O Supremo Tribunal Federal (STF) caminha para derrubar, ainda neste semestre, a obrigatoriedade do diploma de jornalista para o exercício da profissão. Dos 11 ministros que fazem parte da Corte, seis já se manifestaram de alguma forma contra a exigência de formação específica em jornalismo.
O número é suficiente para decidir o julgamento do recurso extraordinário do Ministério Público Federal que questiona a regulamentação profissional da categoria e que está pronto para entrar na pauta a qualquer momento. Mas, até lá, os ministros ainda podem rever sua posição.
Embora não possam antecipar seus votos, alguns já sinalizaram, nos bastidores ou em decisões anteriores, como pretendem votar. Um deles é o próprio presidente do Supremo, Gilmar Mendes, relator do caso.
Em 2006, ele relatou, na 2ª Turma do STF, uma medida cautelar que garantiu o exercício profissional a pessoas que trabalhavam na área sem ter o registro no Ministério do Trabalho (veja aqui a decisão). Na época, Gilmar teve sua posição referendada por Cezar Peluso, Celso de Mello e Joaquim Barbosa.
Mesmo não tendo participado da análise do recurso, os ministros Eros Grau e Ricardo Lewandowski também chegaram a dar declarações “simpáticas” à decisão dos colegas. Os dois declararam publicamente que o exercício da profissão de jornalista não deveria estar atrelado a diploma específico de graduação, porque, na avaliação deles, não dependeria de conhecimentos específicos.
A possibilidade de derrubada da obrigatoriedade do diploma de jornalista não se restringe à ação do Judiciário. Propostas vindas do Executivo e do Legislativo também apresentam mecanismos de flexibilização da exigência de graduação específica para a área.
Mudanças polêmicas
O Ministério da Educação se prepara para formar um grupo de trabalho que discutirá a possibilidade de autorizar profissionais de áreas diversas a exercer a profissão de jornalista. Na Câmara, tramita um projeto de lei, de autoria do deputado Celso Russomanno (PP-SP), que permite que pessoas sem diploma em jornalismo exerçam a profissão, desde que tenham pós-graduação na área.
As iniciativas, porém, enfrentam resistência e causam polêmica entre profissionais e entidades que representam a categoria.
"A contestação do diploma vem há muito tempo sendo levantada pelos grandes jornais, especialmente a Folha de S. Paulo. Quebrar a exigência do diploma vai significar transferir das universidades para as empresas a prerrogativa de dizer quem vai ser jornalista, como vai ser o jornalismo e como devem atuar esses profissionais", avalia o coordenador do Fórum Nacional dos Professores de Jornalismo, Edson Spenthof, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) e um dos organizadores da Carta Aberta ao STF, escrita para sensibilizar os ministros sobre a necessidade do diploma.
As discussões recaem sobre o artigo 4° do Decreto-lei 972/69, que exige o diploma para a obtenção do registro profissional junto ao Ministério do Trabalho. Os que defendem a manutenção da exigência do diploma argumentam que a profissão é extremamente especializada e que, portanto, requer formação específica. Os contrários ao diploma afirmam que a exigência não está amparada pela Constituição de 1988 e que o direito à livre expressão deve ser exercido sem restrições.
Guerra jurídica
Foi sob o argumento da falta de amparo na Constituição Federal, que no final de 2001,a juíza Carla Abrantkoski Rister, da 16ª Vara da Justiça Federal de São Paulo, suspendeu em todo o país a necessidade de diploma para obter o registro profissional junto ao Ministério do Trabalho. A juíza acolheu uma ação civil pública, proposta pelo Ministério Público Federal e pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo, que defendia a contratação de profissional de qualquer área, até mesmo sem curso superior.
A decisão se baseou no argumento de que "a formação cultural sólida e diversificada", exigida para o profissional de jornalismo, "não se adquire apenas com a freqüência a uma faculdade, mas pelo hábito de leitura e pelo próprio exercício da prática profissional".
Oito meses depois, a juíza Alda Bastos, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, determinou que o diploma voltasse a ser obrigatório. A decisão foi novamente contestada em diversos tribunais, até que em outubro de 2005, o TRF reafirmou a obrigatoriedade do diploma para o registro profissional.
O entendimento do Tribunal Regional Federal da 3ª Região foi de que o Decreto 972 teria amparo constitucional e que a exigência do diploma não feria o dispositivo constitucional que estabelece que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição”.
O MPF, então, interpôs recurso extraordinário dirigido ao STF sob o argumento de que a exigência do diploma específico violava o direito à liberdade de expressão. O caso foi parar no Supremo em 2006. Naquele mesmo ano, por meio da Segunda Turma, a Corte confirmou a liberação para o exercício da profissão a pessoas sem formação superior. Desde então, o recurso está para ser julgado em plenário.
"O STF, não tendo poderes legislativos, não poderia dizer 'não é necessário ensino superior, mas deve ter ensino médio'. Se for derrubada a cobrança do diploma, não haverá nenhuma exigência de formação mínima. E isso significa um caos tremendo", avalia o professor Edson Spenthof.
Disputa política
Para o diretor do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF) Antônio Carlos Queiroz, as discussões não se limitam à obrigatoriedade do diploma. O diretor avalia que há interesses políticos por trás da questão.
O jornalista argumenta que a cassação da obrigatoriedade do diploma significa a desregulamentação da profissão. "Faz parte de regulamentação a formação específica. O problema não é só ter o diploma. A questão é ter uma boa qualificação. Deixar a formação nas mãos do mercado é muito perigoso. Os jornais e veículos de comunicação formarão profissionais com uma visão estreita de empresa", argumenta.
