Dois meses após a divulgação do substitutivo ao Projeto de Lei 1.139, chamado ProCultura, o que parecia ser um apoio consensual começa a mudar.
O PL altera a Lei Rouanet, principal mecanismo de incentivo à cultura no Brasil, e estabelece novas regras para dois fundos de financiamento direto ao setor.
Quando foi apresentado, o substitutivo do deputado Pedro Eugênio (PT-PE), que ainda não tem data para ser enviado ao Congresso, obteve uma recepção amena por parte do meio cultural, talvez até por cansaço – as discussões sobre as mudanças remontam a 2004 e o primeiro PL é de 2007. Mas, enquanto aguarda o estudo de impacto do Ministério da Fazenda, o ProCultura vem sendo questionado.
"Não creio que o projeto seja uma verdadeira reforma da política de financiamento", afirma Albino Rubim, professor da Universidade Federal da Bahia e especialista em política cultural. "A expectativa, depois de tantos anos de discussão, era a de que o investimento direto do Estado crescesse de forma substancial", diz Ney Piacentini, presidente da Cooperativa Paulista de Teatro.
A Lei Rouanet, criada em 1991, tinha como objetivo principal aguçar no empresariado o gosto pelo mecenato, ao permitir que as empresas direcionem parte do imposto devido para a cultura. Se, em 2003, o mecanismo movimentou R$ 430 milhões, em 2011 esse valor chegou a R$ 1,3 bilhão. Ou seja, "a lei pegou".
O problema é que os recursos atendem a menos de 25% dos produtores que mandam, anualmente, cerca de 10 mil projetos para o Ministério da Cultura (MinC).
Diante do número de projetos e do orçamento total do MinC, de R$ 1,6 bilhão – o mesmo que o teto para a lei, neste ano – não é difícil entender por que a reforma do texto importa tanto para tanta gente. Sem ela, a produção cultural brasileira corre o risco de agonizar. Mas, com ela, tampouco as coisas funcionam bem.
"O pressuposto da lei produz a concentração porque trata, de maneira igual, empresas de grande e pequeno porte. Infelizmente, é natural que os recursos tenham ficado, sobretudo, nas grandes cidades", diz Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, referindo-se à concentração de 70% dos recursos no eixo Rio-São Paulo.
Para Saron, outra distorção da lei é que ela foi ancorada em eventos. Com isso, atividades perenes, que costumam deixar um legado, foram prejudicadas. Afinal, o logotipo da marca patrocinadora ganha, em um grande evento, uma visibilidade que jamais seria alcançada caso o investimento se desse, por exemplo, no restauro de obras de arte.
Além disso, a lei não conseguiu garantir acesso ao que é produzido e, na visão de alguns produtores e teóricos, acomodou o empresariado a uma forma de mecenato que não o obriga a colocar dinheiro próprio nos projetos incentivados.
E é justamente nesse último ponto que o novo texto apresenta mudanças significativas em relação à proposta saída do gabinete do ministério Gilberto Gil-Juca Ferreira, nos anos Lula.
O PL do deputado Pedro Eugênio retoma, de modo amplo, a possibilidade de dedução integral – o que, nas discussões sobre a lei, passou a ser chamado, simplesmente, de "os 100%". A questão diz respeito à porcentagem de dinheiro próprio (não advindo de imposto) que uma empresa deve investir nos projetos.
Hoje, o patrocinador pode colocar R$ 100 em uma feira de arte contemporânea usando apenas dinheiro de imposto. Os defensores do fim dos 100% propõem que, dos R$ 100 investidos, R$ 30 ou R$ 50 saiam dos cofres do patrocinador, e não dos do Estado.
Para Pedro Eugênio, a retirada dos 100% levaria a uma grave retração nos investimentos. "A cultura passaria a disputar os recursos, de maneira desequilibrada, com outras áreas, como o esporte [que prevê dedução de 100%]", diz o deputado. "O que fizemos foi definir melhor quem pode ter esse benefício."
