Trânsito livre sob ameaça

Quando as operadoras de TV por assinatura dos EUA começaram a aproveitar a infraestrutura de cabos para oferecer acesso à internet, aquilo parecia um bom negócio. Não foi bem assim: os usuários usaram a conexão para assistir a filmes fora da TV. A concorrência interna fez as empresas restringirem o acesso a filmes online. Surgia uma das questões mais controversas da web: a neutralidade.

A neutralidade, explica Jeremie Zimmermann, fundador do Respect My Net, “é o princípio em que as comunicações não podem ser discriminadas”. “É essencial para que todas as pessoas possam acessar todos os conteúdos, serviços e aplicativos. É a garantia que a internet continuará universal e livre, e que todas as pessoas conectadas terão o mesmo potencial de participação”, diz Zimmermann. Seu serviço permite que cidadãos relatem casos de discriminação de tráfego na Europa.

Por pressão do movimento Bits of Freedom, aliado do Respect My Net, a Holanda se tornou na semana passada o primeiro país europeu garantir a neutralidade por lei. A legislação proíbe provedores de interferir no tráfego dos usuários. Técnicas de monitoramento de conexão, como deep packet inspection (DPI), também são vedadas.
A Europa tem motivos para se preocupar com a neutralidade. Em sua primeira análise do tipo, o órgão que regula as telecomunicações no continente (Berec, na sigla em inglês) identificou uma série de “técnicas de gerenciamento de tráfego”. A maior parte dos bloqueios é sobre redes de troca de arquivos (P2P) ou de telefonia sobre IP, como o Skype. A maioria dos bloqueios ocorre em uma camada profunda que o usuário nem percebe que é monitorada.

“A internet é essencial para exercitar nossas liberdades online e qualquer restrição ao acesso é potencialmente uma restrição às liberdades fundamentais, incluindo a de expressão. Isso não pode estar nas mãos das operadoras”, diz Zimmermann.

Segundo Demi Getschko, presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) e um dos pais da internet no Brasil, há casos no País de operadoras de internet que dificultaram o acesso a VoIP, que concorre com a telefonia tradicional. Mas os casos são pontuais. “Ainda não houve uma quebra séria de neutralidade. Mas isso é questão de tempo”, alerta.

Regulação

O Marco Civil da Internet quer se antecipar às empresas. O projeto de lei que propõe princípios básicos para a internet, em discussão no Congresso, veda a “discriminação ou degradação do tráfego que não decorra de requisitos técnicos necessários à prestação adequada dos serviços”. Mas o texto é vago e a aplicação prática, dizem os legisladores, dependerá de regulamentação posterior.

A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) já veda o “bloqueio ou tratamento discriminatório de qualquer tipo de tráfego, como voz, dados ou vídeo, independentemente da tecnologia utilizada”. Mas a neutralidade vai além e regula até o conteúdo que um serviço como Facebook ou Blogger entrega aos usuários. “A neutralidade é complicada porque tem diversas camadas de atuação”, diz Getshko.

Ele enumera três níveis. O primeiro é a estrutura da rede. “Você não pode, por exemplo, piorar o acesso a um produto concorrente”, diz. O segundo nível é na rede IP, como um conteúdo que não pode ser visto em determinado país. E por fim, a restrição mais refinada é em relação aos provedores de serviços e conteúdo – o Google bloquear determinado resultado de buscas, por exemplo.

O Marco Civil quer definir a neutralidade por princípio. Ou seja: nenhuma empresa ou intermediário pode interferir no que circula entre os diversos pontos da rede. Mas há exceções técnicas: é possível dar privilégio, por exemplo, aos pacotes de voz, que não podem atrasar para ser entregues. “É a mesma coisa que trânsito: é preciso deixar a ambulância circular livremente. Mas não se pode impedir, por exemplo, que carros verdes circulem. Tratar desigualmente os desiguais é razoável”, diz ele.

O texto do Marco Civil está em consulta pública online. E o ponto sobre neutralidade é um dos mais polêmicos. O advogado Marcelo Thompson, por exemplo, defende a troca do termo “neutralidade” por “razoabilidade”, delegando aos provedores certo poder para distinguir conteúdos potencialmente danosos. “No Brasil, o dispositivo presente no Marco Civil estabelece a imunidade do provedor”, diz Thompson.

A opinião do advogado foi contestada. “O que a neutralidade de rede diz é: se o YouTube não quiser impor um limite, o Estado não pode cobrar do YouTube que ele devesse ter imposto esse limite”, diz o jurista Paulo Rená. “No tipo de pacote temos outra questão. Uma empresa de telefonia que oferece o serviço 3G fica proibida de diferenciar a velocidade de tráfego de dados de uma rede social específica.”

Há casos, porém, em que a neutralidade não é bem-vinda – no caso de spam, por exemplo, os usuários consentem que a empresa filtre conteúdos em benefício deles. “O usuário tem de saber e concordar com aquilo. Isso tem de ser transparente e acordado abertamente”, diz Getchko.

Por isso os legisladores concordam que é necessária regulamentação posterior – mas, dizem, agora o importante é aprovar uma legislação que garanta o princípio básico. “A internet tem como característica a inovação simples, barata e acessível a todos. Se algo impedir isso, vai contra o espírito principal da internet”, diz ele.

Jeremie Zimmerman acrescenta: “Os governos precisam entender o quanto a neutralidade é crucial para o futuro das nossas sociedades livres e abertas, para permitir a participação, inovação e proteger as liberdades dos cidadãos. Eles precisam garantir esse princípio em lei”.

Pelo mundo

>> Chile – Foi o primeiro país do mundo a proibir, em 2010, a interferência na navegação.

>> EUA – Em 2011, a agência reguladora estabeleceu que o bloqueio não é permitido.

>> Holanda – Provedores agora são proibidos de filtrar e monitorar a navegação.

>> Rússia – A lei permite que provedores controlem o tráfego por segurança.

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