Tipificar manifestantes é preciso, democracia não é preciso?

“Uma minoria de vândalos” muda os contornos dos “atos pacíficos” que brotam por todo o Brasil. Tal interpretação se tornou a vedete dos noticiários mais vistos e lidos do país, animados pelas cenas de destruição e pirotecnia. A suposta contraposição entre “pacíficos” e “baderneiros”, fomentada pela mídia brasileira, passou a ser a principal estratégia que a elite conservadora encontrou para poder continuar fazendo seu chamado à ordem, depois que manifestações inicialmente contra o aumento das passagens do transporte público tomaram proporções inesperadas.

No passado, os Marinho sentiram na própria pele o que significa tentar ignorar grandes atos públicos. Na década de 80, o “doutor Roberto” não permitiu que as massivas manifestações a favor de eleições diretas para presidente fossem ao ar. “O presidente das Organizações Globo temia que uma ampla cobertura da televisão pudesse se tornar um fator de inquietação nacional”, conforme justifica a empresa, em mea culpa que se encontra hoje na página da emissora . Resultado: o Brasil cantou a palavra de ordem, ouvida ainda hoje nos atos públicos, “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo” .

O oligopólio brasileiro da mídia compreendeu que não poderia enfrentar grandes manifestações públicas “de frente”, sob o risco de perder credibilidade. Optou por seguir as tradicionais receitas de guerra que recomendam dividir para conquistar. E nem precisou se desfazer de seu discurso conservador e maniqueísta. “Pacíficos” versus “vândalos” ganhou legitimidade junto a setores que participam das mobilizações, provavelmente com pouca experiência em atos de rua, mas com muita ojeriza à destruição de patrimônio (seja ele privado ou público).

Lê-se, nos noticiários, sobre “excessos” da polícia na repressão às manifestações, tratados como  acidente de percurso ou exclusivos de setores degenerados dentro da corporação. O foco, contudo, é outro: a denominada “minoria de vândalos”. Com holofotes sobre cenas de violência, repetidas à exaustão, incita-se o clima de terror, arma conhecida do velho totalitarismo. Alimenta-se, assim, a criminalização que legitima a violência policial, assim como o sentimento de “terror”, que encontra repercussão em propostas como a da “lei antiterrorismo” ou mesmo na que torna a corrupção um crime hediondo.

O discurso conservador e quase único dos meios de comunicação brasileiros, que embaça qualquer tentativa de visão mais aprofundada dos complexos acontecimentos que vêm se espalhando pelo país, está assentado na concentração que caracteriza o sistema midiático brasileiro e no caráter da elite político-econômica que controla esses meios. As respostas a esse cenário, contudo, também são vistas nas ruas. Desde abril, a campanha "Para Expressar a Liberdade", encabeçada pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, coleta assinaturas de apoio ao projeto de Lei da Mídia Democrática. Nos protestos, a democratização da comunicação também é apontada como parte das reivindicações. O objetivo é ampliar a diversidade de discursos, garantindo a efetivação do direito humano à comunicação.

O que a cobertura midiática e as palavras de ordem entoadas pelos manifestantes deixam claro é que é preciso enfrentar as mistificações e criminalizações que bloqueiam os necessários avanços de nosso sistema democrático.

*Bruno Marinoni é repórter do Observatório do Direito à Comunicação e doutor em sociologia pela UFPE

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