Hoje, ações que são similares têm acesso a deduções diferentes. Henilton Menezes, secretário de Fomento e Incentivo à Cultura do MinC, cita um exemplo: enquanto um curso de artes cênicas recebe 100% de renúncia, um de artes visuais não passa de 40%. O mesmo ocorre em relação à música: se o projeto inclui voz, o patrocinador tem direito a 30%; se tem só instrumentos, a 100%.
"A nova lei estabelece critérios claros para promover a possibilidade de renúncia máxima. Com isso, poderemos enxergar as ações propostas de forma mais concreta, avaliando o retorno que elas trarão para a sociedade", afirma Menezes.
Para a economista Ana Carla Fonseca Reis, especialista em economia da cultura, a proposta pode solucionar as duas principais críticas feitas aos 100%: a primeira se refere ao uso indiscriminado da dedução máxima; a segunda, ao fato de que a empresa pode gozar de benefícios fiscais ao mesmo tempo em que tem ganhos de marketing. "Da forma como a lei se propõe a trabalhar, exigindo o cumprimento de critérios e impondo limitações ao uso da imagem da marca, os dois problemas podem ser resolvidos."
Para ganhar pontos e conseguir os 100% – em vez de 30% ou 50% de abatimento -, o substitutivo prevê que a empresa deve investir em projetos que sejam, por exemplo, gratuitos e circulem pelo país.
Isso, porém, ainda não responde a uma questão importante: ao manter o mecenato sem obrigação de contrapartida financeira privada, a lei contribui para o amadurecimento do patrocínio cultural?
A resposta é não, segundo Lárcio Benedetti, que esteve à frente dos patrocínios da Votorantim entre 2006 e 2010, e que, como mestrando na Universidade de Budapeste, pesquisa o patrocínio empresarial. "Desse modo, o governo não oferece um estímulo para que as empresas invistam em cultura. Dar os 100% significa oferecer o fim, o principal motivador. Isso, além de ser uma base muito fraca de sustentação, é deseducativo", diz. "Com isso, após 20 anos de Lei Rouanet, o resultado não poderia ser outro: se, mundo afora, sem 100% de incentivo [caso do Reino Unido e da Espanha, por exemplo], o patrocínio empresarial não para de crescer, o Brasil continua refém do benefício fiscal."
Benedetti concorda que, num primeiro momento, a alteração levaria a um recuo por parte de certos investidores. Mas, a longo prazo, essa seria a melhor saída, diz. "A diminuição dos 100% seria um desafio para que os gestores de patrocínio, na tentativa de convencer as empresas a manter a atuação, buscassem os benefícios reais que o investimento em cultura pode oferecer."
O professor Albino Rubin, por sua vez, recusa até o argumento da retração. "Se for verdade que, depois de tantos anos de leis, as empresas só investem em cultura com 100% de isenção, as leis têm um sério problema: elas não conseguiram incentivar as empresas a investir no campo da cultura", diz. "A lei de incentivo da Bahia não oferece 100% e funciona."
Mas a resposta é outra por parte de quem trabalha ao lado das empresas, como Fernando Rossetti, diretor-executivo do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), que tem 142 associados. "A grande maioria das empresas não tem o setor de investimento social desenvolvido a ponto de investir recursos próprios em cultura", diz. "Essa era uma preocupação no começo da reforma. Mas, agora, a tendência é que as grandes empresas atinjam a pontuação necessária para manter os 100%."
Ricardo Ohtake, que dirige o Instituto Tomie Ohtake e percorre os caminhos da política cultural há anos – foi secretário de Estado da Cultura de São Paulo e diretor do Centro Cultural São Paulo e do MIS (Museu da Imagem e do Som de São Paulo) – concorda que os 100% não são o caminho ideal para um verdadeiro mecenato. Mas pondera: "Essa lei deu origem a outras leis com o mesmo formato e, agora, não é possível mudá-la isoladamente. O empresariado se acostumou a usar o incentivo dessa maneira".
Ainda segundo Ohtake, que recorre à lei para manter o instituto, muitas empresas ainda tendem a tratar o apoio à cultura como uma espécie de favor. "A fragilidade da cultura brasileira é muito grande. Por isso, a comparação com outros países nem sempre é realista."
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