Projeto de mídia transfere Ancine para Minicom e extingue LGT

A minuta do projeto de lei de mídia, formulada no final do governo Lula, e que está na mesa do ministro Paulo Bernardo, é bem ampla e complexa do que o que foi conhecido até agora pelas manifestações públicas do ministro. O Tele.Síntese Análise teve acesso ao documento para consulta, sem direito a cópia. A proposta transfere poderes de agências reguladoras; unifica a política de radiodifusão e de telecomunicações, criando serviços convergentes; e estabelece novos conceitos para redes de rádio e TV abertas. Incorpora ainda mudanças que estão em processo de aprovação pelo Congresso Nacional (como o PL 116 e o projeto das rádios comunitárias) e chega a abrir uma brecha para a regulação do conteúdo televisivo na internet.

Para abarcar tantas frentes, a proposta formulada pelo então ministro Franklin Martins extingue, entre outras, a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), o Código Brasileiro de Radiodifusão e os decretos de radiodifusão. Mas o projeto não faz proposta de Emenda Constitucional, que iria demandar uma quantidade muito maior de votos parlamentares para aprovação. Ou seja, o projeto foi formulado para se adequar integralmente aos artigos 221 e 222 da Constituição, que tratam da comunicação social e das telecomunicações. Em síntese, unifica em um único marco legal o conteúdo digital (seja voz, dados ou imagens) e os meios para transmiti-lo. O Ministério das Comunicações (Minicom) é fortalecido como poder concedente, passando ter duas agências subordinadas: a Anatel, que permanece com sua estrutura, e a atual Ancine, hoje no Ministério da Cultura (MinC), é transferida para o Minicom, passando a se chamar Agência Nacional de Comunicação (ANC). O fomento à produção cinematográfica nacional é a única atividade que não fará mais parte das atribuições dessa agência, permanecendo com o MinC.

Nova agência terá grande poder.

A nova agência vai regular a produção e a programação do conteúdo audiovisual e sonoro. Ganhará novas atribuições, como a tarefa da classificação indicativa da programação da TV, hoje vinculada ao Ministério da Justiça. Passará a regular também o mercado publicitário. As atribuições, hoje a cargo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), relativas ao controle da publicidade de medicamentos, também serão transferidas para a ANC. Apesar de dar amplos poderes à ANC, o projeto estabelece que não poderá haver controle prévio ao conteúdo, para que não seja confundida a capacidade de regular em prol da sociedade – que existe nas principais democracias modernas – com qualquer ato vinculado a censura.

O projeto não mexe com a atual estrutura de licenciamento das emissoras de radiodifusão. As outorgas continuam submetidas à decisão do Minicom e à aprovação do Congresso Nacional. Se não inova no processo de concessão de outorgas de radiodifusão, a proposta traz para esse segmento os métodos de fiscalização e de prestação de contas utilizados no segmento de telecomunicações. Propõe assinatura de contratos de concessão para as empresas de mídia audiovisual, maior regulação para as que detêm poder de mercado; multas e obrigações para os que devem ser subordinados a essa regulação. Trocando em miúdos, uma emissora de radiodifusão poderá pagar multa por não cumprir a obrigação de transmissão de uma quantidade mínima de conteúdo, independente em sua grade de programação. Caberá à ANC fiscalizar essas emissoras e aplicar as multas.

O projeto não regula a mídia impressa. Em outras pa¬lavras, jornal, revista, outdoor, panfleto, ou qualquer outra manifestação de opinião que não dependa de bens escassos está fora do escopo dessa regulação.

Para angariar mais apoios, o projeto, aparentemente, não tenta mudar o status quo dos grupos econômicos atuantes na comunicação social brasileira, embora pretenda ampliar a competição, com a criação da figura obrigatória do operador de rede. Mas quer mudar o status quo dos grupos políticos. O projeto veda a qualquer pessoa com mandato eletivo manter-se como proprietário, dono, diretor, representante, de emissoras de rádio e TV.

Três serviços

O novo marco legal propõe a unificação de tudo o que se conhece hoje como serviço de radiodifusão e serviço de telecomunicações, em três grandes guarda-chuvas: 1) Serviço de Comunicação Social; 2) Serviço de Comunicação Eletrônica; 3) Serviço da Sociedade em Rede. Essas categorias passam a enquadrar a radiodifusão (informação de um para muitos), as telecomunicações (informação de um para um) e os serviços de valor adicionado (informação de muitos para muitos).

Os serviços de comunicação social englobam a radiodifusão aberta e a TV paga, que deixa a esfera do segmento de telecomunicações. Estes ganham novas designações: o serviço audiovisual e sonoro poderá ser linear e aberto; linear e fechado; e não linear. Os serviços “lineares e abertos” seriam as emissoras de TV e rádio; os fechados, as TVs pagas e os não lineares, os vídeos on demand (VOD). Quanto maior o impacto social, maior a regulação. Obrigatoriedade de transmissão de uma quantidade de programas nacionais; limitação à concentração; cumprimento de cotas de conteúdo etc. serão estabelecidos, por exemplo, para os serviços lineares e abertos, mas não para os não lineares.

 

Os serviços de comunicação eletrônica englobam o que conhecemos como serviços de telecomunicações (excluindo a TV por assinatura). São a telefonia fixa, o celular, a comunicação de dados, a banda larga. Aqui, não haverá quase nenhuma mudança em relação à atual organização do mercado. Eles continuarão a ser explorados sob os regimes público e privado; a ser regulados pela Anatel; e a estar submetidos ao mercado de competição e/ou de universalização.

