Medida consolida-se, mas TVs demonstram ‘respeito contraditório’

Passados dois anos da entrada em vigor da Portaria 1.220/07 do Ministério da Justiça (MJ), que instituiu regras para a Classificação Indicativa na TV brasileira, o balanço oficial sugere uma adequação satisfatória das emissoras às exigências para a proteção dos direitos das crianças e adolescentes. As práticas e o discurso das empresas, entretanto, contrastam com a avaliação positiva feita pela pasta.

A resistência à classificação indicativa para as obras exibidas na TV – que chegou a ser taxada de “censura” por parte das emissoras e protelou por anos a publicação da portaria – não só parece ter esmorecido, como os critérios estabelecidos foram absorvidos pelas empresas na maioria dos casos. Os números registrados pelo Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação (Dejus) da Secretaria Nacional de Justiça apontam que o setor tem buscado respeitar a norma. Os programas que têm a classificação sugerida pelas emissoras indeferida por parte do MJ ficam em torno de 11% do total analisado. Ainda segundo o governo, os casos mais recorrentes de reclassificação envolvem uso de linguagem de conteúdo sexual e consumo de drogas lícitas.

A avaliação feita por uma das entidades da sociedade civil que mais ativamente atuaram pela regulamentação da classificação indicativa, a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), também é positiva. Veet Vivarta, secretário-executivo da Andi, acredita que, se o mecanismo está implementado e funcionando, é porque ele está sendo incorporado pelas empresas de comunicação, aparentemente sem maiores problemas. “As questões como a da censura não se colocam para mais ninguém, ou seja, há uma normalidade no país com esse novo mecanismo, como aconteceu em outras democracias consolidadas”, avalia Vivarta.

O procedimento para classificação varia de acordo com a especificidade da obra ou programa. As reprises exibidas em horários diferentes da primeira versão precisam passar por avaliação prévia do MJ. Outras, como os programas jornalísticos ao vivo, não são passíveis de classificação. Contudo, a maioria das obras é classificada pela própria empresa, o que é chamado de autoclassificação. O Ministério da Justiça tem 60 dias para avaliar e deferir ou não a classificação feita pela empresa.

Na avaliação de Vivarta, a autoclassificação é um modelo saudável porque exige responsabilidade de todos os envolvidos no processo. “A autoclassificação fortalece a classificação indicativa porque envolve os criadores na defesa dos direito da criança e do adolescente. Mas é um modelo de grande responsabilização, então é preciso que o MJ fiscalize”, acrescenta.

Porém, em alguns casos, a revisão da classificação feita pela emissora acaba ocorrendo após a exibição da obra. Mesmo no caso de obras seriadas, como as telenovelas, os prazos e recursos previstos pela portaria acabam fazendo com que a revisão não surta efeito. Para o secretário Nacional de Justiça, Romeu Tuma Jr., o fato de “que algumas obras seriadas se encerram antes do prazo regular de monitoramento” não faz com que as decisões do MJ sejam inócuas. “Na maioria das reclassificações recentes de minisséries, ou houve indeferimento para atribuir classificação inferior à apontada pela emissora ou o programa já vinha sendo exibido na faixa horária adequada (ainda que com classificação inferior)”, ressalva o secretário. “Por outro lado, ainda no caso de minisséries, a classificação deferida é válida também para outras mídias, como DVDs, por exemplo, ou a reapresentação da mesma.”

Critérios próprios?

Os critérios usados pelo Ministério da Justiça para a classificação de qualquer tipo de obra – desde filmes para exibição em cinemas a jogos eletrônicos, passando pelos programas de TV – estão reunidos em manuais de aplicação desenvolvidos por equipes do MJ e tentam ser os mais objetivos possíveis. As indicações estão relacionadas a cenas que envolvem sexo, drogas (lícitas e ilícitas) e violência. Apesar da aparente sintonia das emissoras com esses critérios ao fazerem a autoclassificação, demonstrada pelos números do Dejus, a Secretaria Nacional de Justiça demonstra certa preocupação com a aceitação das normas pelas empresas. Recentemente, realizou uma oficina exclusivamente com representantes das emissoras, associações de emissoras e roteiristas, para esclarecer dúvidas quanto aos critérios e interpretações do "Manual da Nova Classificação Indicativa".

