Especialistas discutem estratégias do mercado para “ganhar” crianças

Especialistas em desenvolvimento infantil, sociologia do consumo e consumo consciente avisam: o mercado trava, através da publicidade e do marketing, uma batalha contra as crianças para transformá-las em ávidos consumidores. E, até o momento, os pequenos e pequenas vêm perdendo esta batalha, o que significa dizer que absorvem conceitos e práticas consumistas a despeito de se tornarem cidadãos e se reconhecerem como pessoas detentoras de direitos. Os alertas foram feitos durante o 3º Fórum Internacional Criança e Consumo, realizado pelo Instituto Alana.

Susan Linn, psicóloga da Harvard Medical School, o mercado é responsável pela sexualização precoce de garotas e está relacionado ao uso precoce de drogas. Há ainda que se pensar nos malefícios causados diretamente pelo consumo excessivo de determinados produtos, fato mais visível no caso da indústria alimentícia, que faz produtos nada nutritivos e convencem as crianças a comprá-los. Todos estes efeitos, segundo Susan, são decorrente da mensagem base da publicidade: a aquisição de valores materiais traz felicidade.

“O consumo não supre necessidades cotidianas de sentido de vida, nem sustenta a necessidade humana de afeto”, lembrou Helio Mattar, diretor presidente do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente. Apesar desta ser uma questão presente entre as preocupações de pais e mães, nem sempre estes podem fazer algo no sentido de evitar que as crianças façam a ligação entre carinho e consumo. “Os pais não tem possibilidade de criar emancipação da própria vida, para sustentar para as crianças uma cultura alternativa à sociedade de consumo", afirmou.

A psicóloga Susan denuncia o discurso do próprio mercado sobre o papel dos pais como uma estratégia para seguir fazendo o que bem entender. Segundo ela, o mercado fala “os pais devem dizer não”, culpando um ente privado por  um problema de esfera pública.

“É importante lembrar que uma geração atrás, ou mesmo 10 anos atrás, não era o mesmo marketing de hoje. Nos EUA, em 1993, companhias gastavam 1 bilhão de dólares por ano, e atualmente, gastam 17 bilhões para pensar estratégias de marketing para alcançar as crianças”, comentou Susan. Ou seja, o tamanho do arsenal de guerra vem aumentando.

“É injusto com os pais terem de lidar com tudo. Acho que não podemos ser ingênuos, os pais precisam de ajuda de toda a sociedade: políticas públicas, comunidade empresarial e o próprio governo". Para Susan, uma maneira de ajudar os pais é proibir comerciais direcionados ao público infantil.

Estratégia anti brincar

Entre as estratégias usadas pelo mercado para cooptar as crianças, uma das que mais assustam os analistas é a de substituir o brincar pelo consumo. “O mercado tem feito tudo que pode para impedir que as crianças brinquem e uma das maneiras é a comercialização de suas vidas”, afirmou Susan, fazendo menção ao fato de que todas esferas da vida da criança – do escovar os dentes ao dormir, passando pela escola e os momentos de lazer – estão tomados ou pela publicidade, ou pelo marketing , por exemplo, nos produtos licenciados de heróis ou personagens do cinema e da TV.

A substituição das brincadeiras entre as próprias crianças é muito negativa, pois é nas brincadeiras que elas aprendem a respeitar ao outro, conviver, sendo protagonista, além de trabalhar a imaginação. "A brincadeira é crucial para o desenvolvimento humano. Brincar junto ajuda a criança a explorar sentimentos, desenvolve capacidade de lidar com o mundo de forma criativa. Agir ao invés de reagir", disse Helio Mattar, citando a psicóloga.

Para Benjamin Barber, sociólogo, autor do livro “Consumido – Como o mercado corrompe Crianças, Infantiliza Adultos e Engole Cidadãos” e professor emérito da Rutger University, o mercado quer impedir as crianças de brincarem porque, quando o fazem, elas não necessitam de brinquedos, basta a imaginação. “Isso significa que o mercado, intencionalmente, corrompe as crianças. Há um nome pra isso, crime. E para lidar com isso é preciso ou por culpados nas cadeias, ou proibir a lavagem cerebral", afirmou.

Ditadura pela segurança

Brincadeiras são importantes, mas uma das desculpas para que sejam restringidas pelos pais é a alegada violência que assola as ruas das cidades. Susan Linn alerta que esta violência é, muitas vezes, resultado da propaganda de uma cultura do medo. “E a cultura do medo faz muitas pessoas ricas.”

Susan comentou, ainda, que este medo é muitas vezes infundado. Há muitos locais que não são perigosos e as estatísticas mostram, por exemplo, que o número de rapto de crianças caiu nas últimas décadas. A psicóloga lembrou que a cultura do medo também se espalha para a internet com, por exemplo, os softwares de seguranças utilizados em internet, para que as crianças não possam acessar determinadas páginas. “[Fazer] marketing com conselhos de segurança para crianças que nunca saem da supervisão de um adulto é idiota. Esses programas escolhem onde as crianças navegam, enchem de publicidade esses locais e as tornam vulneráveis de outra maneira”, denunciou.

A essa estratégia, Benjamin chamou de “get around of gatekeepers" – em tradução livre, “fique longe dos vigias”, no caso, os pais ou outros adultos supervisores. Ele explicou que as crianças estão sempre acompanhadas destes “gatekeepers”. Assim, a estratégia do mercado é tentar separá-los das crianças, para acabar com obstáculos entre suas mensagens pró consumo e os pequenos. Um exemplo é um recurso que está sendo adotado em shoppings para separar as famílias: criam-se áreas especificas para as crianças que, assim, são privadas de andar com os pais e ouvir os conselhos que negam algum produto baseado em algo racional, como explicar a necessidade ou não do produto, seu alto custo etc.

Em relação à cultura do medo, Benjamin acredita que o que impede as crianças de brincarem nas ruas não é a violência, mas a arquitetura urbana. Ex morador do “suburb” – as áreas residenciais que ficam distantes dos grandes centros urbanos nos Estados Unidos – , Benjamin contou que a arquitetura predominante nestes bairros não permite a interação: não há calçadas, não há local para andar de bicicletas, nem playgrounds. “Quando nos mudamos pra Nova Iorque, aí sim minha filha passou a ter contato com outras crianças, porque lá elas andavam juntas e brincavam.”

Helio citou um fato curioso: pelo medo, as pessoas frequentam cada vez menos as ruas, mas, ao esvaziá-las, as tornam perigosas para os poucos que a frequentam.

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