Além de incorporar a maioria dos conceitos da LGT, o projeto de lei também abriga as propostas de inovações que já se tornaram consenso na sociedade e que há vários anos estão em debate no Congresso Nacional. Como exemplo, o novo marco altera as regras para a utilização dos recursos do Fundo de Universalização das Telecomunicações (Fust).

O projeto propõe também a criação do serviço da sociedade em rede, cuja definição parece ainda um pouco confusa, como quase tudo o que tenta lidar com a web. A inclusão desse serviço no marco legal não pretende regular a internet, mas, na prática, ele vai substituir os atuais serviços de valor adicionado, que são justamente os ligados à internet.

Como criar uma nova categoria de serviço que pretende lidar com um mundo que não se quer regulado com base em uma lei que dá todos os poderes aos agentes reguladores? Para responder a essa contradição, a expectativa dos formuladores da proposta é de que essa categoria de ser¬viço permita que, no futuro, o poder concedente e as agências reguladoras tenham instrumentos para intervir em, por exemplo, Web TV, em redes sociais que se transformem em redes de comunicação de massa com conteúdo audiovisual, ou mesmo estabelecer normas para internet banking. A proposta é criar uma salvaguarda para preservação do conteúdo audiovisual nacional também na internet, caso se torne necessário no futuro; e permitir a regulação de serviços que possam se tornar social e economicamente relevantes, como a bancarização eletrônica.

Propriedade cruzada

No que se refere ao papel de cada player e aos limites à propriedade cruzada, a proposta preserva o acordo firmado entre os dois principais agentes econômicos para aprovação do projeto de lei de TV paga. A base desse acordo pode ser resumida pela frase “quem produz não distribui, quem distribui não produz”. Os limites de atuação de cada um dos agentes dessa cadeia de valor – produtor, distribuidor, empacotador – são perpetuados no novo marco legal. Assim, a proibição para que as operadoras de telecom ingressem na produção de programas de TV e cinema, ou que as empresas de comunicação social linear aberta en¬trem no mundo da distribuição da informação, ficaria perpetuada no novo marco legal.

Fica mantido o limite de 30% para o capital estrangeiro participar de emissoras de rádio e TV abertas. Nos serviços lineares fechados (TV paga), está preservado o acordo de que poderão ser prestados por empresas controladas pelo capital estrangeiro, como prevê o PLC 116.

Algumas questões importantes foram deixadas para este novo governo, como a relação das igrejas com os veículos de comunicação social. A tendência entre os formuladores do marco legal era de não se criar restrições aos canais religiosos – até porque o Brasil assegura na Constituição a liberdade do culto religioso. As discussões, não concluídas, giravam em torno de como tratar esses canais: ou seja, eles teriam que ser enquadrados nas regras gerais das cotas de produção regional e independente ou teriam regras próprias.

Na comunicação social linear (radiodifusão aberta), a proposta não é clara sobre o limite ao número de outorgas por grupo econômico. Mas foi descartada a ideia de o limite ser estabelecido pelo número de telespectadores, como ocorre há várias décadas nos Estados Unidos. A proposta absorve o conceito das iniciativas da Comunidade Europeia, que regula o mercado convergente e prefere estabelecer regras de estímulo e preservação do conteúdo nacional. Posição esta contrária à norte-americana, que ainda vê esses mercados de maneira não integrada.

Assim, uma das formas que o grupo de estudo encon¬trou para corrigir as atuais distorções no mercado de telecom (falta de competição em alguns segmentos) e no de radiodifusão aberta (concentração de produção e transmissão) foi criar a figura do operador de rede, cuja licença passará a ser obrigatória para todos aqueles que prestam o serviço de comunicação social ou comunicação eletrônica. Essas redes de comunicações eletrônicas (formadas por satélites, cabos e bens escassos) terão que cumprir algumas regras obrigatórias, como acesso compartilhado, abertura dos elementos de rede, interconexão em todos os níveis e neutralidade.

Todos os prestadores de serviço de comunicação social e de comunicação eletrônica deverão ter também licença de rede de comunicação para atender aos seus usuários, clientes, telespectadores. Em princípio, essa formulação não muda a configuração do mercado. Isso porque as atuais emissoras de rádio e TV continuarão a produzir conteúdo e a transmiti-lo por suas próprias redes, bastando conseguir a licença de rede. Mas a aposta é de ampliar a diversidade de oferta, pois o prestador de serviço de comunicação social não precisará ter a própria rede. Poderá usar a de qualquer licenciado para oferecer conteúdo e chegar a seu público.

O grupo Globo, por exemplo, terá que conseguir duas outorgas: a de comunicação social e a licença da rede eletrônica para continuar a transmitir a sua programação. As operadoras de telecom, que não poderão fazer o conteúdo audiovisual, terão suas licenças de redes. E uma terceira empresa, por exemplo, um produtor nacional de cinema, poderá produzir um programa de TV e passar a ter uma licença de serviço de comunicação social. Ele poderá transmitir seu programa pela rede da operadora de telecom ou mesmo da emissora de TV, se esta estiver ociosa, pois a obrigatoriedade do compartilhamento será uma norma uniforme.

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