A preocupação não parece descabida. O assessor jurídico da Rede Globo, Antônio Cláudio Netto, diz que a emissora não toma conhecimento das exigências do Ministério da Justiça nem faz recomendações aos autores ou diretores. Segundo Netto, “a TV Globo sempre seguiu seus próprios critérios para criação e produção de seus programas, e também para a sua classificação, que é apresentada ao Ministério. Tais critérios levam em consideração o público alvo de cada programa”.

A declaração soa mais como marcação de posição do que um retrato da realidade das emissoras após a Portaria 1.220. Em julho, o diretor-geral da Globo, Octávio Florisbal, declarou à coluna “Outro Canal”, da Folha de S. Paulo, que as novelas da casa estariam mais recatadas, com menos cenas de nudez, por conta da classificação indicativa mais rígida.

Entretanto, o assessor da Globo não perde a oportunidade de alfinetar a regulamentação: “A TV Globo entende que a imposição de horários para a exibição dos programas é inconstitucional, pois fere o Princípio da Liberdade de Expressão. Tal imposição, caso venha a ser praticada, pode gerar gravíssimos prejuízos para uma emissora, na eventualidade de que ela seja impedida de exibir suas obras nos horários previamente definidos na grade”, diz Netto.

O secretário Tuma Jr. rebate e diz que a classificação consiste numa informação à família sobre a idade para qual o conteúdo de determinada obra não é adequado. “Classificação Indicativa e censura em nada tem a ver”, ressalta. “A Constituição Cidadã, que pôs fim à ditadura militar e à censura, já prevê em seu Art.21 a Classificação Indicativa de obras audiovisuais com a vinculação etária e horária. A Secretaria Nacional de Justiça não proíbe ou inibe qualquer tipo de cena e os critérios utilizados para atribuir a Classificação são totalmente claros, objetivos e acessíveis à quem tiver interesse de conhecê-los.”

Censura de mercado

A insistência em fazer confusão entre classificação indicativa e censura contrasta com o fato de as emissoras promoverem, por conta própria, o corte de cenas em filmes e seriados para adequá-los ao horário de exibição pretendido. Filmes e séries de canais de TV paga (que precisam exibir a indicação da faixa etária, mas não precisam seguir as restrições de horário de exibição), quando colocados nas grades das TVs abertas, herdam a classificação original. Porém, esta classificação eventualmente entra em conflito com o horário das grades de programação das emissoras. As empresas então optam por modificar o filme ou série e solicitar a reclassificação junto ao Ministério da Justiça.

Em artigo recente publicado neste Observatório, o secretário Romeu Tuma Jr. afirma que, por trás dos crescentes pedidos de “reclassificação de obras audiovisuais por adequação”, se esconde “o que poderia ser chamado, sem meias palavras, de ‘censura do mercado’”. “Nestes momentos, é óbvio, o onipresente argumento do cerceamento da liberdade de expressão criativa não é lembrado”, lamenta o secretário no artigo.

Os pedidos de revisão da classificação original da obra após ela sofrer a intervenção da emissora têm aumentado: foram 106 pedidos em 2008 e até junho deste ano já haviam sido protocoladas 67 solicitações.

Questionado sobre possíveis orientações do MJ em relação à edição das obras, o secretário ressaltou com veemência que “não há critérios para cortes porque a SNJ não proíbe ou solicita o corte de qualquer cena” . “A liberdade criativa e de expressão é direito fundamental previsto pela Constituição Brasileira. Os cortes e a readequação são feitos pelas emissoras e distribuidoras em razão de seus interesses comerciais, de seus patrocinadores e do mercado, em função do público que pretendem atingir, etc.”, disse Tuma Jr.

Casos omissos

Ainda que criticando a atitude das emissoras, o Ministério da Justiça resolveu disciplinar a adequação de reprises de novelas, seriados e minisséries em horários diferentes dos da primeira exibição. No começo deste ano, a Secretaria Nacional de Justiça editou uma portaria exigindo que a reclassificação das reprises só seja deferida após a apresentação da obra em seu formato final, com os devidos cortes, ao Dejus.

