Canal da Cidadania: democratização da televisão ou mais uma miragem da TV digital?

No dia 24 de março de 2010, com a publicação da Portaria nº 189/10, o Ministério das Comunicações (Minicom) finalmente estabeleceu as diretrizes do Canal da Cidadania, previsto no Decreto nº 5.820/06 e, talvez, a maior promessa que restou de todo o processo de discussão sobre a digitalização da TV, no Brasil, até a decisão, em 2006, da adoção do padrão japonês ISDB-T. Este sistema seria "hibridizado" com componentes brasileiros, como o middleware Ginga, que, no entanto, não vingou. Já a regulamentação do Canal da Cidadania, por parte do Minicom, só foi feita em 19 de dezembro de 2012, na Portaria nº 489/12. O Canal, que consiste na exploração de um canal "multiplexado", com quatro faixas de programação (Governo do Estado, Prefeitura Municipal e duas faixas para a sociedade civil), seria a compensação, ao menos no plano do discurso, que o Governo Federal daria para tornar a propriedade da radiodifusão brasileira mais plural e diversa,  partir da implantação atual do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (SBTVD-T).

Acontece que, já em março de 2013, o ministro Paulo Bernardo (PT) alterou a norma que sequer completara três meses. A retificação tinha como um dos motivos os encaminhamentos dados pelo governo para a faixa de 700 MHz, o chamado “dividendo digital”. A principal mudança na portaria do regulamento do Canal da Cidadania é a concessão não só aos governos estaduais, mas também às prefeituras – com prioridade a estas – do direito de fazer a multiprogramação nas emissoras educativas já existentes. Neste caso, o "novo" Canal da Cidadania acaba ficando limitado, na prática, a um apêndice de televisões estatais, que seguem longe de ser um modelo de televisão pública, estando mais próximas do caráter “governamental”.

A ideia, com a mudança, é fazer com que as estações do campo público (estaduais, educativas, comunitárias) possam promover a transição tecnológica para o digital sem ocupar os canais de UHF que antes estavam destinados a elas, liberando-os para a exploração pelas operadoras de telecomunicações. A história ganha tonalidades mais nebulosas porque a nova portaria determina que “não será outorgada, no âmbito do respectivo município, a autorização referida no item 4.1”. Este, por sua vez, diz que o Ministério das Comunicações “outorgará autorização em cada Município contemplado no Plano Básico de TV Digital, ressalvadas as situações de impossibilidade técnica, um canal digital com largura de banda de seis megahertz, para a exploração do Canal da Cidadania pelos Estados, Distrito Federal, Municípios e fundações e autarquias a eles vinculadas”.

Interessante, ainda, lembrar que, desde a Portaria de março de 2010, que já previa um “Conselho de Comunicação Social”, os dispositivos de participação foram ficando cada vez menos claros. A Portaria do regulamento, de dezembro de 2012, diz somente que:

1) o ente ou a entidade autorizada a explorar o Canal da Cidadania deverá instituir um Conselho Local para zelar pelo cumprimento das finalidades da programação previstas no item 3.1 e manifestar-se sobre os programas veiculados;

2) o Conselho Local deve ter uma composição plural, de modo a contemplar a participação dos diversos segmentos do Poder Público e da comunidade local;

3) cada Conselho Local estabelecerá seus mecanismos de diálogo com a sociedade e terá acesso ao relatório do Ouvidor para a elaboração de suas análises, podendo encaminhar requerimentos e denúncias ao Ministério das Comunicações.

Além disso, não está expresso para que faixa de frequência devem migrar os canais da Rede Legislativa de TV Digital, que já têm dividido o canal 61, em “multiprogramação”, entre a TV Câmara, a TV Senado e as emissoras locais da Assembleia Estadual e do Legislativo Municipal, em São Paulo (capital, além de Barretos, Jaú, Tupã e Ribeirão Preto), Brasília, Belo Horizonte, Fortaleza e em Porto Alegre, com a previsão próxima de expansão em outras dezenas de cidades. O que vão fazer com isso? Se jogarem para o VHF, vai embora a mobilidade dos canais públicos/estatais. Portanto, além de todo o problema “técnico” da localização dos canais na frequência, deve-se avaliar também de que forma essas mudanças podem deixar a 'Cidadania' à mercê de emissoras estatais, às quais a população mal tem acesso desde a origem.

Recentemente, várias entidades de radiodifusão comunitária publicaram artigos, manifestos e notas públicas contrários à postura do Minicom no caso da faixa dos 700 MHz. Nos textos, os movimentos fazem referência ao “compromisso” manifestado pelo então ministro Hélio Costa, à época da escolha do sistema da TV digital, de reservar o chamado 163 “UHF-alto” (canais de 60 a 29) para a digitalização das emissoras dos sistemas público e estatal. Mas o que não está escrito não vale como norma. Os decretos 4.901/03 e 5.820/06 (e as respectivas Exposições de Motivos), por exemplo, também prometeram (e ainda prometem) grandes conquistas e são documentos oficiais, mas o Estado brasileiro ainda não garantiu praticamente nada na prática.

O argumento do ex-ministro possivelmente deve valer como instrumento político de mobilização para a sociedade civil, mas, se não houver nenhuma iniciativa além da reclamação, dificilmente a crítica vá resultar em algo além de novas afirmações de que a reserva de espectro não está assegurada em lei e, por isso,não representa um direito líquido e certo das emissoras públicas. O documento oficial que menciona a reserva dos canais de 60 a 69 é a Norma Geral para Execução dos Serviços de Televisão Pública Digital, publicada pela Portaria nº 24, assinada por Lula em fevereiro de 2009. A fragilidade jurídica do instrumento, que pode ser alterado a qualquer momento num ato discricionário da presidenta Dilma Rousseff ou do próprio ministro Paulo Bernardo, debilita a garantia de que o previsto na portaria seja cumprido.

Dessa forma, o redirecionamento da faixa dos 700 MHz para as empresas de telefonia móvel, assentado em critérios eminentemente econômicos, pode gerar gastos adicionais ao erário, desperdício de investimentos já realizados por emissoras públicas, descontinuidade dos serviços públicos e insegurança jurídica para governos, casas legislativas e para associações que já tinham como certo uma banda de frequência para manter as operações de radiodifusão das licenças outorgadas pelo próprio ministério.

Daniel Fonsêca é jornalista, doutorando em Comunicação pela ECO/UFRJ e integrante do Conselho Diretor do Intervozes

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