Seminário traça aspectos e desafios de uma mídia em transição

Até mesmo nos debates sobre convergência digital, as grandes lutas na área de comunicação são manifestações reais da luta de classes. Esse consenso marcou a abertura, no sábado (27), do seminário “As propostas para a democratização da comunicação”, promovido pelo Vermelho, em São Paulo.

A primeira mesa do encontro, sobre “O papel da mídia na atualidade”, reuniu os professores Venício de Lima (UNB) e Marcos Dantas (PUC-RJ), além do jornalista Altamiro Borges (Vermelho). Entre eles, outra concordância: seja por desmobilização, desconhecimento ou desestímulo, a sociedade vem perdendo as batalhas travadas nesse campo em 2009 — ano da Conferência Nacional de Comunicação.

Dantas, de cara, revelou contrariedade com a expressão “convergência tecnológica”. Segundo ele, trata-se de um “rótulo determinístico” sem precisão. “A tecnologia é uma construção social. É a luta de classes que organiza a tecnologia, e não o contrário”. De acordo com o professor, “a divisão da indústria em telecomunicações e radiofusão também obedece a um modelo político-econômico, e não tecnológico. Os movimentos populares e democráticos têm de se apropriar das novas tecnologias”.

O primeiro regime brasileiro para as comunicações, constituído entre as décadas de 1910 e 1930, começou a cair nos anos 80. O que vingou foi um ambiente regulatório liberal, sem intervenção popular e a serviço do capital. “Um ethos — um certo princípio público — foi desmontado nos últimos 20 anos”, explica Dantas. “Há um ambiente novo, um novo regime em formação, gostemos ou não gostemos disso.”

A mudança é explicada sobretudo pela convergência. Neste novo cenário, a “cadeia produtiva da comunicação” divide-se em quatro etapas: produção de conteúdos (estúdios), programação (servidores), transmissão (operadores de rede) e recepção (consumidores). “Muitas vezes, esses atores se confundem, são os mesmos em diferentes funções, o que é um risco”, alerta Dantas. “Quanto mais verticalizada for a cadeia, mais ela será monopolizada”, agrega o professor.

Exemplo das novas possibilidades da comunicação é o telefone celular, que já pode ser encarado, segundo Dantas, “como um terminal móvel, com múltiplas funções e variedade de conteúdo”. Da mesma forma, “empresas como TIM e Claro já não são mais meras operadoras de telecomunicações”. Na TV, a audiência migra vigorosamente das emissoras abertas para os canais pagos. Japão e Holanda são exemplos de países onde não existem mais casas com acesso apenas à TV aberta.

Com isso, a tendência à concentração e à monopolização aumenta. Dos dez maiores conglomerados midiáticos, oitos são americanos. “Se todas as emissoras brasileiras fossem de um grupo só e tivessem seus faturamentos somados, esse grupo seria apenas o 12ª maior do mundo”, diz Dantas.

Na opinião do professor, a sociedade não pode deixar esse debate nas mãos do capital e deve cobrar uma política para cada setor, separando conteúdo (comercial, estatal e não-comercial) de rede (regime privado e regime público). Tampouco a defesa da cultura brasileira e da língua nacional devem ficar restritas apenas às emissoras da TV aberta, “por que somente estas sete, e não as 200 do cabo?”, questiona Dantas.

Um polêmico STF

Declarando-se também “preocupado” diante de “tendências com as quais talvez tenhamos de lidar por longo tempo”, Venício Lima dedicou a maior parte de sua exposição a falar do “novo papel do Judiciário” e seus impactos na comunicação. O professor da UnB acusou uma “distorção histórica” especialmente na atuação do Supremo Tribunal Federal (STF).

“Não sei se por omissão ou por conveniência do Legislativo ou do Executivo — ou dos dois —, mas o Judiciário passou a acumular muitos poderes que não lhe cabem. Vejo uma influência muito grande de organismos multilaterais e cortes supranacionais sobre decisões da Corte brasileira”, disse Venício. Exemplos dessa extrapolação foram os julgamentos que levaram ao fim, em abril, da Lei da Imprensa e, em junho, da obrigatoriedade do diploma para a prática do jornalismo. Nos dois debates, segundo o professor, houve “conclusões ilógicas e ultrapassadas”.

Supostamente em nome da “liberdade da imprensa”, os defensores da desregulamentação costumam evocar o artigo 19 da Declaração dos Direitos dos Homens. “Mas esse texto não fala em ‘liberdade de imprensa’. Fala, sim, que ‘todos têm o direito de ter liberdade de opinião e expressão’”, afirma Venício, que emenda: “Perdeu-se a noção de liberdade individual — que é garantida a proprietários e gerentes dos grandes grupos, nãos aos cidadãos”.

Para Venício, há no STF um desconhecimento do debate do que é a mídia hoje, a tal ponto que “o principal jornalista mencionado é Machado de Assis”. Outra lacuna envolve a noção do papel do Estado. “Ao se manifestarem contra qualquer tipo de cerceamento da imprensa, os ministros do Supremo brasileiro citam a Constituição americana. Mas, mesmo nos Estados Unidos, a Corte reconhece a necessidade da intervenção do Estado para garantir a liberdade de expressão.”

Cadê os movimentos?

Já Altamiro Borges, o Miro, destacou três grandes desafios na área de comunicação. O primeiro é fazer a denúncia da grande mídia — sua inalterável posição de classe, seus desmandos, etc. “Eu concordo com o (jornalista e diretor editorial do Le Monde Diplomatique) Ignacio Ramonet: precisamos criar observatórios de análises e monitoramento da mídia, nas cidades, nas escolas, em todos os lugares.”

Em segundo lugar, o jornalista do Vermelho propôs a valorização dos “nossos instrumentos” para democratizar a mídia e travar a batalha das ideias. “Na área sindical, ainda se vê comunicação como gasto — não como investimento estratégico”, lamentou Miro. Minutos antes, ele já havia cobrado mais empenho das entidades: “Infelizmente este não é um debate que foi incorporado pelos movimentos — que parecem não ver a comunicação como um direito do trabalhador”.

O terceiro desafio, de acordo com Miro, é a preparação para a Conferência Nacional de Comunicação, que acontece de 1º a 3 de dezembro. “A gente não pode se iludir nem se omitir. A conferência é pouco massiva, mas extremamente radicalizada”, resume. “Será o principal centro para a discussão sobre políticas públicas, e nós devemos lutar para conseguir brechas, para ter pequenos avanços — contribuir para as grandes transformações.”

Tais desafios estão postos num momento em que Miro frisa “duas tendências perigosas”: o controle das mudanças tecnológicas (“não está dado onde essas mudanças vão dar, mas elas estão sob o domínio do capital”) e a desregulamentação (“com um agravante: a concentração se dá em prejuízo às nações periféricas do sistema”).

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