A medida parece inspirada em dois casos envolvendo a reexibição de novelas. Na Globo, tanto “Mulheres Apaixonadas” como “Senhora do Destino”, exibidas originalmente às 20h, foram ao ar no horário da tarde, o que exigiria a classificação “livre” ou “própria para maiores de 10 anos”. A Rede Record reexibiu a novela “Chamas da Vida” antes das 20h, o que exigira classificação para a faixa acima dos 12 anos. O MJ considerou que os cortes feitos pelas emissoras não justificavam esta classificação e solicitou providências. A Globo assinou um termo de compromisso para adequar “Mulheres Apaixonadas” à faixa etária “maiores de 10 anos”. O mesmo termo foi assinado pela Record. No caso de “Senhora do Destino”, o monitoramento do Dejus considerou a novela inapropriada e chegou a ameaçar com a suspensão da exibição.

Outro episódio tratado como caso omisso pelo Ministério da Justiça foi a inserção de cenas ao vivo do “Big Brother Brasil 9” dentro de programas isentos de classificação, como o “Mais Você” e “Video Show”. A classificação do BBB (também questionada diversas vezes pelo MJ) permitia sua exibição somente após as 22h. Apesar de o ministério questionar a emissora e tomar partido pela não-inserção das cenas fora do horário previsto, o caso ainda não foi resolvido. O programa terminou em março.

Fusos e horário de verão

Se, no caso do BBB, o Ministério da Justiça buscou reforçar os princípios da Portaria 1.220 diante do que se poderia considerar um “buraco” na legislação, a decisão foi exatamente no sentido oposto quando entrou em vigor o horário de verão, em outubro de 2008. “Foi aberta uma exceção pelo MJ para que as empresas não seguissem a classificação indicativa por conta do horário de verão. As explicações do ministério não convenceram, tanto que o Ministério Público colocou sua posição, demandando que o MJ não incorra de novo nesse tipo de comportamento. Horário de verão faz parte da realidade do país”, comenta Veet Vivarta, da Andi.

Esta adequação é vista por Vivarta como sendo um dos problemas que ainda estão pendentes na classificação indicativa e que precisam ser resolvidos. À época da confusão, o secretário Romeu Tuma Jr. afirmou que o ministério será mais “previdente” em 2009, legislando em relação ao tema com antecedência.

A imprevidência do ministério provocou uma situação de desrespeito à classificação indicativa que atingiu milhões de crianças e jovens dos estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Como a hora oficial dos estados do Sudeste, de onde são geradas as programações das grandes redes de TV, foi adiantada, diversos programas foram exibidos naqueles estados em horário inadequado para as faixas etárias previstas pela classificação.

Pesa ainda no histórico da Portaria 1.220 as mudanças forçadas na lei que estabelece os fusos horários brasileiros. Até o ano passado, portanto, até se encerrar o prazo de seis meses para adequação das emissoras à portaria, o Brasil tinha quatro fusos horários. Além do horário de Brasília, que também é o dos estados do Nordeste, Sul e Ssudeste, o país tinha o horário do Norte e Centro-Oeste – uma hora a menos que o horário da capital –; o horário do Acre e da parte oeste do Amazonas – duas horas a menos que a capital – e ainda o horário das ilhas oceânicas, que por sua vez tem uma hora a mais que Brasília.

Após pressão feita pelo empresariado da comunicação, que alegou prejuízos financeiros para adequar a transmissão aos horários locais, dias depois de entrar em vigor definitivamente a portaria, o Brasil passou a ter apenas três fusos horários: o Acre e parte do Amazonas passaram a seguir a mesma hora que o restante dos estados do Norte e Centro-Oeste.

A mudança mostrou a força do empresariado da comunicação. Não contentes, as emissoras dizem ainda querer unificar todos os fusos do Brasil ao horário de Brasília. Um sinal direto e claro de como a Portaria 1.220 tornou-se uma norma consolidada: as emissoras preferem tentar contrariar a geografia a burlar a classificação indicativa.

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