Entre as entidades que defendem a não-obrigatoriedade do diploma está a Associação Nacional dos Jornais (ANJ). Procurada por duas vezes pelo Congresso em Foco, a instituição disse que não se manifesta sobre tema que ainda está sub judice. Por meio de sua assessoria, no entanto, a ANJ declarou que “considera importante uma boa formação do profissional de jornalismo, mas não considera que o melhor profissional é o que tem diploma".
O principal argumento dos contrários à exigência do diploma no Brasil tem como base a declaração de princípios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que considera a exigência do diploma para o exercício da profissão de jornalismo uma violação à liberdade de expressão.
A entidade alega que a formação superior em jornalismo não é condição necessária para se exercer a profissão em países como Alemanha, Austrália, Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, Irlanda, Itália, Japão e Suíça. Além do Brasil, o diploma é exigido hoje apenas na África do Sul, Arábia Saudita, Colômbia, Congo, Costa do Marfim, Croácia, Equador, Honduras, Indonésia, Síria, Tunísia, Turquia e Ucrânia.
Liberdade de expressão
Contrário à exigência de formação específica na área, o jornalista José Nêumanne Pinto, articulista do jornal “O Estado de S.Paulo” e comentarista do SBT e da rádio Jovem Pan, classifica a defesa do diploma como ato meramente "corporativista".
"Sou contra a defesa corporativista de regulamentação de profissão. Não vejo nenhuma empresa interessadíssima em contratar quem não tem diploma", afirma.
Por outro lado, os defensores do diploma afirmam que a obrigatoriedade da formação universitária não significa cerceamento à liberdade de expressão. "Em tese, eles defendem que exigir o diploma é restringir a liberdade de expressão. Eles confundem opinião com jornalismo. A opinião pode ter no jornalismo, mas ela é dada pelos fatos, após uma apuração específica. Isso não pode ser confundido com emissão de opinião do cidadão", defende o diretor do SJPDF Antônio Carlos Queiroz.
Cursos da discórdia
Outro argumento utilizado em favor da derrubada da obrigatoriedade de diploma específico para o exercício do jornalismo está relacionado à qualidade dos cursos superiores. Nêumanne alega que os cursos de jornalismo no Brasil não têm atendido aos padrões de qualidade necessários para uma boa formação profissional.
"Os cursos superiores não entregam profissionais à altura para tocar os meios de comunicação. Eles precisam passar por cursos específicos nas redações dos jornais. E, por isso, não há necessidade de fazer reserva de mercado para diplomados", defende o articulista. "É uma mentalidade de pistão de gafieira, em que quem está dentro não sai e quem está fora não entra", avalia.
O presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Sérgio Murillo, rebate o argumento de Nêumanne. "A sociedade exige qualificação profissional e o melhor lugar para se adquirir conhecimentos técnicos, teóricos e éticos são as instituições de ensino. Cursos técnicos feitos por veículos de comunicação são de doutrinação. Preparam o estudante para as regras e condições internas de cada empresa. Jamais substituem as escolas", diz Murillo.
"Os cursos oferecidos pelos veículos de comunicação formam profissionais de acordo com a linha editorial de cada veículo e não com a linha plural como se vê dentro de uma instituição de ensino. A faculdade de jornalismo é um espaço plural de avaliação sobre diversas linhas e não sobre uma só", acrescenta o professor Spenthof.
Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep), há 534 instituições superiores de ensino registradas no Ministério da Educação (MEC) que oferecem cursos de Jornalismo e Comunicação Social. Dessas, 296 são instituições particulares. Em 2006, também de acordo com o Inep, 27.969 estudantes se graduaram em jornalismo em todo o país.
Conselhos de jornalismo
As discussões relacionadas à regulamentação da categoria não se restringem ao embate no Supremo Tribunal Federal. Além de abrir a possibilidade de profissionais atuarem no jornalismo sem diploma específico, desde que tenham pós-graduação na área, o Projeto de Lei 3981/08, do deputado Celso Russomanno, prevê a criação de conselhos federal e regionais de jornalismo.
A proposta de criação do Conselho Federal dos Jornalistas causou polêmica em 2004, quando o presidente Lula encaminhou ao Congresso um projeto que previa a criação do órgão. A matéria, rejeitada pelos parlamentares, foi recebida pela oposição e por diversas entidades como uma medida de controle da atividade jornalística, o que infringiria a liberdade de expressão, garantida pela Constituição.
"A regulamentação da profissão de jornalista é hoje uma bagunça danada. Não defendo menos preparo para os jornalistas. A situação hoje é quem tem curso ou não tem. Quando já se tem um curso e se faz pós, tem a possibilidade do profissional melhorar a qualidade na escrita e na transmissão", defende Russomanno. "Mas se a classe achar que ter apenas pós na área não é bom, o projeto está aí para ser discutido", pondera.
Esse é o terceiro projeto similar que Russomanno apresenta na Câmara sobre o assunto. O primeiro, em 2004, foi rejeitado em plenário. Já o segundo, de 2005, foi retirado de pauta pelo próprio autor.
Bacharel em Direito, Russomanno ficou conhecido como repórter do telejornal “Aqui e Agora”, do SBT. "O PL é um apanhado de propostas que instituições como a Fenaj encaminharam ao Congresso. Mas ele tem sofrido um lobby danado das empresas para ser derrubado. Empresas que não querem ser fiscalizadas e vieram com essa história de que estão colocando mordaça na imprensa", alfineta Russomanno.
Entre os pontos de conflito do projeto, o que mais tem desagradado a categoria é o que aumenta a jornada de trabalho – que hoje, pela lei, é de cinco horas diárias, com possibilidade de acordo para mais duas horas extras diárias – para oito horas por dia.
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