Por novos critérios para a análise das concessões de TV

[Título original: Acerca dos critérios para as outorgas do espectro eletromagnético]

Numa tentativa de contribuir para a criação de critérios claros que possam pautar o debate sobre as concessões e renovações dos canais de televisão, cujos espectros são públicos, propomos uma reflexão sobre a questão dos conteúdos televisivos, mais precisamente, sobre os dramatúrgicos ou ficcionais, dentro do atual contexto da CONFECOM, a ser realizada em dezembro deste ano de 2009.

Evidentemente, a questão dos conteúdos audiovisuais precisa ser, urgentemente, considerada ponto de pauta dessa importante avaliação acerca da possível oportunidade de renovação ou concessão de um bem público a uma empresa privada.

Não há, aqui, necessidade de uma longa explicação sobre a evidente responsabilidade social de uma empresa de negócios particulares diante de uma concessão de direito público, onde um bem coletivo é outorgado para exploração de lucros privados, o que, sem dúvida, deve vir acompanhado de exigência de retorno e contrapartida de interesse coletivo. Nesse sentido, não só questões administrativas e jurídicas devem ser analisadas e julgadas, mas, também, a questão que chamamos hoje de conteúdo, dentro da terminologia adotada pela área do audiovisual. Isso, claro, porque é nesse espaço de natureza cultural que se justifica e se realiza a oferta da contrapartida mais interessante para o público que é usuário e receptor dos processos de comunicação que daí decorrem.

Abrimos, aqui, espaço para um amplo debate cultural, importante hoje para o país que se desenvolve economicamente a passos largos, mudando nossa história de subdesenvolvimento e dependência. Qual a cultura que os meios de comunicação comerciais estão oferecendo e mais claramente falando: impondo aos telespectadores, receptores passivos? Questão de mensagem dentro do processo comunicativo, onde a interatividade possibilitará a troca alterando significativamente o quadro atual? No momento, vale levantar questões fundamentais para que a democracia se exerça verdadeiramente, já que os emissores, criadores dos conteúdos, são responsáveis pela transmissão de padrões culturais que nem sempre são apresentados como reflexos culturais pré-existentes, mas como sugestões, parâmetros e paradigmas moduladores da face cultural e antropológica do país.

Uma emissora privada tem realmente o direito de impor, propor, decidir sozinha o conteúdo, a voz, a essência, o fundamento, o teor, a forma, o desenho, a alma de nossa cultura, nossa expressão antropológica, como se aquilo fosse a verdade absoluta da nossa expressão coletiva, profunda, autêntica, histórica, democrática, popular?

Abordando a questão dramatúrgica propriamente dita, relembro Brecht, para quem a dramaturgia é um dos instrumentos mais fortes de interação, modificação, atuação, transmissão de idéias, mobilização, enfim, poderoso processo de despertar do senso critico, transformando cada um em sujeito da transformação histórica ou manipulando catarticamente e reduzindo em objetos passivos seres mergulhados em fortes emoções capazes de reduzir capacidades de avaliação lúcida dos conteúdos apresentados.

O que faz hoje nossas dramaturgias televisivas, ou seja: nossas telenovelas, acompanhadas com paixão diariamente pelo público? Qual a proposta dos emissores de poderosos conteúdos culturais capazes de modificar e não somente reproduzir costumes, no sentido de expressão cultural de um povo? Nossa cultura é mesmo e tão somente aquela que está estampada nas pequenas e às vezes grandes telas dentro das casas brasileiras? Serão espelhos? Serão proposições, sugestões? Que efeitos produzem socialmente? Quais padrões e propostas apresentam? Que cultura é essa?

Alguns diriam: querem tirar nossas liberdades. Porém, a liberdade de cada um termina quando começa a do outro. E agora, começa a era das liberdades populares. Tem o povo o direito de dizer não a um conteúdo? Estarão as TVs comerciais invadindo direitos democráticos dentro das casas ao colocarem, nas telas, dramaturgias que, na verdade, não estariam expressando a cultura dos que assistem ou não estariam propondo uma cultura de interesse público? Todos nós queremos mesmo a atual teledramaturgia veiculada como expressão máxima de um universo de celebridades dentro do qual cada cidadão é obrigado a se posicionar como manda um rígido código cultural, com valores, visão de mundo, verdades e onde nada é por acaso, desproposital, ingênuo ou sem intenções.

Vamos, sim, discutir se o conteúdo ficcional veiculado como padrão cultural é mesmo de interesse público. Ao menos o público tem o direito de opinar se quer ou não outorgar seu espectro para uma empresa privada colocar suas histórias, seus folhetins, suas ficções como se fossem os únicos possíveis. Vamos contar nossas histórias e propor um folhetim verdadeiramente popular para que nossa expressão ficcional máxima e democrática invada também as telas e as casas em todos os recantos deste vasto mundo, nossa cultura. Vamos nos apropriar de nossa antropologia, como um gestus brechtiano.

Quanto aos critérios, como ponto de pauta para a CONFECOM, sugiro uma comissão formada por: diretores de cinema, televisão e teatro, dramaturgos, professores de literatura, educadores, psicólogos e antropólogos, para que se abra um verdadeiro debate sobre a questão dos conteúdos audiovisuais ficcionais como ponto fundamental de pauta para avaliação sobre outorgas e renovações dos nossos espectros eletromagnéticos públicos, relembrando que já está presente na nossa Constituição a recomendação de que sejam observados critérios educativos e culturais, dentro da área da Comunicação. A CONFECOM deve ter como objetivo estruturar melhor esse item constitucional.

Finalmente, então, vale ressaltar que somente a realização da CONFERÊNCIA NACIONAL DE COMUNICAÇÃO poderá criar um marco regulatório capaz de definitivamente estabelecer novos paradigmas para nossa cultura.

* Heloisa Toledo Machado é professora do Curso de Cinema e da Pós-Graduação em Ciência da Arte, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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