunicação no rol dos direitos básicos e fundamentais como outros que facilmente surgem a nossa cabeça quando pensamos sobre eles ou nos dispomos a reivindicá-los. A noção de direito denota algo que precisou ser caracterizado como tal para que pudesse ser garantido a todas e todos. Ou seja, um aspecto da vida social que claramente coloca em cheque a dignidade e a justiça entre os cidadãos se for reservado a uns e a outros não. Apesar de ser um desses direitos, a maior parte de nós não compreende a comunicação como tal. E, consequentemente, não identifica como ele pode ser violado. Se você não sabe que tem um determinado direito, como você saberá que ele está sendo violado? Essa é a premissa!

Você pode matutar aí com seus botões que liberdade de expressão e acesso à informação caracterizam o direito à comunicação; e ficar tranquilo considerando que esses dois aspectos são facilmente resolvidos se você consegue falar o que pensa e tem meios de comunicação aos quais pode recorrer, conforme as suas escolhas, que lhe garantam o conhecimento sobre os fatos do mundo. Tudo bem se não houver barreiras para isso. Mas você fatalmente tem. E não se “preocupe” que não é exclusividade sua. Seus amigos, familiares, vizinhos, colegas de trabalho, assim como eu, também estamos na mesma.

Liberdade de expressão é um termo lindo (se não avançarmos sobre a dignidade do outro) e essencial para qualquer sociedade que se preze democrática. No entanto, ela está bem além da capacidade natural do alcance das nossas vozes. Por quê? Porque nossas diferentes visões de mundo, nossas múltiplas características culturais, nossos diversos grupos sociais, todos devem estar representados nos meios de comunicação de massa. Falo daqueles que chegam às casas de praticamente todos os brasileiros e que são espaços públicos, concedidos pelo Estado para que empresas operem: o serviço de radiodifusão – rádios e tvs.

Eu e você devemos ter mecanismos para expressar nossas opiniões no mesmo patamar de alcance desses grandes meios. Só que você talvez não consiga espaço nos já existentes. Muita gente nunca vai conseguir. Podemos ter conhecimentos técnicos para montar uma TV ou uma rádio, por exemplo, mas talvez nos falte grana. E o principal: se não formos política ou economicamente influentes, o Estado não nos dará autorização para que tenhamos nosso próprio veículo. Ou vamos enfrentar muita burocracia e tempo para conseguir, quem sabe, uma autorização para montar uma rádio comunitária que não vai poder chegar a 1 km de raio do ponto de transmissão. E se inventarmos de tentar sem permissão, vai ter polícia levando equipamento, multa e até prisão. A tentativa de exercer o direito de falar, nesses casos, é tratado como crime. Mas quando um veículo de grandes proporções (como a maioria) comete um erro, como por exemplo, criminalizar publicamente alguém sem esta tenha cometido de fato um crime, essa pessoa não tem mecanismos acessíveis para fazer com que o veículo seja responsabilizado e fazer com que todo mundo tenha a possibilidade de saber que houve uma injustiça. Você sabia que isso deveria ser garantido? É só pensar que poderia ser com você.

Um morador de rua, muito provavelmente, também não poderá fazer sua voz ser ouvida no jornal, porque não será entrevistado numa matéria sobre direito à cidade. Terão como fontes um especialista, um acadêmico e um pedestre que tem onde morar. Também vai ser difícil algum programa de TV querer saber o que um jovem da periferia pensa sobre a violência e se ele concorda ou não com a redução da maioridade penal. O silenciamento de alguns grupos ou indivíduos é uma forma de criminalização. É lhe negar o direito à expressão, e muito mais. Lhe negar o direito à própria cidadania, já que sem representatividade você não existe para reivindicar um espaço na sociedade. Isso também caracteriza o direito à comunicação.

O acesso à informação é outro aspecto caro numa sociedade que respeita os cidadãos e zela por sua participação política. Infelizmente, grandes grupos – que possuem praticamente todos os meios – falam a partir de um mesmo patamar social, econômico, e até com lentes políticas muito semelhantes. Como saber algo que está fora dessas zonas de interesse? Afinal, quem tem poder tem informação a guardar para preservar seu status.

Ok! Mas tem também a internet que dá a possibilidade de acesso livre às informações. Mas quem disse que o acesso é fácil? Você sabia que metade dos brasileiros não tem acesso à internet? Pois é. E até você que tem como pagar um plano de internet caro e está acessando esse conteúdo agora, sabe que o seu acesso é bem aquém do que deveria ser. Não é? Fora isso, nosso uso da rede está dominado por grandes empresas como o Google e o Facebook que monitoram por onde navegamos, armazenam nossos dados, e ainda limitam o que temos acesso pelo nosso poder de compra e pelo ranking de coisas que foram pagas para estarem no topo da lista das buscas online sobre qualquer assunto que você procure. O mundo é muito mais plural do que a nossa timelime e há muita coisa no mundo virtual e na vida fora da internet que nos diz respeito e a gente não faz a menor ideia.

A não ser que você seja amiga ou amigo do dono de uma emissora de TV ou rádio; um político influente amigo do dono; ou que você mesmo seja dono ou dona de um grande veículo de comunicação, o seu direito à comunicação também está sendo violado. Apesar de tudo o que nos cerca na atualidade estar tão mergulhado no mundo da informação, isso não quer dizer que temos igualmente acesso a variados meios, e que esses meios estão nos oferecendo informação de qualidade; que conseguem representar nossa pluralidade de vozes; que temos como obter informação variada sobre os mesmos temas para que possamos chegar a nossas próprias conclusões sobre o que é de interesse público; que estejamos usando o incrível potencial revolucionário da internet em prol da evolução da sociedade e do bem comum; que as comunidades rurais e as periferias estejam se apropriando do seu direito à comunicação e fazendo seus próprios veículos alternativos; que a mulher negra consegue se defender do racismo e machismo das propagandas de cerveja. Em tudo isso e muito mais, a informação tem um potencial de grande impacto: transformar consciências. Conhecer é deixar de ser alheio a algo. Quando se trata de alguma coisa que lhe diz respeito, é ter nas mãos a possibilidade de agir, reivindicar. E reivindicar é nada mais do que exercitar a cidadania. Essa ilusão do conhecimento que nos deixa alheio ao nosso direito à comunicação sempre servirá a alguém.

Na Semana em que comemoramos o Dia Nacional de Luta pela Democratização da Comunicação, lanço a pergunta por todos os meios que consigam chegar até você: como seria nossa sociedade se deixássemos de ser alheios ao nosso direito à comunicação?

*Raquel Dantas é comunicadora popular do FCVSA/ASA pela Cáritas Regional Ceará e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Texto originalmente publicado no site da ASA Brasil.